domingo, 17 de julho de 2016

4135) "Submissão" de Michel Houellebecq (17.7.2016)




Este romance foi lançado na semana do atentado ao “Charlie Hebdo” em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. (É esta a versão vigente na época em que escrevo; sei lá o que já terão descoberto sobre esse fato daqui a 50 anos.)  

Houve uma certa saia justa, porque podia ser até o livro certo, mas era na hora errada. Numa hora em que o Islã, ou pelo menos uma parte ruidosa e pungitiva do Islã, praticava uma carnificina, ninguém que tivesse lido ou tomado conhecimento deste livro deixaria de ligar as duas coisas, sabe-se lá com quantas arrobas de preconceito.

Soumission (2015) saiu no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar. É quase uma ficção científica, um romance de antecipação ambientado no ano de 2022, num futuro-próximo em que um candidato muçulmano se elege presidente da França. 

Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, vai para o segundo turno contra um candidato de direita, e com isso consegue o apoio da esquerda, e se elege. A França adere ao véu, ao Corão, iniciando um movimento de islamização da Europa.  Alguns personagens anunciam a substituição de uma civilização decadente por outra em ascensão.

Foi estranho estar lendo este livro justamente agora. Comprei por acaso, na calçada, e já estava mais ou menos na metade quando ocorreu o atentado que matou dezenas de pessoas em Nice (e que ainda não se sabe se foi atentado jihadista ou gesto pessoal de loucura). E depois a tentativa de golpe contra o presidente da Turquia, uma história ainda confusa no momento em que escrevo, mas onde houve um componente de atrito entre presidente islamizador e forças armadas “laicas”.

Não tinha lido outras coisas de Michel Houellebecq, que conheço apenas das entrevistas onde ele parece ser um excêntrico, desbocado, cheio de opiniões idiossincráticas, vasta erudição e verve verbal temível. O livro tem tudo isso. Ele também é meio chegado a temas de FC, provavelmente pertence àquela geração de intelectuais franceses que há 40 anos estavam lendo traduções de Philip K. Dick.

O narrador, François, é um professor da Sorbonne, solteirão, sem família alguma, que vive da fama dos seus trabalhos sobre a obra de J.-K. Huysmans, o autor decadentista de À Rebours (1884), Là-Bas (1891) e outros. 

François narra sua rotina, seus namoros com as alunas, suas saídas com garotas de programa, sua frustração profissional, etc., aquela tradicional crise da meia-idade do personagem do mainstream literário do Ocidente. Tudo se encaminha para mais um romance existencialista-realista-parisiense, mas chegam as eleições e Ben Abbas sobe ao poder. 

É uma guinada philipkdickiana na História, e François, a França, os franceses, todo mundo é jogado para uma realidade paralela.

Em momento algum (preciso reconhecer) Houellebecq faz uso de algum tipo de jargão, figura narrativa ou clichê da FC; também não dá aquelas piscadelas cúmplices para certo grupo de leitores de gênero (“prestem atenção neste nome próprio, é para mostrar que eu já li Fulano”). 

Seu livro é para os franceses seus contemporâneos. Pelo uso maciço de personalidades reais (políticos, pessoas da mídia, etc.) deve ser uma leitura divertida onde podemos ver políticos de verdade enredados, mesmo que à distância, numa realidade meio fantástica.

Digo meio à distância porque o narrador de Houellebecq só fala de si mesmo, é um simpático e patético poço de solipsismo. Ele só fala dos próprios problemas, mesmo sendo uma testemunha viva de um momento histórico mais importante do que, por exemplo, a Passagem do Milênio. 

É o Retorno do Reprimido, de certo modo. O refluxo dos colonizados, como uma flecha no coração do colonizador. A Europa invadida pelo Oriente; não pelos seus exércitos, mas pelos seus estudantes, pelos seus profissionais do subemprego, pelos seus carregadores do piano alheio, pelos seus biscateiros e pelos seus operários-padrão, pelos seus refugiados de guerra. 

Um exército que invade em paz. Invade querendo agradar a cidade invadida. Invade não num movimento bélico, mas numa onda geopolítica somada a um vagalhão demográfico. Não é o “uh-tererê!” da guerra.  É o tsunami silencioso dos tempos daquilo que chamamos paz.

E vejam só, na França islamizada-do-dia-para-a-noite de Submissão ninguém pega em armas, os mosqueteiros do rei não saem à rua, os filhos da pátria não formam seus batalhões, a guilhotina não fica fazendo traco-traco até o dia amanhecer. A França de Houellebecq parece aceitar passivamente essa troca de civilizações, quase como se estivesse cansada de ser o centro do mundo. (Sim, a França pensa que é o centro do mundo, e quem pode censurá-la por isso?)  Quase como se a submissão fosse o relaxamento final de uma tensão custosamente mantida; como se entregar-se ao inimigo trouxesse ainda mais prazer do que lutar contra ele.

E no entanto o livro continua a ser um romance existencialista. O leitor com perfil FC ou de romance histórico fica querendo saber o papel dos EUA e da Rússia nesse cataclismo, saber o delicado balanço político de potências vizinhas como Inglaterra, Alemanha, sei lá... Nada. Sabemos pouco do que acontece fora do quarto-e-sala de François.  Do que acontece fora da cabeça de François. 

Ele se deixa progressivamente atrair para o Islã, cuja Sorbonne privatizada lhe promete um salário três vezes maior e o direito a casamento poligâmico. Quem hesitaria? Diante de uma oferta dessas proporções, a França de Houellebecq não hesita, parece entregar-se de graça e sem luta, deixa-se tomar pelo inimigo, descobre na última frase que ama o Grande Irmão.







sexta-feira, 15 de julho de 2016

4134) Os leitores de Edgar Wallace (15.7.2016)





Quando li pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, por volta de 1972, um parágrafo me chamou a atenção. Um dos mistérios mais intrigantes do livro é o assassinato do tio de Quaderna, o narrador da história. Dom Pedro Sebastião é morto numa pequena torre sem acesso externo e com a única porta de acesso interno trancada por dentro, além de pessoas permanentemente ali, na base da torre e em volta dela. O fidalgo aparece apunhalado. Quem o apunhalou? Como entrou, e como conseguiu sair?

Esse é o enigma clássico de quarto fechado, ou crime impossível. É o subgênero que inaugurou o moderno romance detetivesco, porque “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com que Edgar Allan Poe de certo modo criou o gênero em 1841, é o enigma de duas mulheres mortas num apartamento todo trancado por dentro. Como se evadiu o criminoso?

John Dickson Carr e Clayton Rawson são dois grandes prestidigitadores literários, especialistas nesse número. O locked-room mystery vai de uma precisão enxadrística até uma mirabolância barroca na invenção de métodos cada vez mais requintados de cometer um crime fisicamente impossível. E no entanto não há limite para a engenhosidade de discípulos de Doyle, Christie, Queen, Freeman, Van Dine, Edgar Wallace.

Comentando a morte brutal do seu padrinho sertanejo, no interrogatório a que é submetido pelo Juiz Corregedor que investiga o caso, diz Quaderna:

- O fato foi verificado no processo, Excelência: não havia indício nenhum! Eu não já lhe disse que isto aqui é um enigma sério, um enigma de gênio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopéico? Ora, indício! Com indício é canja, qualquer decifrador estrangeiro decifra! No caso, não havia nada: nem vela dobrada, nem disco mortífero, nem botões de camisa, nem abotoaduras de ouro, nem fios de cabelo, nem alfinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam fornecer pistas aos decifradores dos ridículos enigmas estrangeiros!

Em momentos assim, Quaderna é uma espécie de Policarpo Quaresma com recursos de João Grilo para não se levar demasiado a sério. Nessa lista de Quaderna há pelo menos dois enigmas clássicos do crime de quarto fechado; é o autor pedindo a bênção a suas leituras de meninice e juventude.

