1)
O Clube de Bola de Gude Afrânio Peixoto tinha esse nome porque, embora fosse constituído por uma malta de moleques incultos, cascudos, endiabrados, e pouco merecedores de confiança, todos eles moravam (e jogavam gude) na rua sem calçamento que ostentava o nome desse ilustre paredro das letras nacionais. (Procurem paredro no dicionário, vamos, mexam-se.) Sonhos adolescentes de acesso às máfias da vida adulta levaram os tais moleques à criação de um clube, com mensalidades pagas semanalmente a um tesoureiro (foram cinquenta minutos de discussão sobre se uma “mensalidade” podia ser semanal, mas era o único termo técnico que eles conheciam).
Nomeada a primeira diretoria (“eleita” seria força de expressão), ficou Vitinho como tesoureiro, encarregado de catar as mensalidades, guardá-las em lugar seguro, e destiná-las à compra de rodadas de sorvetes e eventualmente de troféus (“daqueles pequenos, de meio-palmo”, instruiu o presidente Warlilson) para os torneios periódicos.
Nem bem se passou um mês e descobriram que Vitinho havia abscondido a grana das mensalidades. A diretoria o abordou, fumaçando, na esquina da bodega de Zé Nicolau. Por azar Vitinho era o mais magro da turma, de modo que o cobriram na tapa e depois cada um o agarrou pela trunfa e pelos fundilhos e o jogou de encontro à parede, deixando ali variadas manchas coloridas. Depois que todos o fizeram, Vitinho catou chão para se apoiar, tirou o cabelo dos olhos, ergueu o queixo duro e desafiou: “Mais alguém insatisfeito?...”
2)
Daniel S. O’Rourke, de Ann Arbor (Michigan), descobriu aos onze anos de idade que era escritor, e não mais deixou ninguém em paz. Passou a produzir contos, artigos, resenhas e (a partir dos 17 anos) romances em série. A família inteira se dividia entre a confiança implícita no seu talento (“É um O’Rourke!” bradava seu avô, agitando o cachimbo), e a índole realista que os deixava perplexos diante das histórias inventadas pelo obcecado adolescente, que não conseguia ser publicado, mas tinha uma fé inabalável na própria vocação.
Aos trinta anos, tinha catorze livros auto-publicados que não conseguia mais vender sequer entre os parentes e os vizinhos de bairro, que visitava de porta em porta. Certa noite de verão, num ato de desespero, Daniel derramou querosene e ateou fogo à pequena cabine de madeira que usava como estúdio, próxima à sua casa, cheia de manuscritos e de caixas de livros intactos. As chamas se ergueram, as fagulhas subiram revoluteando em turbilhões de vento, e em breve não só a casa dos pais de Daniel como um estábulo e um celeiro próximos já tinham princípios de incêndio. O rapaz deu o alarme, convocou vizinhos, organizou fileiras de baldes, desenrolou mangueiras, bombeou vigorosamente a água dos poços, e foi unanimemente considerado o herói da noite, ao debelar aquele sinistro cuja origem ele, discretamente, atribuiu a um gato que derrubou uma lamparina. Daniel largou a literatura, trabalha hoje como bombeiro, e já salvou quinze vidas, dezesseis com ele próprio.
3)
Houve um alvoroço naquela manhã de março de 1921, no sítio arqueológico de Wat-Nambi, quando dois assistentes subiram correndo a colina para avisar ao chefe da expedição, Sir Humphrey Gladstone, que haviam sido encontrados sinais de um fóssil de grandes proporções. Logo ao primeiro olhar ele constatou que era provavelmente um esqueleto de Arqueoptérix, verdadeira raridade do mundo da ciência. A excitação da descoberta foi empanada pela sua confusão ao perceber o alarido horrorizado dos trabalhadores núbios encarregados da escavação. Gritos, mãos cobrindo rostos, testas percutidas de encontro à area ocre do deserto... O que estava havendo?
Uma rápida confabulação com Ahmed, o chefe dos intérpretes, deixou claro que o crânio da criatura, plenamente visível após as primeiras vassouradas de areia terem sido removidas, correspondia estranhamente ao crânio de [Nome Impronunciável], conhecido como O-Exterminador-Dos-Infiéis-Que-Desembarcam-De Longe, mito milenar e altamente temido naquela região.
Debandada geral, deixando o sítio quase deserto, enquanto Sir Humphrey, em desespero, tentava calcular os custos de trazer uma equipe de operários de outro país, sujeitos a outras mitologias. O projeto encalhou por uma semana, enquanto Sir Humphrey, um somatizador inveterado, sofria ataques de gota, rinite, disritmia cardíaca e refluxo esofágico. Tudo parecia perdido, quando Ahmed, típico indivíduo-de-umbral entre dois mundos, trouxe-lhe um pergaminho contendo as instruções para um ritual de apaziguamento da referida divindade. O paleontólogo encheu-se de entusiasmo, chegou mesmo a minimizar o aspecto suspeitosamente recente do pergaminho, mas meteu a mão no cofre e distribuiu dinares e libras esterlinas com o séquito de exorcistas, que se reuniu no canteiro de escavações ao erguer de uma ameaçadora lua nova e, mercê de uma incongruente quantidade de vinho e haxixe, rasgou o ventre da noite com uma cantilena de litanias mágicas.
Maldição exorcizada, Sir Humphrey Gladstone conseguiu por fim exumar o precioso fóssil (ganhando a aposta que fizera com seu assistente, o dr. Clive Neville, lente de Narratologia em Oxford), e embarcá-lo no HMS Caledonia rumo a Londres, sob uma fanfarra triunfal de metais no cais do porto. (O fato de que o Caledonia afundou dois dias depois, no Mediterrâneo, perto da costa da Líbia, deixou no ar a dúvida sobre quem teria no final ganho a parada – mas enfim, a história real é esta.)
4)
D. Henriqueta Coimbra, 51 anos, solteira, morava sozinha há anos na casa deixada pelos pais, no bairro do Recife, aquelas casas verticais à moda holandesa, com aposentos superpostos, cheios de prataria, porcelanas, cerâmicas nativas e (resmungava-se na vizinhança) baús antigos repletos de dobrões de ouro deixados pelo pai, potentado canavieiro, ouro que atiçou a cobiça de Bastião Caroço, 33 anos, flanelinha do Mercadão São Bento, possuidor de uma Mauser enferrujada que foi erguida para o rosto de D. Henriqueta quando ela acendeu a luz e o surpreendeu agachado no tapete da sala por entre os cacos da vidraça; arma erguida, ameaça feita, e D. Henriqueta de mãos postas obedeceu à ordem de ficar calada, de se ajoelhar, e de dizer onde estava o ouro, resposta que ela começou a balbuciar enquanto percorria com os olhos os bíceps saradões de Bastião, as coxas que avultavam sob a bermuda cortada a tesoura, exame ao qual o respectivo não ficou alheio e sorriu dentes de ouro, ouro que D. Henriqueta, num tremido de pálpebras, insinuou coquete que estava “na alcova... embaixo da cama de casal... se ele estivesse mesmo a fim...” e Bastião encorpou-se, mobilizou a libido, fez um sinal autoritativo com o cano da arma indicando um “boralá” confiante, permitindo que D. Henriqueta se erguesse e o guiasse até o corredor e o elevador antigão de casagrande, que conduzia aos aposentos superiores na cabine onde caberiam três pessoas e ela entrou primeiro, dando passagem a Bastião que entrecerrou os olhos ao aspirar-lhe o perfume alfazemado, murmurando, “ih, tá cheirosa...”, e D. Henriqueta quase tímida fechando devagar a grade pantográfica enquanto Bastião dava um passo para o fundo da cabine e ela saltava lépida como uma onça para o lado de fora, cerrava a grade, fechava a porta de encontro aos murros inúteis de Bastião, abria a caixa de controle na parede, desligava o interruptor da energia interna, premia o botão do gás, puxava a alavanca acionando a hermética closura, apoiava-se à parede e deixava-se escorregar até sentar no chão, abanando-se com uma interjeição de “ufa, essa foi por pouco”, e ainda assim com um laivo melancólico no olhar, porque bíceps como aqueles, francamente.
Um comentário:
CLAP, CLAP, CLAP!
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