O pequeno personagem é aquele que aparece pouco, em segundo plano, mas nem por isso tem que ser um personagem menor ou sem importância. Às vezes aparece em apenas uma cena, mas é bastante para se tornar inesquecível.
No cinema, isso fica muitas vezes por conta do ator. O ator Ned Beatty fez um
papel secundário em Rede de Intrigas (“Network”, 1976) de Sidney Lumet,
aparecendo em apenas uma cena do filme, e concorreu ao Oscar de Melhor Coadjuvante.
(Não que eu ache um Oscar uma grande coisa, mas eles lá acham.) Dizia ele:
“Nunca recuse um trabalho, por menor que pareça. Trabalhei neste filme um dia
apenas, e fui indicado ao Oscar”.
Um
personagem shakespeariano inesquecível é Falstaff, que aparece nas duas partes
de Henry IV (1597?, 1599?) e As alegres comadres de Windsor (1602). Em
1966, Orson Welles lhe deu o papel de protagonista do filme Chimes at
Midnight, aproveitando cenas das peças e trazendo o personagem para o foco
principal.
A literatura parece mais propensa a valorizar os
personagens menores. No livro de R. L. Stevenson O Médico e o Monstro, o Dr.
Jekyll tem uma casa cheia de criados que pouco aparecem; mas o romance Mary
Reilly (1990) de Valerie Martin, usa como protagonista uma dessas empregadas, e
reconta o drama do ponto de vista dela.
Algo parecido foi feito recentemente no
romance francês Meursault, contre-enquête (2013) de Kamel Daoud, cujo foco é no
irmão do árabe assassinado na praia pelo narrador de O Estrangeiro (1942) de
Albert Camus.
No prefácio de seu romance O Mundo de Rocannon (1966),
Ursula LeGuin explica seu protagonista lembrando que ele aparecia rapidamente
no conto “O Colar de Semley” (1964), como um etnólogo que a heroína encontra
noutro planeta. Depois (diz ela) ele começou a surgir na sua mente, dizendo:
“Ei, eu sou Rocannon! Conte minha história!”, e ela o fez. Muitos personagens
hoje famosos fizeram sua primeira aparição em circunstâncias parecidas.
Algo parecido fez o dramaturgo Tom Stoppard quando dedicou uma peça
inteira a dois personagens bem secundários de Hamlet, em Rosencrantz and
Guildenstern are Dead (1966). São dois amigos do príncipe Hamlet que fazem
breves aparições na peça, e no texto escrito por Stoppard eles se tornam o
ponto de vista através do qual a história do Reino da Dinamarca é contada.
Desenvolver um personagem secundário de uma obra conhecida poderia ser um bom exercício de oficina literária, para mostrar como uma mudança de ponto de vista, sem alterar os fatos concretos, pode determinar uma reviravolta no significado da história original. Nenhuma história é a mesma quando os fatos são narrados por outro ponto de vista.
Desenvolver um personagem secundário de uma obra conhecida poderia ser um bom exercício de oficina literária, para mostrar como uma mudança de ponto de vista, sem alterar os fatos concretos, pode determinar uma reviravolta no significado da história original. Nenhuma história é a mesma quando os fatos são narrados por outro ponto de vista.
2 comentários:
Lembro de ter lido algo seu sobre esse assunto na revista Língua. Os personagens pequenos -aliás, as coisas pequenas - têm um poder fundamental em toda narrativa. É disso que nasce o incrível e surpreedente. Às vezes o que se julga altamente criativo não passa de um detalhe da história que continha todo o futuro, que seria capaz de mudar tudo, simplesmente por existir.
O que você escreveu me deu visões fantásticas sobre as histórias de super-heróis, sob o ponto de vista dos vilões... queria ter competência para escrevê-las
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