Ariano se refere a dois romances do inglês Edgar Wallace, um dos maiores produtores e vendedores de romance policial da História: A Pista do Alfinete Novo (ou Na Pista...) e A Pista da Vela Dobrada. Em cada um deles, o objeto citado no título é encontrado na cena do crime e cabe ao detetive demonstrar como, por meio desse objeto, o criminoso conseguiu sair e, do lado de fora, trancar a porta por dentro, mediante cordões, mecanismos, etc.

Wallace foi fartamente traduzido em edições populares no Brasil. Uma busca superficial na web mostra livros seus pelas editoras Globo, Cultrix, Ediouro, Francisco Alves, Civilização Brasileira e Itatiaia.

Uma série importante de romances seus saiu pela antiga Coleção Amarela, da Editora Globo (de Porto Alegre). Publicada entre 1931 e 1956, a coleção publicou um total de 35 livros de Wallace, entre os quais esses dois romances. O Na Pista do Alfinete Novo saiu em 1936, e foi relançado (como A Pista do Alfinete Novo) em 1956; e A Pista da Vela Dobrada saiu em 1939. Ariano, morando no Recife a partir de 1934, pegando livros e revistas dos irmãos mais velhos, teve acesso à coleção, que coincide com um dos bons momentos da editora.

Sergio Karam fez uma pesquisa detalhada sobre a Coleção Amarela, que pode ser acessada aqui, no blog organizado por Denise Bottmann: http://colecaoamarela.blogspot.com.br/2016/07/apresentacao_10.html. Dá para pesquisar ou apenas para banhar os olhos nas reproduções das capas.

Ariano Suassuna gostava de romances policiais, e ao ser perguntado sobre Wallace confirmou lembrar desses dois livros. Além de outro: Os Olhos Velados de Londres, “a história de um criminoso cego”, dizia ele.

De fato: se a Vela Dobrada é o número 83 da coleção, os Olhos Velados é o 84, logo a seguir. Os dois são de 1939. Este terceiro romance eu não li na época, mas dos cerca de 150 livros da Coleção Amarela eu tive e li pelo menos um terço, antes dos 18 anos. Todo mundo leu Edgar Wallace. Até Virgolino Lampião tem uma foto famosa, feita por Benjamin Abrahão, lendo um romance dele.

Havia influência de Wallace no livro de Ariano? Não diretamente; o quarto fechado entra ali como entra João Melchíades ou como entra Castro Alves ou como entra um romance ibérico. É o caldeirão da memória fabulatória, a lembrança das histórias fantásticas, das viagens extraordinárias, dos indecifráveis mistérios.

Dom Pedro Dinis Quaderna, o herói narrador, não é um detetive convencional no Romance da Pedra do Reino. (Na minha opinião, ele é um dos principais suspeitos do tal crime.) Ele tem, no entanto, no seu jeito mercurial de ser, algo de matador de charadas, de enfrentador de grifos e de logogrifos, de xereta da vida alheia, de maquinador, e de poeta meio alucinado prontinho para ser trespassado por uma epifania. Ele quer decifrar o mistério do mundo, esta Onça Parda e Piolhenta.  

Ele pode não ter muito cacoete de detetive clássico, mas se diz, orgulhosamente: “Quaderna, o Decifrador”. Talvez essa fórmula seja até um eco do “Quaresma, Decifrador” mencionado a certa altura dos Contos de Raciocínio, as incursões de Fernando Pessoa neste nobre gênero literário.








terça-feira, 12 de julho de 2016

4133) Como começar um conto (12.7.2016)



(foto: Leszek Bujnowski)

Muitos eventos literários têm como vantagem adicional, além da chance de fazer palestras e participar de mesas, a possibilidade de conversar assuntos bem específicos, assuntos que só interessam a quem mexe com aquilo. Assunto que se você for conversar com parte da família ou dos colegas de trabalho vai encontrar um “hã?” como resposta. Eu estava tomando café da manhã no hotel com uma turma, esperando a van do evento, quando um cara disse:

- Eu gosto quando o conto começa in media res, já em plena ação. O conto que começa com um soco, uma explosão, a ação em pleno acontecimento. Sem firulas, sem aquelas introduções intermináveis de Machado de Assis.

Uma professora que estava na mesma mesa disse:

- Olha, eu até concordo que o recurso é ótimo, mas a verdade é que Machado usava muito. Assim de cara eu lembro dois contos de Machado, pelo menos, que começam assim, zás!...

Rapaz, eram cinco pessoas naquela mesa mas baixou um silêncio que só se ouvia a CPU de cada um a todo vapor.

O primeiro que eu lembrei foi o do alfinete, acho que se chama “História Comum”. Como era mesmo? “De repente caí na copa do chapéu de um homem que passava...” Já mergulhava assim, e além do mais tinha um ponto de vista inusitado, o do alfinete propriamente dito. O “de repente” aí é meu, é mais uma rubrica teatral do que uma parte da história. Não deve ter no original.  E acho que é “A carteira” que começa com algo tipo: “De repente ele abaixou a vista e avistou uma carteira caída na calçada...”  Um terceiro? Será que tem?

“A causa secreta”, o famoso conto várias vezes filmado, começa com um plano cinematográfico, um momento banal colhido de repente, com os três personagens num tablô e o narrador saltando de um para o outro, enquanto um rói as unhas, o outro cofia os bigodes e a mulher ajeita um bordado. Não tem explosão nem pode-se de dizer que é uma plena ação. Mas é um momento do tempo que já estava acontecendo e de repente a narrativa se engata nele. Quando a narrativa consegue produzir essa mágica das mágicas aí é moleza, é só contar a história. Esse conto começa com um momento teatral, um momento de tensa presença silenciosa, onde aparentemente nada acontece e tudo pode acontecer.

Terá um quarto conto? Bem, a professora pediu pra ver as cartas na mão de cada um. Um conferencista ao meu lado lembrou de um começo interessante: “Agora vou contar a história do...”  E aí embatucou. Um relógio de ouro? Um alfinete? (Não gostei porque já tinha lembrado sozinho.)

Outra convidada, já recolhendo a bolsa e as pastas, porque o rapaz da van estava na porta do salão de café do hotel, batendo as palmas das mãos uma de encontro à outra e dizendo bora pessoal:

- Você (eu) deveria lembrar do ‘Conto Alexandrino’, eu já li um texto seu elogiando esse conto, e não lembra do começo dele? E recitou:

“—O que, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue do rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”.

Todo mundo riu porque a frase é boa. Eu lembrava do conto mas não do começo; fiquei meio em dúvida se começar o conto no meio de um diálogo tinha mais força ou menos força do que pegar no meio de ação sem palavras. Mas essa impressão acabou cedendo lugar a outra mais forte, porque se o texto de Machado era mesmo aquele (e é) olha que coisa, ele coloca cinco palavras de negação antes do verbo acreditar: “não, impossível, nunca, jamais, ninguém.”

A questão do Enter do conto ser com um diálogo foi lembrada por outra amiga nossa, no trajeto para a universidade. Ela lembrou o começo famoso: “Ah, o senhor é que é o Pestana?” – e ela batia as pestanas com graça. Fui conferir “Um homem célebre” e é a mesma coisa: já estava havendo uma festa, com piano e tudo, e essa voz feminina nos coloca no colo da história. Mas não era bem “no meio de uma ação”, era no meio de um bate papo inocente, a câmara discreta entrando pela janela indiscreta da vida.

Daquele café anotei alguns títulos no guardanapo, que não sou besta. Alguém votou em “Um apólogo”, mas este começa assim:

“Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: ...”

