O café da manhã seria o melhor momento do dia, se não fosse pelo café da manhã. Piada recorrente aqui na clínica. Gostamos do ambiente claro, acolhedor; gostamos de ver, na TV do refeitório, as reprises de I Love Lucy ou A Ilha da Fantasia. (Todas as TVs são ligadas num mesmo canal, para estimular a socialização e a troca de idéias).
Gostamos do zum-zum-zum, do tilintar de pratos e talheres. Só não gostamos da comida. Não tem sabor nenhum, o que ressalta a textura repugnante de algumas delas. O Duque de Hagen comentou ontem comigo: “Mastigamos estas coisas insípidas e sem cheiro em busca de sofrimento. Só alimentam a ilusão de que nos fazem bem”.
Piscina com água pela cintura, olhares vigilantes dos salvavidas. Baralho ou gamão no Espaço Convivencial. Mme. Tepes, como sempre, passeia no jardim sem guarda-sol, rosto erguido; perdida em alguma viagem épica, triunfante. Eu caminho ao seu lado, ouço histórias suas de épocas passadas, mas todas pasteurizadas, irrepreensíveis. Com a idade que tem, não cansa de dizer que vive em função do futuro.
Hoje não recebi diálise, só as injeções e o rebatismo. Depois, caminhei em volta da clínica, que tem para isso uma pista larga, arborizada. Caminhar me faz bem, e é apenas nestes momentos que sinto algo próximo ao arrebatamento de quem se joga sem medo num abismo, de quem voa por sobre as nuvens guiado pela lua.
O moleton está encharcado quando o dispo no banheiro; um chuveiro frio; uma roupa leve; e o detestável almoço, onde é ainda maior a quantidade de coisas pastosas que é preciso engolir, de coisas ásperas e úmidas que é preciso desfazer com os dentes.
Minha tardes são sempre melancólicas; costumo me alegrar com a companhia do Signor Polidori, sempre bem-humorado, com duas ou três anedotas picantes na ponta da língua. E quando a noite começa a cair e os enfermeiros nos conduzem para o prédio principal, tem início a parte terrível do meu dia, do dia meu e de todos.
Trancafiados em nossos quartos, com portas e janelas protegidas, câmaras de vigilância piscando mecanicamente seu olho vermelho, entretemo-nos em ler A Bíblia na Linguagem de Hoje, revistas de modas ou de vida social. Uns assistem vídeos de Papai sabe tudo ou de Os pioneiros. Outros escutam MP3 de Pat Boone ou de Brenda Lee.
Alegria e conforto são as palavras de ordem nessa noite interminável que se inicia e que todos nós temos que atravessar. A noite que agora precisamos temer e abominar, sem lembrar o tempo em que éramos seus imperadores, em que o mundo se estendia imenso por baixo de nossas asas abertas, e o prazer da vida borbulhava quente e saboroso por entre os nossos caninos.
Um comentário:
Esses seus grã-finos de nomes engraçados...
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