Os aficionados da cantoria de viola vivem a me perguntar se Zé Limeira existiu de verdade. Curiosamente, ninguém me pergunta o mesmo sobre o poeta violeiro Bandeira Sobrinho, com quem conversei muito, bebi, viajei, glosei motes, e que para muita gente não é uma pessoa real, vive apenas no mundo dos personagens diegéticos.
O diretor do Museu de Arte era José Umbelino, que convocou o maestro
Pedro Santos para a tarefa. Pedro Santos, grande sujeito, era de João Pessoa e nessa
época estava pagando os pecados em Campina, porque no Museu quem mandava
era a gente, e não tinha hora de funcionamento.
– Maestro, este aqui é o poeta Bandeira Sobrinho, meu grande
amigo. Ele vai cantar as melodias e você copia.
– Muito bem, vamos lá.
Fui tomar um café na cantina e voltei meia hora depois
para constatar um impasse entre os dois.
– Algum problema?
– Não propriamente um problema – disse o maestro, que era
o rei da paciência e da diplomacia. – Mas cada vez que eu peço pra repetir ele
canta uma melodia diferente.
– É a mesma – insistiu Bandeira, já arrufando as penas.
– Não, poeta, presta atenção... – explicava Pedro, ao
piano, um dedo nas teclas, outro apontando a partitura recém-rabiscada. – Aqui
era essa nota, e você na segunda vez cantou essa outra aqui.
– E que diferença faz – disse Bandeira. – Se não foi a
mesma nota, foi um sinônimo.
(maestro Pedro Santos)
Surgiu pela primeira vez nessa tarde a minha percepção de
que um dos elementos que diferenciam a cultura erudita e a cultura popular é
que a primeira privilegia a visão de detalhe, e a segunda a visão de conjunto.
(maestro Pedro Santos)
Pode
não ser a melhor maneira de colocar essa questão, mas vejam só. Eu também
costumo cantar e tocar violão, e não sou dos mais afinados. Se estou cantando
uma música qualquer, seja dos Beatles ou de Ataulfo Alves, não estou preocupado
com as notas individuais, e sim com a frase melódica. Aqui e acolá pode uma
nota não ser igual ao disco, pode não ser igual até à que cantei há pouco; e
daí? O que importa é que o ouvinte reconheça a frase. “Pois é, falaram tanto, que desta vez a morena foi-se embora...” Se
o ouvinte reconhecer a melodia geral, que diferença faz uma nota ou um sinônimo
dela?
Bandeira e o maestro Pedro comeram o pão que o diabo
amassou durante algumas tardes, mas as partituras foram feitas e saíram no
folheto. Surgiu entre os dois uma amizade distante baseada no respeito e na
perplexidade. Foi um pouco como aquele filme de guerra de John Boorman que
passou na época no Cine Capitólio, Inferno
no Pacífico, onde um soldado americano e um japonês, numa ilha deserta,
brigam tanto que acabam admirando um ao outro.
A cultura erudita se baseia na possibilidade da
existência da Versão Única, ou da produção de um Documento Definitivo, de uma
Matriz da qual deverão derivar todas as cópias, citações, referências,
etc. É o Império do Documento Escrito.
Já a cultura oral se baseia na superposição incessante de
versões sempre diferentes entre si, mas guardando uma semelhança que permite
considerar que sejam “a mesma coisa”. Não há (isso vale para os Mitos, para as
Lendas, para todas as formas orais de narrativa) uma versão mais verdadeira do
que todas as outras. Cada uma é a foto-da-nuvem. A nuvem é o conjunto de todas.
Quando eu estou cantando até me preocupo em “cantar a
letra certa”, mas se na hora não me vier uma palavra entra outra, e fica por
isso mesmo. Em mesa de bar (=cultura oral), ninguém liga. Em estúdio (=cultura
erudita), o técnico manda fazer de novo. “Vamos fazer a boa, agora...”
E mesmo essa cultura musical de estúdio deixa-se
contaminar pela outra. Porque num universo como a Música Popular Brasileira, só
para dar um exemplo, letra e melodia de uma canção são geralmente respeitadas,
mas não são sagradas. Intérpretes mexem, sim; e uma explicação simples para o
que acontece pode ser esta: “Se a cantora desafina, erra a nota, pára tudo e
vamos gravar de novo; se a cantora está interpretando, está fazendo floreios
vocais com pleno domínio de sua técnica, então vale, mesmo que vá longe da
melodia original”.
A música fonográfica abomina a desafinação (=o erro) mas
acolhe a criatividade pessoal. Os compositores escutam, percebem que a música
foi alterada, mas muitas vezes admitem que foi alterada “para melhor”, ou pelo
menos para se adequar ao sentimento próprio daquela interpretação; e não
reclamam.
Quando Ella Fitzgerald ou Nana Caymmi começam a florear a
melodia, isso é a forma aristocrática (digamos assim) do “cantar de oitiva” dos
intérpretes populares, que em seus terraços de sábado ou fundos-de-quintal de
domingo cantam a melodia (e a letra) do jeito que lembram, que entendem e que
conseguem.
Pesquisadores já comentaram comigo sobre sua decepção ao tentar acompanhar o
áudio de uma cantoria entre os mestres Lourival Batista e Pinto do Monteiro,
dois dos maiores gigantes do repente, e duas das vozes mais trôpegas dessa
arte. Principalmente porque a maioria dos áudios que gravaram já foi na entrada
da velhice, quando dicção, dentadura e garganta já não estavam mais em seus
melhores momentos.
Quando Geraldo Sarno filmou um pé-de-parede entre os dois veteranos, no curta Cantoria (produzido por Thomas Farkas), usou legendas em português, para meu grande alívio.
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