Não tem o que qualquer história minimamente realista nos dá: a sensação de que existia um mundo com tudo aquilo acontecendo e de repente a gente, através da história, está percebendo a existência daquele mundo. Não, isso aí é uma fábula, um mundo abstrato comentando o mundo real humano, mas só começa a existir quando a fórmula mágica é pronunciada. “Era uma vez” é um spell muito poderoso, deve ser poupado, tal como os personagens do Sítio do Picapau Amarelo poupavam o “faz de conta”, a fórmula mágica para tirá-los das enrascadas em que a imprevidência do romancista os colocou.

“Era uma vez” é um “abre-te sésamo”, uma dessas fórmulas mágicas que deixam o autor livre para contar a história que bem quiser. (Claro que não é a única fórmula mágica. Basta ver “A igreja do diabo”, que começa: “Conta um velho manuscrito beneditino que...”) É um começo rápido, um começo zás-trás, mas ele não está captando uma ação in media res, como enfatizava o desafio.

Outro conto machadiano que anotei foi meio às pressas, e ninguém na hora lembrou como era o nome. O que rabisquei no guardanapo foi: 

“O conto onde ele diz que a porta se abriu, mas na mesma hora interrompe e explica quem era o cara que estava contando a história, anos depois de acontecida, à esposa, aí depois ele volta para o fotograma onde tinha parado: “a porta abriu-se, chegou um rapaz, veio visitar os amigos...”

A memória é ingrata, além de traiçoeira. É um dos meus contos preferidos, o conto sobre Elisiário, o homem da opa que podia embrulhar o mundo, “Um erradio”. Um bom começo, mas não saía da minha cabeça o modo como o cara tinha descrito o impacto que esperava doinício do conto: um soco, uma explosão. Houve uma época em que a gente escrevia o conto e apostava todas as fichas numa “abertura Mike Tyson”, ou seja, estontear e abduzir o leitor nas primeiras trinta linhas.

“A cartomante” termina com um tiro, mas nenhum conto de Machado começa com um corte brusco de ação, ação física, não direi um crime ou um tiroteio, que são raridades nos seus contos, mas uma ação intensa, não falada, de um ou mais personagens. Nem por isso ele é o rei de enchimento de linguiça (que por si só não é sempre um defeito). Ele sabe usar com autoridade e economia essas fórmulas mágicas que têm um empuxo narrativo poderoso, capas de erguer juntos a história e o leitor. Olhe só o começo de “Cantiga de Esponsais”:

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Esse conto é pelo menos de 1884, ano em que saiu o metalinguístico Histórias Sem Data. É um conto escrito num passado remoto para nós, onde o autor nos convida (“a leitora” é cada um de nós) a imaginar outro passado que já era remoto para ele.  E ele o faz num movimento cinematográfico perfeito, como uma câmera girando numa grua, descendo e fechando em close. O cinema só seria oficialmente inventado onze anos depois, mas foi a literatura quem ensinou o cinema a ver.

Lero-lero introdutório todo mundo precisa usar de vez em quando. O que importa é que, quando a história pedir, o mesmo sujeito seja capaz do poder de síntese de um começo como o de “Umas férias” (1906):

Vieram dizer ao mestre escola que alguém lhe queria falar.
- Quem é?
- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.
- Que entre.


Nem as histórias de Sherlock Holmes iam tão direto ao ponto.




 



domingo, 10 de julho de 2016

4132) Traduzindo o "Grande Sertão" (10.7.2016)



O livro que ilustra este post é da Editora 10/18 francesa; eu já havia folheado um volume com esta mesma capa, anos atrás, numa livraria. O título Grande Sertão: Veredas foi trocado por Diadorim. Para alguns puristas, seria o mesmo que rebatizar O Coração das Trevas como Marlow, ou O Velho e o Mar como Santiago. Além do mais, o ser folclórico que lhe adorna a capa, com suas calças branquinhas frouxas nas pernas, seu chapéu redondo, parece um vaqueiro do Pantanal ou dos pampas gaúchos, não sei, só sei que na minha memória visual não tem nada a ver com os vaqueiros dos Gerais e do sertão do São Francisco.

A obra de Guimarães Rosa teve traduções muito elogiadas para o italiano e para o alemão, por Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, cujas respectivas correspondências com o autor já foram publicadas. Na língua inglesa os resultados têm sido menos retumbantes. Há traduções para o Grande Sertão (Harriet de Onís) e para Primeiras Estórias (Barbara Shelby), talvez alguma outra, mas nada que produzisse um impacto maior. Parece que no italiano e no alemã houve uma entrega mais lúdica dos tradutores às inesgotáveis novidades verbais da voz que narrava o livro.

Agora a tradutora australiana Alison Entrekin divulgou algumas páginas do seu projeto de tradução do GS:V para o inglês. (Veja entrevista e link: http://tinyurl.com/z6cgsle). São as primeiras páginas do livro, páginas que além do problema da linguagem são extremamente dispersas de assunto, Riobaldo toca nos numerosos temas orquestrais da narrativa, mas como em todo início verboso desse tipo, ele está nos dando ali dicas ou revelações que ainda não temos como avaliar, porque é a primeira vez que estamos ouvindo falar na pessoa A ou no lugar B.

São aquelas páginas introdutórias que parecem ter a função de trazer o leitor mais facilmente para dentro do ambiente onde a história de verdade, a coisa real, vai começar a ser contada pra valer daqui a pouco, depois que todos os cavalheiros e as damas estejam bem assentados, bem acomodados, mas enquanto isso vamos encompridando a introdução para que na hora da narrativa decolemos  todos juntos. Ou seja: é o preâmbulo a-voo-de-pássaro sobre o livro e seu mundo, feito pelos contadores profissionais de histórias nos cafés do Cairo ou os memorialistas não-confiáveis de calçada de venda mineira. Só começa a história quando estiver todo mundo calado e prestando atenção.

O livro de Rosa abre-se com o sésamo famoso: “Nonada”. Eu sempre achei que a tradução inglesa para essa palavra mágica fosse “Nonothing”. Há alguns argumentos em favor disso. Primeiro, mantém a mesma letra inicial.  Se há algum conselho inexplicável que eu tenha para dar, que seja este: “A tradução de uma obra literária deve preferencialmente começar pela mesma letra com que começa o texto original.” Por que? Não sei. Porque assim fica mais bonito.

Nonothing tem também a mesma cadência, três sílabas na cadência fraca-forte-fraca, no-na-da, no-no-thing. É um pé de verso harmonioso em si mesmo, como a constelação das Três Marias. Muito bem. Alison Entrekin começa sua tradução assim: “Nonought”. O que é muito bom também. A inicial é mantida. O sentido é o mesmo, mas com um acréscimo positivo, porque não apenas “nought” (ou “naught”) é uma forma antiga para “nada”, mas sua pronúncia o aproxima de “not”, não. E isso enriquece essas variantes que o cérebro computa à velocidade da luz: não-nada, não-não.

Há o detalhe da cadência, que em “Nonought” é diferente. Esse “ght” final é uma daquelas muitas terminações quase-mudas de palavras, tão frequente em outras línguas e menos assim em nosso português, que tende a percutir cada sílaba como se fosse uma tecla. “Nonought” seria pronunciado talvez “no-nó-t”, com esse “t” (o som que a ele corresponde) constituindo uma meia sílaba, um esvair-se sem terminar. O que aliás se afina com o próprio romance, que não termina com a palavra “Fim”, e sim com o símbolo matemático do infinito.

Imagino não faltar muito para algum gonzo-tradutor propor “Na-nani-nanão” para essa famosa abertura, tão marcante quanto a da Quinta Sinfonia. Mas a parte divertida de traduzir é justamente ter tempo para ficar sopesando todas essas pedrinhas, sabendo que somente uma delas será usada.

Ou pensar numa possível abertura francesa: “Nenéant”. Mais uma vez três sílabas, só que agora em cadência diferente do original, mas uma cadência fraca-fraca-forte que evoca a cauda de uma serpente e no final a cabeça que se ergue. Mais um registro: a tradução inglesa antiga, de Harriet de Onís, ao invés de tentar agarrar “nonada” pelos chifres, adota uma paráfrase inofensiva: “It’s nothing.”

