(Gérard de Nerval)
Existe uma arte em vias de desaparecimento, além do retrato a óleo, da zincogravura e do canto gregoriano. Refiro-me à arte de andar a pé pelas ruas de uma cidade, de preferência à noite, como nos versos de Cecília Meireles que já me conduziram através de muitos subúrbios adormecidos:
Alta noite, lua quieta
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.
("Canção de Alta Noite", em Vaga Música, 1942)
Coisa de cavalheiros vitorianos percorrendo uma Londres que não existe mais:
Andamos seguramente três horas juntos, observando o calidoscópio da vida em constante mudança, com fluxo e refluxo, na Fleet Street e no Strand. A conversa característica de Holmes, com sua observação penetrante e poder de inferência, conservava-me pasmado e dominado.
(Conan Doyle, Memórias de Sherlock Holmes).
Isto me vem à mente folheando Paris et Alentours de Gérard de Nerval, no qual descobri que o poeta precursor do surrealismo era também um grande caminhante, e escreveu numerosas obras descrevendo seus passeios a pé por Paris. Rabiscava o tempo inteiro nesses passeios, em pedaços de papel que guardava soltos nos bolsos. Escrevia no parapeito de uma ponte, sentado numa mesa de café, a bordo de um cabriolé.
Escrever e caminhar, para ele, eram uma única coisa. Diz-se que para descrever um por-de-sol em Chantilly, em seu romance Sylvie, passou oito horas naquela localidade. Depois comentou que a viagem a Chantilly lhe custou duzentos francos e lhe rendeu uma dúzia de linhas, e que, proporcionalmente ao que lhe rendeu, deu-lhe um lucro de 24 centavos.
Jorge Luís Borges costumava andar madrugadas inteiras pelas infinitas avenidas de Buenos Aires, ao lado dos amigos ou das namoradas platônicas.
Arthur Machen, o novelista de The Three Impostors, era outro que percorria a pé os subúrbios londrinos, e num prefácio a esse romance David Trotter lembra:
No século 19, pesquisas de ambientes urbanos resultavam não apenas em vívidas cenas de rua, mas na mitologia autoral como um todo. Os dois maiores romancistas urbanos do século, Honoré de Balzac e Charles Dickens, foram famosos caminhantes; ambos reconheciam haver uma conexão entre o ato de andar e a criatividade.
Parece que foi Baudelaire quem redefiniu literariamente o termo “flâneur” para designar o indivíduo que anda sem pressa, observando, registrando, embebendo-se da vida urbana. Este mesmo espírito impregna a obra de Chesterton, de Stevenson; e sua face mais obscura e terrível foi imortalizada por Edgar Allan Poe na vinheta “O Homem da Multidão”.
Rubem Fonseca, com seu conto “A arte de caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro” ressuscita esta grande arte (embora seu conto, pelo que me lembro, seja diurno).
Alguém deveria escrever um romance que transcorreria inteiro ao longo de uma noite em que um indivíduo insone cruzaria sem pressa as ruas e os bairros de sua cidade natal, e cada detalhe que avistasse o faria evocar um episódio de sua própria vida, vida cujo mapa seria a paisagem urbana.
4 comentários:
Em "Noites Brancas", Dostoiévski escreve maravilhosamente sobre os passeios de um flâneur nas ruas de São Petersburgo.
Eu adoro essas perambulações noturnas!
Alguém deveria escrever um romance que transcorreria inteiro ao longo de uma noite em que um indivíduo insone cruzaria sem pressa as ruas e os bairros de sua cidade natal,
ESSE ROMANCE EXISTE: TAMBORES DE SÃO LUÍS; AUTOR: JOSUÉ MONTELLO.
O PERSONAGEM PRINCIPAL - DAMIÃO, UM NEGRO IDOSO - ATRAVESSA SÃO LUÍS DE UMA PONTA A OUTRA EM UMA NOITE, ENQUANTO LEMBRA DE TODA SUA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA EM SOCIEDADE ESCRAVOCRATA.
Ulysses, de Joyce, é o relato de uma caminhada por Dublin.
Hoje em dia, 2020, está difícil fazer estas mágicas caminhadas noturnas. Melhor dizendo, perigoso, perigosíssimo. Muito bandido, assaltante, criminoso, nas ruas. Ao invés de curtir a atmosfera poética das madrugadas, prevalece o medo de ser perseguido, espancado, roubado, até pior.
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