A literatura de gênero (policial, terror, ficção
científica, romance de amor, espionagem, faroeste, etc.) se define pela opção
de não começar do zero, de começar sempre de um conjunto nítido de
expectativas. O leitor desses livros não quer experiências totalmente novas,
quer a repetição, com variantes, de uma experiência já conhecida.
Robert Louis Stevenson (1850-1894) foi um praticante da
literatura de gênero, e mesmo as suas experiências literárias mais ambiciosas
se dão no quadro de narrativas de situações previsíveis, quase obrigatórias.
Em 1884, Henry James publicou um ensaio intitulado A Arte da Ficção, onde comentava, entre outras
obras, A Ilha do Tesouro de
Stevenson:
“Uma dessas obras trata de assassinatos, mistérios, ilhas de má
reputação, fugas impossíveis, coincidências miraculosas e tesouros enterrados.
(...) Eu fui criança, mas nunca estive à procura de um tesouro enterrado.”
Os dois não se conheciam pessoalmente, e em dezembro do
mesmo ano Stevenson publicou um ensaio intitulado “Um humilde protesto”, em que
respondia:
“Aqui existe, sem dúvida, um paradoxo proposital, porque se o sr. James
nunca andou à procura de um tesouro enterrado, pode-se provar com isto que ele
nunca foi uma criança”.
James e Stevenson são até hoje citados como exemplos,
respectivamente, da “literatura de estilo” e da “literatura de enredo”, o que é
uma injustiça para com ambos, pois James é autor do enredo complexo e sutil de Outra Volta do Parafuso, entre outros, e
Stevenson tem uma das prosas mais límpidas e agradáveis do seu tempo e de seu
idioma. Mas o que poderia ter descambado para uma polêmica amarga e ressentida
transformou-se numa grande amizade; James escreveu no final daquele dezembro
uma carta em que dizia:
Meu caro Robert Louis Stevenson,
Somente ontem à noite li seu texto do Lungman’s de dezembro, com
sua resposta bem-humorada ao meu artigo sobre a conferência de Besant, no meu
periódico; e o resultado dessa agradável meia hora é um desejo amistoso de
enviar-lhe três palavras minhas. Não serão palavras de discussão, divergência,
retaliação ou protesto; mas de calorosa simpatia, reforçada com a garantia do
prazer que sinto em tudo que você escreve.
Assim teve início uma longa correspondência entre os
dois, cheia de ótimas reflexões sobre a vida e a literatura, e que saiu no
Brasil pela Ed. Rocco com o título A
Aventura do Estilo (org. e tradução de Marina Bedran).
Henry James tinha um santo horror ao melodrama, e este é
mais um dos muitos elementos que o aproximam de Machado de Assis. Escritores
como estes dois são conhecidos pelos seus fiapos de enredos, histórias onde
quase nada acontece a não ser pessoas conversando numa sala, ou numa mesa de
restaurante, ou num terraço, entre um ou outro passeio, uma ou outra viagem.
Penso eu que a segunda metade do século 19 foi o apogeu
do melodrama teatral e do folhetim literário – as histórias de raptos,
assassinatos, vinganças sanguinolentas, órfãos sequestrados, homens inocentes
atirados em calabouços, famílias honestas vítimas de infâmias, separações
lacrimosas, reencontros histéricos...
Todo o material de peripécias, reviravoltas, surpresas, sustos, olhos
arregalados, que fez a fama dos folhetins impressos e ainda hoje faz tilintar o
caixa das novelas de TV.
Isso era o divertimento popularesco da época – e não
podemos dizer que não deu grandes nomes à literatura. Foi de dentro desse
quadro de prodígios dramáticos esticados semanalmente que brotaram Dostoiévski
na Rússia, Alexandre Dumas na França, Charles Dickens na Inglaterra, e muitos
outros.
("O Melodrama", de Honoré Daumier)
Quando o escritor é grande, ele puxa o gênero para cima.
Por outro lado, é compreensível que existam escritores de
temperamento mais introvertido, mais crepuscular. Buscam algo mais intimamente
verdadeiro, e não o mero espetáculo exterior. O esforço de se afastarem do
clichê, da fórmula, do lugar-comum, os leva a um certo elitismo do espírito que
os faz antipatizar esse tipo de enredo.
Acho que James tentou com Outra Volta do Parafuso (1898) fazer uma desconstrução da história
de fantasmas tradicional. Nelas, há assombrações violentas, gritos, pessoas
morrendo de apoplexia ou de febre cerebral, espectros ensanguentados, padres
sem cabeça, esqueletos matraqueando as mandíbulas. James contou sua história de
assombração de maneira tão oblíqua, tão indireta, tão nuançada, que hoje a
interpretação mais corrente é de que nada daquilo aconteceu senão na cabeça da preceptora
das crianças.
Machado de Assis foi na direção oposta: utilizou, satiricamente,
o turbilhão de peripécias dos melodramas (e a cabeça bitolada dos que o
escreviam) num de seus melhores contos, “A Chinela Turca” (1875; em Papéis Avulsos, 1882).
Quando James se contrapunha aos “assassinatos, mistérios, ilhas de má reputação, fugas impossíveis,
coincidências miraculosas e tesouros enterrados” de Stevenson, estava
fazendo uma aproximação um tanto apressada entre Stevenson e os popularescos de
sua época. (James, como Machado, tinha um santo horror aos popularescos.)
O fato de que logo em seguida ele se retrata perante
Stevenson (e o bom humor com que Stevenson reagiu à sua crítica) dá a medida de
sua lucidez intelectual e de sua generosidade moral. Ele tinha plena
consciência (e a amizade dos dois nasceu daí) de que Stevenson buscava uma
literatura intensa, profunda, total, não importa se contasse uma aventura de
piratas ou uma viagem em lombo de jumento.
Por isso sempre sinto um certo desconforto quando, a bem
da comunicação rápida, uso expressões como “literatura de enredo” e “literatura
de estilo”. Vejo nos praticantes da literatura de enredo, muitas vezes, uma
certa ansiedade em quebrar essa polarização, em cultivar o estilo. Só que na
tradição beletrista brasileira (que nada tem a ver com Machado de Assis) ter
estilo significa usar palavreado bonito e sonoro, enfileirar adjetivos como se
fossem miçangas num fio, consultar aplicadamente os manuais de retórica
greco-latina e usar seus recursos como se fossem remédios milagrosos.
Ter estilo (em literatura) não é “escrever bonito”. É ter
uma mente pensante personalizada, capaz não apenas de ver (e exprimir) algo
pela primeira vez, mas de dar ao leitor a sensação da descoberta simultânea. Estilo
é uma visão verbal do mundo. É um conjunto de qualidades e defeitos, um
conjunto de recursos e de limitações; o estilo de um autor é definido não
apenas pelo que ele faz, mas pelo que ele é visivelmente incapaz de fazer. Quando
aquela famosa e batida definição diz que “o estilo é o homem”, provavelmente
quer dizer isso: é a totalidade do que essa pessoa consegue pensar e dizer. E do que não conseguiria, por ser quem é.
E é natural que existam escritores mais aptos a descrever
ações exteriores e escritores capazes de descrever ações interiores (da mente).
Quando Virginia Woolf extrai de uma simples marca na parede um conjunto de
possibilidades, lembranças, evocações, fantasias, ela mostra que a literatura
ocorre na mente e se cristaliza em palavras: “The Mark on the Wall”, seu
primeiro conto de juventude demonstra isso. Que era capaz de criar enredos ela
o prova em Orlando e outras
narrativas.
Robert Louis Stevenson, um homem que passou em cima da
cama de doente uma boa parte de sua curta vida, tinha imaginação cigana, tinha
a vertigem dos espaços exteriores, que o arrastou em viagens desgastantes pelo
mundo afora. Sua literatura reflete isto.
Henry James parecia conhecer apenas dois ambientes, o
gabinete de trabalho e o salão social, e ele satiriza isto num dos seus
melhores contos fantásticos, “The Private Life” (1892).