Diz Alison (que já traduziu Clarice Lispector e Chico Buarque, além de autores de projeção mais recente como Paulo Lins, Cristóvão Tezza e Daniel Galera):

“Tirei três semanas de folga do romance em que eu estava trabalhando, e traduzi três páginas [do livro de J. G. Rosa.] Sim, isso mesmo: três páginas, não três capítulos. Numa profissão em que alguns consideram 2 mil palavras por dia uma quantidade razoável como padrão, que tipo de lunático aceitaria de bom grado um texto onde só é capaz de produzir 860 palavras ao longo de três semanas? Claro que eu estava ainda ‘fria’; talvez dentro de mais algum tempo eu pegasse o ritmo da coisa e duplicasse esse número. Mas provavelmente não. Quando um texto é complicado, ele continua complicado.”





quinta-feira, 7 de julho de 2016

4131) Downton Abbey, Temporada 1 (7.7.2016)



Fui ver a primeira temporada dessa série de TV a cabo (Netflix), em parte por curiosidade e em parte por pesquisa. Minha época favorita na literatura e no cinema é a chamada Era Vitoriana. Depois dela, somente a era Pós-Vitoriana, que é justamente esta aqui. Os ano 1910. Aquele teatro social meticulosamente enredado em rituais, convenções, compromissos, proibições, obrigatoriedades. Talvez as pessoas daquele tempo não tenham sido assim mais do que nós mesmos somos hoje; mas, assim como não percebemos os roteiros que seguimos agora cegamente, eles também não percebiam os deles.

Quando comecei a ver a série percebi que ela era um spin-off, uma consequência ao mesmo tempo mercadológica e dramatúrgica do filme Assassinato em Gosford Park (2001), ótimo filme de Robert Altman interferindo meio americanamente numa típica história policial britânica. O famoso “country house mystery” ou “cozy mystery”, o mistério aconchegante. Uma casa de campo onde nobres, burgueses e seus criados interagem em várias tramas complexas de assassinato, inveja, romance, traição.

Gosford Park foi escrito por Julian Fellowes. O novo milênio trouxe reviravoltas econômicas e políticas no mundo, nenhuma das quais foi maior do que a Era da Hegemonia dos Roteiristas, um título que não ocorreria ao mais ousado autor de pulp fiction. Uma vitória mais improvável do que a da Revolta dos Sapateiros. Hoje, pelo menos na TV, há roteiristas que comandam o show, não são o roteirista de estúdio, que recebe encomendas vindas de cima e de desincumbe o melhor que pode. São autores com cacife para conceber os arcos narrativos, com possíveis finais igualmente fortes, e capaz de escrever (às vezes até se meter a dirigir) qualquer tipo de cena para mostrar como deve ser feito.

Séries que gostei e que têm diferentes medidas dessa receita foram True Detective, Breaking Bad, Game of Thrones, Arquivo X, conceitos narrativos que pertenciam mais aos que escreviam do que aos que estavam dirigindo. Quem diria que os roteiristas seriam os mamíferos, após o reinado sáurio dos produtores e diretores!

Julian Fellowes ganhou um Oscar de Melhor Roteiro Original com o filme de Altman, e alguns anos depois emplacou essa série que ele escreve, em princípio, sozinho, com várias pessoas dirigindo os episódios. Não tem o ritmo mais agitado de Altman, mas a própria quantidade de personagens a leva a ter narrativa rápida, mesmo com muitos quadros estáticos. Bons diálogos, cenas curtas, uma certa compressão narrativa que não exclui o suspense de manter situações que só se resolvem ao longo de vários capítulos.

O SBT tinha uma novela chamada Os Ricos Também Choram. O filme-sobre-aristocratas-britânicos acaba sempre revelando, não se sabe se por descuido ou se é por planejamento, que apesar de tudo eles são humanos “como nós”. Só que têm mais dinheiro, e uma espécie de hipnotismo que os domina sempre que certas palavras mágicas são pronunciadas. Eles chamam a isso “valores”, “conceitos”, “premissas inquestionáveis” e outras palavras vagas. No mundo deles, há certas frases que são como a lâmina da guilhotina. Depois que ela cai, de nada adianta subir de novo. Está feito.

Downton Abbey é o mundo dos livros de Henry James, aquele pessoal muito paparicado, muito advertido, muito preparado, muito imbuído das responsabilidades de sobrenome, dinastia, tradição. Aqueles salões sociais à base de intrigas sussurradas, alianças e armagedons, maquinações políticas e armadilhas amorosas. Só que, no presente caso, nada de melodrama ou folhetim. Ao contrário. Tudo à base de inuendos, nuances, entendimentos duplos, deslocamentos de sentido, elipses, síncopes subentendidas.

Era o mundo de Machado de Assis, também. Ressalvando a faixa aquisitiva, a latitude, o pedigri de nobreza, mas era também o da nossa Corte um mundo de salões, de ceias, de recepções, de valsas, de leques, de olhares dissimulados, de cochichos entre patrões e agregados, de coisas que não se deve dizer, de coisas em que pode-se apenas pensar o tempo todo.

Esse clima predominava talvez no tempo vitoriano. O que vemos em Downton Abbey é a continuação disso, o desagregar disso numa certa modernidade onde há uma permeabilidade social maior. Uma das coisas interessantes do seriado são as diferentes maneiras como ele mostra personagens incomodados pelos papéis sociais que precisam exercer, personagens recusando-se a entrar num jogo de fingimentos. Desconfortáveis com sua persona pública ou com as cobranças feitas a ela.

O filme onde Julian Fellowes testou a fórmula com sucesso, Gosford Park, tinha (conforme foi encomendado pela produção) algo de Agatha Christie: a labiríntica mansão, os ricos ruidosos, os criados vigilantes, um corpo na biblioteca. Cronologicamente, no entanto, Downton Abbey está menos para o tempo de Lady Agatha do que para o de Sherlock Holmes, que é de uma geração anterior. A primeira temporada da série de TV vai do afundamento do Titanic em 1912 até a declaração da guerra à Alemanha em 1914. Sherlock Holmes tinha 60 anos quando essa guerra começou. Poderia ter sido um hóspede eventual em Downton Abbey; era a época do seu último adeus.

Em Downton Abbey, a série, se reproduzem os mesmos vasos sociais comunicantes que havia em Gosford Park, o filme. A série é talvez mais emproada, mais cintura-dura, mas a comparação com Altman pode ser injusta. São concepções diferentes: um filme de duas horas e uma série com oito episódios na temporada de estréia. Os dois anos de peripécias dos oito episódios da primeira temporada dariam material folgadamente para uma das nossas novelas em horário nobre, uma novela de duração mediana.

Ao que tudo indica (não gosto de saber spoilers, então me informo pouco) Downton Abbey não deverá ter derrapagens na direção do fantástico, será uma ópera sabão-em-pó de época. A época tinha seu charme e tinha sua sombra. Para cada fidalgo da família de Lord Grantham há um servo seu ou serva sua que está sempre por perto, com fidelidade, rapidez e silêncio. Parece até que cada Dorian Gray tinha um retrato ambulante aos seus pés, definhando para servi-lo. Ou que cada doutor Jekyll tem como servo um Mr. Hyde, ou vice-versa. Não é o caso, me parece. Tudo indica que a dramaturgia será realista até o fim.  Mas por que o romance histórico seria menos nobre que o romance fantástico?


Acabei sabendo que na vida real Highclere Castle, o belo prédio onde se desenrola a narração estritamente realista de Downton Abbey, é um castelo que pertenceu a Lord Carnavon, o financiador da descoberta do túmulo de Tutankhamon, e uma das vítimas mais famosas da famigerada Maldição da Múmia. Fiquei sabendo também que alguns dos seus interiores serviram para as cenas do ritual erótico onde Tom Cruise se infiltra de penetra, em De Olhos Bem Fechados (2001) de Kubrick. São dois precedentes ilustres do quais o previdente Fellowes pode lançar mão para muleta de plot, caso um dia comece a faltar assunto.





terça-feira, 5 de julho de 2016

4130) A poesia marginal (5.7.2016)




A Flip homenageou este ano em Paraty a poeta Ana Cristina César, uma das figuras emblemáticas de uma geração poética concentrada no Rio e São Paulo. Eu daria como figuras também emblemáticas desses dois grupos Chacal, no Rio, e Glauco Mattoso em São Paulo, sempre ressalvando que quaisquer dois poetas são tão diferentes quanto quaisquer dois poemas, e que a poesia de cada poeta do mundo, boa ou ruim, é única e intransferível.  

Essa turma se espalhava Brasil afora, e cada capital, pelo menos, tinha seu surto de pessoas meio descabeladas vendendo livrinhos artesanais e recitando onde quer que pudessem ser ouvidos por alguém. A turma se chamou ou foi chamada de “poesia marginal”. Um termo que ainda hoje é questionado, defendido, relativizado ou metaforizado em mesas de bar. Cada um vê de um jeito.

Na Paraíba eu lia a imprensa alternativa da época, conhecia muitos poetas, e tinha a impressão de que “marginal” indicava uma coisa meio encalhada nas margens, ao invés de fluir com a credibilidade e o peso que tem a corrente principal do rio. Os critérios de qualidade ou representatividade são definidos na área dominada pelo mainstream estético. É a região da literatura formal, no sentido que damos a “economia formal”: a literatura das editoras. A literatura que requer contratos, protege direitos, taxa atividades, registra ISBN, escaneia código de barras. No extremo de sua cauda ou na aresta de sua barbatana está a literatura informal, a que não faz nada disso, a que (ou as que) escrevem, publicam e circulam como lhes der na telha e lhes couber no bolso.

Se a literatura que encontramos nas grandes livrarias e nas bibliotecas e nas premiações públicas e privadas e nas listas de mais vendidos e nos catálogos das editoras mais disputadas é o mainstream, a poesia marginal seria aquela sucessão de remansos, de poças, de infiltrações de uma água inquieta que, não conseguido correr na direção do mar junto com a corrente principal, resolve desbravar terra adentro.

Vista à distância, a informalidade econômica dos marginais de cantina de universidade e barzinho boêmio era a mesma do cordelista de gráfica e de feira. Era o livro de quem não tem direito ao livro.

O poeta marginal sabia que editora não ia fazer o livro do jeito que ele queria. E pensava: Vou fazer eu mesmo, tenho mil opções baixo-orçamento. O livro é meu, então se eu quiser eu boto palavrão, boto foto de cabeça pra baixo, boto capa do meu primo que desenha melhor do que eu, deixo a ortografia do jeito que Deus mandar. A marginalidade significava para muitos ser totalmente livre num pequeno espaço.

Viajando e recitando por aí, de 1980 em diante, percebi que para muitos leitores do público em geral (não os leitores das várias turmas que acompanhavam esses poetas, o fã-clube de cada um) a primeira conotação que vinha à mente ao ouvir a palavra marginal era “bandido, assassino, criminoso”.  No meu dicionário pessoal essa seria apenas a opção 2, mas as pessoas nos perguntavam: “Poesia Marginal?! Então vocês fazem poesia assassina, poesia estupradora, é isso?”  O fato de que os poemas não recuavam diante de palavrões, escatologia e humor politicamente incorreto não ajudava muito.

Talvez os olhos do público localizassem elementos de marginalidade no cabelo do pessoal, no modo de vestir, aquele jeito descuidado consigo mesmo, o jeito relaxado de ser. Muitos poetas ditos marginais se vestiam de maneira civil e corriqueira, mas a imagem que grudou foi essa. Em tal grupo pendia mais na direção de um contracultura de língua inglesa aclimatada nos trópicos (e no semiárido), em outros assumia tintas de universidade misturada a morro ou periferia, pois nada disso jamais saía de cena.

Uma das coisas mais abençoadas dessa poesia era a informalidade da forma e a graça do conteúdo. Duas libertações para quem até então vivera preso no cárcere geométrico da estrofe fixa e na seriedade existencial do poema longo. Todos pediam a bênção a Oswald de Andrade, que pode até nem ser o pai do poema piada, do poema relâmpago, do poema zás-trás, mas foi um dos seus grandes mestres e militantes.

Para alguns, o mais refinado autor do poema curto foi o marginal Paulo Leminski, que de fato trouxe para ele a velocidade verbal de uma katana. O poema curto em duas partes é uma forma que é a cara de Leminski. O hai-kai dele é uma lâmina descrevendo a marca do Zorro no ar.

Nenhuma literatura devia menosprezar as possibilidades do poema curto. (Nem do poema longo: penso no poema épico de 12 mil versos, ninguém o liga há tanto tempo que já teve ter descarregado a bateria, coitado.)  Ao poema curto cabe ainda mais a descrição do poema dada por Armando Freitas Filho no filme de Walter Carvalho sobre sua poética: algo pequeno, mas complexo. Invoco como provas disso, perante este tribunal, dois usuais suspeitos: o haikai japonês e a sextilha nordestina. Se nessas duas formas fosse impossível a perfeição, ninguém tentaria tanto. Tenta porque já viu a perfeição-possível brotar ali, numerosas vezes.

A frase devastadora, a piada instantânea, o aforismo acachapante, a metáfora perfeita, a definição definitiva: tudo isso é muito valorizado em nossa cultura verbal, e a poesia marginal (com todos os desdobramentos que a sucederam) deu repetidos exemplos de que é possível driblar o silêncio e a linguagem ao mesmo tempo, num espaço do tamanho de um lenço.

Pois é, eu ia comentar alguns aspectos editoriais que acho interessantes, aí fiz um cerca-lourenço tão grande que acabei numa vindicação do poema curto. Curto também porque na verdade eram livrinhos, opúsculos minúsculos, livretos, folhetos, amostras grátis. Poesia é feita de numerosas partes pequenas que podem ser rearrumadas de mil maneiras dentro de um retângulo. Eram livrecos, daqueles que não era muito caro mandar imprimir 100, porque vendendo 40 já pagava o custo, o resto você podia distribuir de graça, e daí em diante o que aparecesse era o da cerveja. Era melhor mesmo que fosse livrinho, pra ser pequeno, pra caber na bolsa do vendedor um pacote e no bolso do freguês uma unidade. Como às vezes o livrinho era datilografado, xerocado e reproduzido, o tamanho da letra era uma constante difícil de negociar. Em alguns casos ela determinava a quantidade de texto possível na página.

Passaram-se os anos. O rio estatal e corporativo ficou mais grosso, mais largo, e onde havia margens ele hoje corre, levando tudo consigo, para as cátedras, as efemérides, a História. Não é a marginalidade que finalmente solta âncora e faz-se ao mar.  É o capital, esse rio automultiplicado em zeros, que engrossa e chama tudo para dentro de si. O centro por enquanto se sustenta, e enquanto se sustenta ele engrossa, empurra as margens para a periferia, que é de onde vêm agora os cabeludos que eu fui ontem e que escreverão sobre estes tempos amanhã. O mainstream fornece a água financeira, o tempo, o movimento. As margens fornecem a terra, a substância.







sexta-feira, 1 de julho de 2016

4129) Manuscrito encontrado numa garrafa térmica (1.7.2016)



Se isto aqui fosse um romance, refiro-me ao gênero literário, não ao coeficiente amoroso-afetivo da história narrada, eu começaria falando de mim mesmo e das origens dos dois ramos familiares que me deram origem; fá-lo-ia enumerando antepassados, entreparando aqui e ali para narrar um episódio edificante ou uma anedota familiar... enfim, dando uma idéia completa da linhagem que me produziu e só então, mesmo que já fosse lá pelo terceiro volume, dando início à narração das aventuras propriamente ditas do personagem introduzido com tanta largueza, ou seja, eu mesmo. Acontece que isto aqui não é um romance, muito menos esses do tempo em que se usava pena e tinteiro; isto aqui é uma carta frenética, desesperada, rabiscada às pressas no convés de um navio impossível que se aproxima de um desenlace fatal, uma catástrofe tão horrenda quanto inevitável, mas mesmo sendo certo o nosso fim restam-me alguns minutos em que, em meio à balbúrdia geral, rabisco com força estas linhas que pretendo antes do instante final arremessar para longe do navio devidamente arrolhadas no interior do objeto flutuante que não nomearei para não ofender a inteligência do leitor de hoje em dia.

Vejam só, metade do tinteiro já se foi e num certo sentido ainda nem comecei! Mas, reiterando o que acabei de afirmar: é irritante constatar que uma parte da crítica continua a exigir da literatura contemporânea a presença de certos efeitos narrativos, certos jogos de cena, certas cerimônias de cumplicidade entre autor e leitor diante da inverossimilhança irremediável de certas partes da obra, mas afinal o leitor compreende que o autor se diverte escrevendo aquilo, e o autor pressupõe, porque pressupor é um karma dos solitários, que o leitor vai dar grandes gargalhadas com aquilo e recomendar a algum amigo. Nada temos contra certas convenções literárias, mas francamente, exigir que todo início de texto comporte um resumo genealógico do protagonista é como querer impor aos poetas, como modelo, esses poemas onde todas as palavras têm a mesma inicial.

É por isso, e por outras coisas além disso, que a jovem geração da literatura contemporânea procura refugiar suas obras por trás de anteparos conceituais como “movimento X”, “manifesto Y”, “escola Z”, e talvez não seja cabotinismo de nossa parte supor o surgimento possível de um gênero designado por algo como “Histórias de Navios Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença Divina”, e que um dos pressupostos do gênero fosse, na clivagem moderna dessa escolha, a preferência pela narrativa rápida, incisiva, crucial, frases curtas qual navalha, mas sem abrir mão do apanágio de toda a literatura que se preza durante os derradeiros decênios, a literatura da perquirição subjetiva dos meandros do ser, porque mesmo nessas narrativas, digamos, forjadas no calor da refrega, o pensamento humano ainda é capaz de elevar-se altaneiro, pairar por cima das procelas, distanciar-se espiritualmente o tempo necessário para ver parar o tempo, parar e estender-se todo, oferecendo-se, diante de si.

Note-se que (vou ter que resumir essa discussão, o oceano se escancara, lá vem a Coisa) não há nenhuma conotação sobrenatural no uso acima da palavra espírito, porque para nós ela representa uma epifania totalmente nos domínios dos neurônios, mas cuja intensidade leva a vítima (pois não pode ser outro o termo) a procurar uma explicação de grandeza cósmica para o que lhe aconteceu.


Enfim – são muitas as questões de peso (nem vou falar na tinta, que só resta um tantinho) sobre essa questão dos textos fundadores do gênero das “Histórias de Navios Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença Divina”; deixando a questão em aberto, convoco meus pares para a discussão destes palpitantes temas, tudo isto, é claro, dependendo da possibilidade deste invólucro-ao-mar ser avistado, ser recolhido, ser aberto, ser lido, ser decifrado, ser compreendido, ser divulgado, ou seja, ironicamente: supondo que aconteça a este farrapo mal escrito e salpicado de água e sal o que não aconteceu aos muitos livros que publiquei na treva e que da treva jamais saíram, mas o que importa é ser otimista, de modo que vou terminar isto, dobrar, enfiar no seco interior da garrafa, naquele labirinto cilíndrico espelhado, este relato de improviso que pode até talvez pecar no factual, mas contém o gérmen da uma discussão cuja importância me trouxe força extra ao braço que atirou a garrafa cor-de-laranja por cima da amurada, entregando confiante estas linhas à magnanimidade das ondas, onde boiaram por muito tempo antes de serem recolhidas, desdobradas, lidas pela primeira vez, futuro leitor, como está acontecendo agora, e----vi------dente---------------  




terça-feira, 28 de junho de 2016

4128) O Natal, o Carnaval e o São João (28.6.2016)



“Existe o tempo de apertar o pavio da vela”, diz o Eclesiastes, “e o tempo de acender.” 

Não, o Eclesiastes não diz especificamente isto, mas a verdade é que os tempos se sucedem em função de uma lei causal, não em função de nossa conveniência. O regimento interno do mundo tem um artigo dizendo que cada coisa na vida vem, ou deveria idealmente vir, o que dá no mesmo, no momento certo para a gente desfrutar.

Em vista disto, proponho meu axioma número um: “O tempo certo para o Natal é a nossa infância”. Como diria Sinhozinho Malta, chacoalhando a joalharia: “Tô certo ou tô errado?”. 

Na infância, até o mais salafrário dos futuros raparigueiros é a pureza em pessoa. Ele acredita que o algodão é neve, e acreditaria que crediário é dinheiro, se alguém se dispusesse a lhe explicar. Acredita na existência de Papai Noel, e se alguém lhe mostrasse o quanto é improvável esse “plot” envolvendo Lapônia, renas, trenó, tempo hábil de deslocamento e distribuição logística de cargas, ele retrucaria com o mais invulnerável dos argumentos, um fato: a caixa com o sonhado PlayStation reluzindo ao pé do pinheirinho piscante.

A infância é o tempo do Natal, de rasgar sofregamente o papel estampado, quase arrebentar a tampa de papelão que se ergue como Derradeiro Obstáculo à Visão Beatífica... E o que sai lá de dentro? Uma divindade refulgente? Não, apesar do tributo pago ao bezerro de ouro: um sonho impossível tornado realidade. 

O sonho de fazer teletransportar, mediante anseios, meios-pedidos, sugestões, melancolias inexplicáveis, dedos hesitantemente correndo sobre uma página de revista e indicando um produto ao olho presciente e calculista de um adulto, enfim: teletransportar por meios psico-econômico-científicos desconhecidos (mas certamente eficazes) um objeto que estava numa vitrine lá no centro da cidade para uma caixa de papelão aqui no meu colo, e não é por outro motivo que ainda hoje vou às lágrimas quando ouço Luís Bordón – A Harpa e a Cristandade.

Corramos um véu sobre as chantagens, as alianças espúrias, as delações premiadas, os subornos imperceptíveis, as guinadas morais, as vergonhas-alheias, os inesperados triunfos, as imprevistas responsabilidades, tudo o que a infância nos obriga a executar para virar gente. O fato é que, quando abrimos os olhos, ela se foi de repente. Negociamos tanto para sair dela, e agora a porta dela se fechou e é só para a frente que podemos saltar.

E vamos parar na famosa juventude.  Ponho de novo a coroa-de-louros de profeta e anuncio o axioma número dois: “O tempo certo para o Carnaval é a juventude”. 

Pense numa festa e num período pra darem certo que só caçuá em bêsta!  A juventude é uma doença infantil da vida humana. A gente pensa que de agora em diante tudo vai ser gratificação dionisíaca, com breves intervalos de poesia apolínea para acalmar os batimentos cardíacos. E o Carnaval nos serve como uma luva de carne.

Não há melhor época para entender a essência do Carnaval do que a febre hormonal dos vinte e tantos anos. Diante daquela coorte de deusas eufóricas, de odaliscas lantejouladas, de huris de vinho em punho, de hetaíras ressumantes, o sujeito olha para a câmera ou a quarta-parede imaginária, diz: “Se eu gritar por socorro não me salve”, e pula. É Carnaval; todos pulam. Todos pularam. Eu também pulei.

Carnaval tem uma coisa interessante que é o desabrochar de carismas nas circunstâncias em que aparentemente todos se nivelam em torno do canto do bode. E eu já fui testemunha, protagonista e coadjuvante em mil cenas onde o carisma salvador brotou do ator menos provável, do papel menos favorável, do arranjo menos ad-hoc. Vi noitadas de farra em que o talento que mais brilhou foi o talento inconteste celebrado por todos, e vi noitadas em que um talento obscuro se ergueu e o eclipsou a ponto de fazê-lo bater palmas com os demais e louvar a divindade da Lua, a deusa que muda todo mês, mais esperta e mais safa do que o Sol, que só muda de luz quando Ela atravessa o seu caminho.

Não posso me alongar sobre o Carnaval sem reviver aquelas horas que eram como correntinhas-de-clipes, intermináveis, reiterativas, sempre parecidas e sempre diferentes, variações barrocas em torno de uma tema gozoso que nos aprisionava em chuva, suor e cerveja. 

Quem brincou um Carnaval já foi jovem, mesmo que tenha estreado nesse ramo com mais de setenta. Quem quiser que reclame. O fato é que quem estava acendendo cigarro com fogo e bebendo álcool éramos nós, mas curiosamente, historicamente, estatisticamente, quando alguém tocava fogo no mundo não era um de nós, em geral, era um deles.

Muito bem. Chega de acondicionar com circunlóquios o Inefável. E para a velhice, a madureza (dirá o leitor), qual a festa que mais se enquadra? E eu vos direi: o São João. 

São João não é necessariamente uma festa de velhos, mas é pra quem já deu voltas no circuito e sabe o formato da pista. O formato envolve plantio, colheita, consumo e plantio. O formato envolve gozo, sofrimento, morte e ressurreição. O formato envolve, neste caso específico, fogo e inverno. 

O Natal é uma festa voltada para o Futuro (“tudo sempre vai ser bonito assim, acredite, é para sempre”), o Carnaval para o Presente (“nada será como antes amanhã”), mas o São João é uma festa voltada não propriamente para o Passado, mas para o Passar.

A lenha, o fogo, a cinza. 
O fogo, a cinza, a terra. 
A cinza, a terra, a lenha. 
A terra, a lenha, o fogo. 
A lenha, o fogo, a cinza.

Isto é tudo que conseguimos saber, e uma pequena parte do que deveríamos.




quinta-feira, 23 de junho de 2016

4127) Um "Divertimento" de Cortázar (23.6.2016)




Escrito, ou pelo menos finalizado, no carnaval de 1949, Divertimento (Madrid: Alfaguara, 1986) é uma das primeiras obras em prosa que Julio Cortázar escreveu e publicou, tendo ficado inédita por muitos anos. Na contracapa, Cortázar explica o que salvou o livro: “Me agradam de maneira irremediável sua linguagem livre, sua fábula sem moralzinha, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.”

Ele se referia a este livro e a El Examen, escrito em 1950 e publicado apenas em 1986 após a sua morte. Eram livros de uma Buenos Aires meio asfixiante pelas guerras políticas. O clima de repressão fez o escritor mudar-se para Paris em 1951. Depois dessa data, voltou a sua terra natal apenas a trabalho ou a passeio.

Divertimento é a história curta (146 páginas) de um grupo de amigos argentinos: artistas, boêmios, reúnem-se para conversar, ouvir música, beber, rir, discutir filosofia ou literatura, pintar. Neste aspecto, pode ser visto como um protótipo de O Jogo da Amarelinha (1963) que lida com pessoas um pouco mais velhas e já em Paris. O narrador da história, na primeira pessoa, é chamado pelos outros de O Inseto. Há vários detalhes interessantes, como um poeta que tenta produzir auto-alucinações verbalizadas em voz alta, como os surrealistas franceses faziam com sua “escrita automática”. Há uma espécie de mago meio charlatão, que parece invocar espíritos. Diz o Inseto a certa altura: “Nossos gostos eram Florent Schmitt, Bela Bartok, Modigliani, Dalí, Ricardo Molinari, Neruda e Graham Greene. O gato Thibaud-Piazzini escapou por um triz de se chamar Paul Claudel.”

Há poetas de estilos variados. Pergunta-se a um deles se ainda produz sonetos e ele diz: “Sim, mas como alguns produzem cálculos na bexiga.”  Há um fio de narrativa de mistério que a partir de certa altura arrasta a história rumo a um clímax. Renato, um pintor, mostra aos amigos um quadro em que está trabalhando, quadro que mostra uma rua ao amanhecer, com casas reconhecíveis, e duas figuras humanas misteriosas. A partir daí, alguns personagens se entregam a uma tarefa aparentemente impossível e absurda: andar pelos bairros da cidade à procura da rua mostrada no quadro de Renato. É uma dessas situações que Cortázar apreciava, como leitor e como autor: uma obra de arte ou um simples objeto cuja presença produz uma modificação ominosa na realidade. Outra subtrama é: a Busca Impossível. Em Cronópios & Famas ele sugere dar um nó num fio de cabelo, despejá-lo pela descarga da privada, e depois sair desmontando o edifício e esvaziando tubulações e manilhas grudentas de lodo secular, rua afora, até reencontrá-lo.

Falei em O Jogo da Amarelinha; não lembro de nenhuma cena de espiritismo nele, mediunidade, mesa Ouija ou coisa semelhante. Estas aparecem em Divertimento. Os dois livros têm em comum o ambiente de confraternização artístico-boêmia, mesclado com alguma rivalidade filosófica ou política. Essas turmas tornaram-se uma espécie de RPG poético-jazzístico-filosófico a que os personagens de Cortázar se dedicam. É o Clube da Serpente frequentado por Oliveira, no Jogo da Amarelinha; os exilados políticos de Livro de Manuel; os personagens meio bidimensionais, mas rebuscados, de 62: Modelo para Armar e outros. Turmas de esgrimistas verbais metendo-se em rosários de episódios com um pé em Jorge Luís Borges e outro em Jean Cocteau.

Por falar em poesia, Borges de vez em quando tirava um chapéu cerimonioso à milonga, e mais de uma vez arriscou suas estrofes nesse gênero, ou mescla de gêneros. Cortázar arriscou-se menos como poeta, mas uma prova do seu ouvido é este parágrafo em Divertimento:

“... e do picape saía a voz de Hugo del Carril: que el bacán que te acamala tenga pesos duraderos, que te abrás en las palabras con cafishos milongueros, y que digan los muchachos: “es una buena mujer.”

Pelo autenticidade do palavreado argentino não posso botar a mão no fogo, mas pela sextilha sim, porque é uma sextilha rimando ABABCD. (Imagino que seja citada, e não inventada. Hugo del Carril é um cantor de tango da geração de Cortázar.) Há uma milonga de Borges, Milonga dos dois irmãos, toda em estrofes de seis versos, mas com inversões de rimas, mais próximas do esquema do Martin Fierro, que Borges aliás conhecia muito bem. Tudo isto são pequenos detalhe cotidianos, da cultura radiofônica das ruas, que o autor insere como elemento realista numa trama próxima do insólito.


O fantástico cortazariano é mais uma questão de estranheza, presságio, simetrias assustadoras, alucinações, fatalidades. Muito daquilo que Freud chamou de Unheimlich, o Estranho. O sobrenatural aparece pouco. Suponho que logo após este livro ele já estava escrevendo os contos de Bestiário, onde essa tinta de fantástico se intensifica, como se alguém girasse só um pouquinho um botão, aumentando o contraste daquilo com o real-banal (que ele também reimagina tão bem). 





segunda-feira, 20 de junho de 2016

4126) T. S. Eliot, a poesia e a música (20.6.2016)



A imprensa literária tem comentado uma edição recente, em dois volumes, da poesia completa de T. S. Eliot, fartamente comentada. Eliot, mesmo incluído entre os Modernos, representa pra mim um lado conservador da poesia do seu tempo, no que isto tem de elogioso. Temática à parte, filosofia pessoal à parte, erudição à parte, o poeta Eliot é um poeta de musicalidade à flor do verbo.

