quinta-feira, 10 de abril de 2025

5170) Meu artista me decepcionou (9.4.2025)




Está acontecendo cada vez mais. Você é fã incondicional de obra de um(a) artista, lê, assiste, compra, coleciona, elogia, divulga, endeusa... E um belo dia o seu ídolo ou sua ídola revela um comportamento ou uma atitude que faz você recuar com o olhar cheio de horror. 
 
Tem alguns exemplos recentes e incômodos. Vou citar estes sem nenhuma intenção especial, apenas porque são autores que eu conheço e que (imagino) muita gente conhece. 
 
J. K. Rowling, a autora da série “Harry Potter”, andou falando contra as mulheres trans, nos últimos tempos. Não li as declarações originais. Não sei se foi em entrevistas ou em artigos, mas não importa: não estou aqui para acusá-la nem para defendê-la – apenas registro o quanto me assustei com a virulência dos ataques contra ela, virulência proporcional ao sucesso espantoso dos seus romances. (Só li dois; gostei, e dispensei-me de ler os outros cinco.) 
 
Outro exemplo que me ocorre é o de Neil Gaiman, este sim, um autor que admiro e sobre quem já escrevi várias vezes neste blog. Li vários artigos e depoimentos detalhados sobre as violências sexuais e psicológicas que ele praticou contra mulheres jovens e relativamente indefesas. E mais uma vez fiquei impressionado com a reação de uma parte do seu fandom, meio no tom de “vou queimar os livros todos em praça pública”. (Aliás, mesmo condenando as ações de Gaiman, aviso que se alguém quiser se desfazer de uma coleção completa do Sandman, pode mandar aqui para casa, pois tenho alguns volumes faltando.) 
 
Vou ficar com estes dois exemplos por enquanto, mas a lista poderia ser aumentada. Há um formato em casos assim. Alguém começa a produzir uma série de obras que, pelos motivos imprevisíveis de sempre, vendem dezenas de milhões de exemplares no mundo inteiro e dão a essa pessoa riqueza e poder impressionantes. E então essa pessoa faz algo que nos decepciona moralmente. E a reação é uma só: passar do amor para o ódio, da exaltação para o cancelamento. 
 
Em casos assim, eu sempre tento parar de pensar como fã e pensar como um crítico. Não é fácil, precisa de treino, mas basta treinar. 
 
Não vou discutir aqui o comportamento de Rowling ou Gaiman, mas a reação dos seus leitores. Por que tanto ódio por uma pessoa que até ontem à noite, até a leitura da notícia, era amada incondicionalmente? E a resposta: por isso mesmo. 
 
Nós, fãs, caímos na armadilha de amar um autor, amar um artista, projetar nesse ou nessa artista uma idealização moral e afetiva que só pode ser descrita em termos amorosos. 
 
Não é somente hipérbole, somente exagero, quando um leitor diz: “Eu amo de paixão os filmes de Pedro Almodóvar”, ou “Eu sou louca por Woody Allen”, ou “Sou apaixonado por Bob Dylan”. O leitor não conhece pessoalmente essas ilustres figuras; conhece a obra, e a “persona” pública, mas cai na armadilha de entregar a esse nevoeiro distante sua fé e seus anseios emotivos.
 
Nossa cultura (no mundo ocidental, terceira década do século 21) alimenta o conceito de Amor (e sua versão turbinada, a Paixão) como um valor absoluto, necessário, obrigatório e indiscutível. Não basta afirmar que o Amor existe: é preciso afirmar que ele é compulsório, que todos nós temos a obrigação de amar alguém nestes termos. 
 
No mundo de hoje, é mais fácil encontrar alguém que questione a existência de Deus do que quem questione a existência (ou a necessidade de existência) do Amor. 
 
Quem ama, exige. Quem ama, impõe sobre o objeto amado a Tirania Desejante, e cobra a perfeição desse objeto amado. Porque quem ama traz dentro de si um vácuo que só a perfeição pode preencher. 
 
Precisamos disso como de água ou de oxigênio. (Precisamos em nossa cultura – o Amor não é, repito, não é um valor universal.) 
 
Dizia Carlos Drummond: 
 
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
(“Amar”, em Claro Enigma, 1951)
 
Quando a obra de um(a) artista nos atinge de maneira especial, provoca em nós, fãs, um sentimento não muito distante do amor, do nosso amor-paixão por uma pessoa. 
 
E o fervor cancelatório de um fã decepcionado, nesta minha equação, equivale à de um amante traído. 
 
A obra desse artista de quem sou fã me iluminou por dentro, me abriu janelas para entender melhor o mundo, me enriqueceu como pessoa, me acalentou em momentos de desânimo ou de ceticismo-negativo. (Sim, existe o ceticismo-positivo – é o que me faz escrever.) 
 
A obra do artista tornou-se uma parte preciosa da minha vida de fã, tão preciosa que acabo me esquecendo de um fato essencial: essa obra é provavelmente o que há de melhor naquele artista. 
 
Ele esforçou-se em depurá-la, aperfeiçoá-la, torná-la mais bela, ou pelo menos mais nítida, de maneira a comunicar a alguém (a mim, no presente caso) uma impressão fugidia de como deveriam ser as coisas do mundo, e não são. 
 
Essa forma incipiente de perfeição que a Obra nos provoca acaba nos dando a impressão de que o artista é superior à obra – quando na verdade é o contrário. Todo grande artista é inferior ao que produz. 
 
Drummond dizia, num dos seus momentos de revolta (em “A Flor e a Náusea”) que “meu ódio é o melhor de mim”. Poderia dizer o mesmo do seu amor, e do seu verso, que era o resultado da briga entre esses dois. 
 
É a obra que nos apaixona, e na nossa imprudência transferimos esse afeto para a pessoa que criou essa obra, na comovente ilusão de que essa pessoa é alguém melhor do que nós, sem os nossos defeitos, sem os nossos lados rancorosos ou ridículos. Alguém que nos sirva de mestre à distância, e que possamos seguir e obedecer de olhos fechados. Porque quem é fã, quem é fanático, procura justamente isto – alguém a quem obedecer e seguir de olhos fechados. 
 
Quem tem visão crítica (ponho neste termo a ênfase mais elogiosa possível) é capaz de abrir os olhos, enxergar, interpretar, avaliar, e, quando necessário, dar um passo de lado, ou para trás, ou para fora da fila, e dizer: “Comigo, não.” 
 
 

 



Um comentário:

Jaime Guimarães disse...

"essa obra é provavelmente o que há de melhor naquele artista." E às vezes, a única coisa que há de melhor. Eis o poder da arte. Quanto à sanha cancelatória? É barulho e histeria. Fico com a obra, sempre.