Devorei num dia o exemplar da mais recente tradução
brasileira (São Paulo, Grua, série “A Arte da Novela”, 2017) de Le Horla (1887), o clássico da
literatura fantástica de Guy de Maupassant. Meu colega Sérgio Flaksman, ao que
eu saiba, foi o primeiro tradutor a cravar um acento agudo no título: O Horlá, conforme a pronúncia do
original francês.
Eu passei a vida toda dizendo “o Órla”, até que um belo
dia tomei conhecimento do projeto “Hors-Là” através do artista plástico Raul
Córdula, um projeto de intercâmbio artístico entre a Paraíba e a França (isso
mesmo; se a gente for esperar pelo Brasil não faz nada). O projeto trouxe
muitos artistas franceses à PB, e levou para lá muitos conterrâneos, inclusive
amigos meus como Luiz Barroso, Dyógenes Chaves e outros.
“Hors-là” (esclarece Sérgio numa nota final ao esguio
volume) quer dizer algo como “lá fora, aí fora”, ou mesmo “aqui fora” como
dizemos meio contraditoriamente quando estamos dentro de casa: “Vamos sentar
aqui fora, está passando um ventinho bom” – o “aqui” refere-se não à parte
interna, mas à casa em si.
Maupassant é um dos grandes contistas de todos os tempos.
Suas histórias são lições leves e nítidas de como narrar. Era, imagino, um
desses autores que parecem uma torneira, basta abrir e o texto brota, límpido,
abundante, já num formato que parece inevitável e obtido sem muito esforço.
Seus contos fantásticos são geralmente associados ao fato
de que morreu louco, de sífilis, e que o progresso gradual da doença contaminou
sua percepção das coisas. Aconselho o livro A
Viagem (Companhia das Letras, 2003) de Noemi Moritz Kon, que faz um
percurso de idas e vindas entre psicanálise e literatura usando a obra de
Maupassant como um dos canais (além de Stevenson, Poe e Machado de Assis). Não
me lembro de nenhuma biografia dele traduzida no Brasil, mas há algum tempo
comentei esta aqui, em inglês:
Incluí um conto de Maupassant numa das minhas antologias
(“Uma aparição”, em Freud e o Estranho,
Casa da Palavra, 2007) e lamento não poder incluir um em cada outra que venha a
organizar. “Quem sabe?” é uma dessas narrativas inesquecíveis: a história do
homem que, voltando para casa à noite, vê toda a sua mobília fugindo de casa,
poltronas, mesas, camas, tudo se arrastando sozinho pelo chão e indo embora,
como num desenho animado.
Na sua veia fantástica, Maupassant era o rei do “relato
alucinatório”, o conto onde alguém narra uma série de fatos bizarros e
incompreensíveis, com ou sem elementos sobrenaturais, mas regido do começo ao
fim pela voz do menos confiável dos narradores-não-confiáveis: um narrador
louco. O tipo de história popularizado por Hoffmann e Poe, e ao qual ele deu
colorações muito pessoais.
“O Horlá” é um desses relatos, em forma do diário de um
homem que se crê assediado e vampirizado por um ser invisível. É também uma das
aparições gloriosas do Brasil na literatura fantástica européia. O narrador,
que vive à margem do rio Sena, conta logo no início:
Como estava
linda a manhã!
Por volta
das onze, um longo comboio de navios, puxados por um rebocador do tamanho de
uma mosca que grunhia de esforço vomitando uma fumaça espessa, desfilou diante
de minhas grades.
Depois de
duas escunas inglesas cujo pavilhão vermelho ondulava contra o céu, vinha um
soberbo navio brasileiro de três mastros, todo branco, admiravelmente limpo e
lustroso. Prestei-lhe uma continência, nem sei por quê, tamanho foi o prazer
que me deu a visão desse barco. (pag. 14)
Há uma ironia trágica nesse gesto, porque lá pro final o
narrador constata que nesse barco veio a criatura invisível que ingere líquido
e também suga dele a força vital. Lá pelas tantas, o narrador cita o que leu na
Revista do Mundo Científico:
Uma notícia
muito curiosa nos chega do Rio de Janeiro. Uma loucura, uma epidemia de
loucura, comparável às demências contagiosas que afligiram os povos da Europa
na Idade Média, grassa neste momento na província de São Paulo. Os habitantes
confusos deixam suas casas, abandonam suas aldeias, renunciam a seus campos,
dizendo-se perseguidos, possuídos, governados como um animal de serviço humano
por seres invisíveis embora tangíveis, espécies de vampiros que consomem suas
vidas enquanto dormem, e que além disso bebem água e leite sem dar a impressão
de tocar em qualquer outro alimento. (pag. 44)
O texto de Maupassant é classificado às vezes como ficção
científica, porque o próprio narrador postula uma explicação evolucionista para
este pesadelo, a substituição de uma espécie dominante (o Homem) por outra:
Pobre do homem! Ele chegou,
o... o... como é mesmo que ele se chama... o... tenho a impressão de que ele me
grita o seu nome, e não consigo ouvir... o... sim... ele grita o nome... E eu escuto... não posso... repita... o... Horlá...
Eu ouvi... o Horlá... é ele... o Horlá... ele chegou!... (pag. 46)
O “hors-là” é algo que está “aqui fora”, próximo de nós
mas ao mesmo tempo irredutivelmente “outro”, “estranho”, diferente de nós,
alheio a nós, alienigenamente diverso da nossa essência.
Por mais que afete loucura, o narrador tenta explicar de
forma científica a invisibilidade do Horlá, lembrando que nossos olhos percebem
apenas uma gama muito limitada do espectro luminoso. Uma explicação que seria
retomada em 1893 por Ambrose Bierce no seu conto clássico “The Damned Thing”,
onde ele postula a existência de uma fera que tem a mesma existência física de
qualquer outra, mas cujos pelos têm uma cor invisível ao olho humano.
A edição da Grua traz três textos: as duas versões de “O
Horlá” que Maupassant publicou em 1886 e 1887 (esta última mais longa, e
considerada a “versão oficial”), e a “Carta de um Louco” (1885) onde ele já
desenvolvia alguns temas do conto.
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