Não é a musicalidade relativamente fácil de Poe, a quem chamavam de “the jingle-jangle poet”, ou “o poeta do retintim”, segundo Jorge Luis Borges. A melodia dos versos de Poe se organiza em geral numa mandala, num bordado simétrico onde não falta um ponto sequer. Já a melodia de Eliot é variável, é uma melodia irmã-gêmea do verso livre. O verso não é “livre” no sentido de que é um verso onde vale tudo, um verso que faz o que lhe dá na telha. É um verso de metro variável, que é livre porque parece estar metrificando a si mesmo enquanto nasce. Propondo (e cumprindo) novas regras de ritmo em cada palavra que vai articulando.

Isto porque Eliot, apesar das variações naturais ao longo da vida longa de um poeta, parece ter tido sempre em mente alguns juízos que emitiu em 1942, numa conferência intitulada “The Music of Poetry”. Ele diz, entre outras coisas;


Existe uma lei da natureza mais poderosa do que qualquer uma dessas várias correntes poéticas, do que as influências do estrangeiro ou do nosso passado: a lei de que a poesia não deve se afastar muito da linguagem comum e cotidiana que nós usamos e ouvimos. Seja a poética acentual, seja silábica, rimada ou sem rimas, de forma-fixa ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com a linguagem sempre mutante da nossa fala comum.

Existe na melhor poesia dos séculos uma gravitação recorrente rumo à musicalidade da fala. Sempre haverá, é claro, o oposto disto, sempre haverá uma fascinação paralela pela poesia feita para os olhos: caligramas, concretismos, poema-processo. Nada disso, contudo, consegue invalidar (nem precisa) a poesia que pende para o lado auditivo, a percepção sensorial da melodia e do ritmo produzindo sentido através da fala poética.

Num artigo examinando esta compilação recente (feita por Christopher Ricks and Jim McCue, aqui: http://tinyurl.com/hgyawrs), Marjorie Perloff comenta alguns detalhes interessantes e obscuros sobre as grandes obras de Eliot. Ela cita um comentário do poeta sobre a origem do título de um dos seus poemas mais famosos, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”:

Estou convencido de que esse poema nunca teria a expressão “canção de amor” em seu título se não fosse pelo título de um poema de Kipling, “The Love Song of Har Dyal”, que se grudou teimosamente à minha memória.

A poesia de Eliot é muito diferente da de Kipling, a qual, neste sentido, era uma poesia quadradona, como a de Poe: formas fixas, rígidas, obedecidas fanaticamente até a derradeira rima e a derradeira sílaba. É uma poesia que tem muito de canção, porque Kipling não apenas metrifica perfeitamente, mas manipula os acentos internos de cada verso de maneira tão cadenciada que cada poema seu parece estar pedindo para receber uma melodia. Toda vez que leio os poemas de Kipling tenho vontade de pegar o violão.

Num texto antigo aqui neste blog, escrevi:

Diz-se que Rudyard Kipling costumava compor seus poemas de cabeça, enquanto cuidava do jardim. Ficava solfejando hinos protestantes, baixinho, mas as pessoas da família sabiam que ele estava de certa forma “botando letra” nesses hinos – estava compondo um poema valendo-se da estrutura mnemônica do hino. Fico pensando que curiosa tese de doutorado isto poderia render, se alguém de cultura inglesa-protestante se desse o trabalho de comparar os poemas do mestre aos hinos em voga durante o seu tempo de vida. Como dizia o poeta – ‘de la musique, avant toute chose!’
(http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/02/1635-com-musica-nos-ouvidos-862008.html)

“The Love Song of Har Dyal”, de Kipling, na voz de uma mulher que espera o retorno do guerreiro que ama, é uma canção de amor mesmo, um lamento em nome de uma personagem, como as canções de amor dos personagens das peças de Brecht. É um gênero milenar, que toma a forma da cultura que deve conter dentro de si.

The Love Song of Har Dyal 

 

Alone upon the housetops to the North
I turn and watch the lightning in the sky—
The glamour of thy footsteps in the North.
Come back to me,
Beloved, or I die. 
Below my feet the still bazar is laid—
Far, far below the weary camels lie—
The camels and the captives of thy raid.
Come back to me,
Beloved, or I die! 
My father’s wife is old and harsh with years
And drudge of all my father’s house am I—
My bread is sorrow and my drink is tears.
Come back to me,
Beloved, or I die!

Já “Prufrock”, a canção de Eliot, embora tenha o amor como um horizonte inatingível, é tudo menos uma canção de amor. Prufrock é um personagem travado, reprimido, patético.  Até o nome sensaborão de J. Alfred Prufrock nos lembra o nome do anódino e vitorioso J. Pinto Fernandes usado por Carlos Drummond em “Quadrilha” (“Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha nada a ver com a história”). Talvez seja até uma alusão indireta por parte de Drummond, já que o poema de Eliot, de 1915, possivelmente lhe era familiar.

A canção de amor de Kipling é tradicional e formulaica: forma fixa, rima regular (ABAB), estribilho. Pede para ser cantada com uma melodia também quadrada (no bom sentido). Já a canção de amor de Eliot tem rimas entrelaçadas, cadências variáveis, um desenho rítmico imprevisível em que nenhuma regularidade nos autoriza a prever de que tamanho será a próxima linha, mas quando surge ela prolonga harmoniosamente o desenho principal.

No ensaio que citei, Eliot afirmava: “Nenhum verso é livre para um homem que pretende fazer direito o seu serviço. (...) Uma grande quantidade de má prosa já foi escrita sob o nome de verso livre.”  Esse reconhecimento da necessidade rítmica do verso livre é um traço de união entre a obra dele e a de Manuel Bandeira, seu contemporâneo. O Itinerário de Pasárgada (1957) pode ser lido lado a lado com o ensaio de Eliot, na mesma defesa do verso livre como uma região de equilíbrio entre as formas fixas da tradição, a espontaneidade e vigor da fala, e as lições da música.

Alguém pode achar que essa discussão sobre verso livre é uma discussão de cem anos atrás, mas a verdade é que gerações sucessivas de novos poetas tendem a pensar que verso livre é verso banda-voou, é verso qualquer-nota, e que basta estar dizendo algo importante ou original. Cada um escreve com o que tem, mas que isto não nos impeça de ver a forma superior quando ela aparece.

Comentando os simbolistas franceses (com os quais se identificava mais do que com a poesia inglesa), Eliot dizia: “O prazer que se extrai da irregularidade desses versos se deve à sombra ou à sugestão da existência, por baixo dele, do verso de métrica regular.” E ironizava certa produção poética de D. H. Lawrence dizendo que seus versos livres “pareciam mais anotações feitas aos poemas do que poemas propriamente ditos.”

Ezra Pound, o homem que copidescou “The Waste Land”, dizia que a grande poesia era composta de três elementos: idéia, imagem e música. (Na terminologia dele, Logopéia, Fanopéia e Melopéia.) Eu diria que na poesia de hoje, vista em plano geral, do alto da montanha, é a música o que mais falta. E é mais uma vez o autor de “Prufrock”, em seu ensaio de 1942, quem afirma:

Um poeta pode sair ganhando muito do estudo da música; quando conhecimento técnico da forma musical será desejável eu não sei, porque eu próprio não tenho tal conhecimento. Mas acredito que as propriedades em que a música toca de perto o poeta são o senso do ritmo e o senso de estrutura. (...)  Um poema, ou um trecho de poema, pode tender a se realizar primeiramente como um ritmo peculiar antes mesmo de encontrar sua expressão em palavras, e esse ritmo pode fazer nascer a idéia e a imagem.