terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

0841) “Dossiê H” e a poesia homérica (26.11.2005)





Para os que se interessam pela Literatura Oral e pela cultura popular, recomendo o saboroso livro de Ismail Kadaré, Dossiê H (Companhia das Letras, 2001, traduzido do albanês por Bernardo Joffily). 

Kadaré escreveu, entre outras obras, o romance em que se baseou o filme Abril Despedaçado, de Walter Salles. 

Em Dossiê H, ele mostra dois folcloristas irlandeses que partem para a Albânia para registrar os longos poemas épicos que os rapsodos de regiões montanhosas passam de geração em geração, por transmissão oral. Os dois folcloristas estão interessados em reconstituir como a poesia oral da Grécia dos tempos homéricos acabou se aglutinando na forma da Ilíada e da Odisséia, e descobrem que a Albânia é o único país onde existe um fenômeno cultural semelhante.

É um romance curto (166 páginas), com algumas subtramas engraçadas que lhe dão sabor; o que mais me ficou na memória foi a descrição das regiões montanhosas da Albânia, que décadas de comunismo e burocracia estatal conseguiram manter cuidadosamente preservadas de qualquer tipo de progresso ou influência cultural externa. 

(Está aí um bom argumento, talvez o único, em favor das ditaduras e das oligarquias: elas imobilizam o Tempo em seu próprio país, o qual logo se transforma num museu de coisas que já desapareceram no resto do mundo.)

Max Roth e Willy Norton, os folcloristas, começam a encontrar rapsodos ambulantes nas estalagens das montanhas e a gravar seus enormes poemas. Eles se perguntam: “Quantos versos um rapsodo consegue saber de cor? Alguns falam em seis mil, outros em oito mil e até doze mil versos”. 

Existe um componente étnico muito forte nessa tradição; os sérvios (que são de raça eslava) competem ferozmente com os albaneses. 

“Durante mais de mil anos, albaneses e eslavos haviam se entrematado interminavelmente naquelas terras. Batiam-se por qualquer coisa: terras, fronteiras, pastagens, água; não seria de espantar se combatessem pelas estrelas do céu. E como se isso não bastasse, disputavam também a antiga epopéia, que, para completar a tragédia, florescia nas duas línguas, albanês e servo-croata. Cada povo teimava em se proclamar o criador da epopéia, reduzindo o outro à condição de ladrão, ou, na melhor das hipóteses, imitador”.

Parece o Nordeste, hem? Parece mais ainda na cena em que eles gravam sua primeira cantoria e o tocador de “lahute” (espécie de alaúde) bota o dedo no ouvido ao começar a cantar: “a necessidade de tapar um ouvido durante a apresentação se liga à transformação da voz do rapsodo, de ‘voz do peito’ em ‘voz da cabeça’, e à necessidade de manter o equilíbrio em face da vertigem que a cantiga provoca”. 

Parece com nossos velhos aboiadores nas vaquejadas, tapando o ouvido e largando o vozeirão mundo afora. Vozes que ressoam aqui e na Albânia, e em tantos lugares que ainda mantêm uma ligação telepática com a Grécia de Homero.





Nenhum comentário: