De vez em quando a gente acaba se pondo no lugar de um tradutor que recebe a tarefa de traduzir o título de um filme estrangeiro.
“Tradutor”, claro, no sentido mais amplo
do termo. Imagino que quem toma essa decisão final é um funcionário graduado da
distribuidora. Não é o mesmo pobre-diabo a quem cabe criar as legendas em
português com os diálogos do filme. (Uma das tarefas mais ingratas e mal
remuneradas do Museu de Horrores que é a indústria cultural.)
Penso, por exemplo, no cara que ia
distribuir um filme intitulado Some Like
it Hot. Ele não precisava de dicionário para entender. A frase é boa, mas
servia para título? Não servia. Ele deve ter feito um esforço para imaginar (o
filme é de 1959) a fachada iluminada de um cinema de rua brasileiro, e o
título: “Alguns gostam disso quente”.
Ele pensou, remexeu a frase, trocou
palavras, procurou manter-se próximo do sentido, e produziu: Quanto Mais Quente Melhor. Um nome com
mais ritmo, terminando numa sílaba forte, contendo uma fórmula comparativa de
fácil entendimento. Nota dez para ele.
Costumamos mangar dos títulos nada-a-ver,
como traduzir Blow Up por Depois Daquele Beijo, ou traduzir Persona por Quando Duas Mulheres Pecam. Mas algumas mudanças são obrigatórias.
Vi uma vez um distribuidor comentando um
filme de Sidney Pollack. É a história de um rapaz que trabalha como voluntário
num centro de ajuda telefônica. Uma mulher liga dizendo que tomou pílulas para
se matar. Ele fica conversando com ela, mantendo-a lúcida, enquanto a equipe
rastreia a ligação e corre para salvar a vida dela.
O filme se chama The Slender Thread. “Quem vai sair de casa para ver um filme
chamado A Linha Fina?”, dizia o
distribuidor. A linha fina é o fio telefônico, claro. O filme se chamou no
Brasil Uma Vida em Suspense. Nada
original – mas muito mais sensato.
A maior parte dessas traduções tenta,
visivelmente, se manter próxima da intenção do original, mas produzindo uma
fórmula diferente, mais chamativa.
O filme de Jean-Luc Godard Pierrot Le Fou poderia ser traduzido
aqui como Pierrot o Louco, ou Pedrinho o Louco como ficou em Portugal.
Alguma alma caridosa resolveu chamá-lo, sei lá por quê, de O Demônio das Onze Horas, um desses casos de invenção nada-a-ver
que acaba sendo bem-vinda.
O título tem que ter-a-ver com o filme, e
tem que atrair o público, mesmo que seja apenas pelo inusitado de sua forma.
Nos anos 1960 apareceu uma moda efêmera de
títulos longos, como o da comédia maluca de Ken Annakin, Esses Homens Maravilhosos e Suas Máquinas Voadoras, ou Como Voei de
Londres a Paris em 25 Horas e 11 Minutos (“Those Magnificent Men in Their
Flying Machines, or How I Flew from London to Paris in 25 Hours 11 Minutes”), a
comédia de humor negro apocalíptico de Stanley Kubrick Dr. Fantástico, ou Como Aprendi a Não me Preocupar e a Amar a Bomba (“Dr.
Strangelove, or How I Learned To Stop Worrying and Love the Bomb”), etc.
Foi
uma década engraçada essa, em termos de nomes compridos. Isso pipocou no
cinema, na literatura, nos nomes de bandas de rock.
Digressão: o mesmo ocorreu na ficção
científica. Isaac Asimov queixava-se, nos editoriais do seu Magazine, de que no tempo dele os contos
de FC se intitulavam “Homecoming” ou “Nightfall” – e agora estavam aparecendo
histórias com nomes tipo “The Doors of His Face, The Lamps of His Mouth” ou
“Repent, Harlequin! Said the Ticktockman”.
No caso de um filme estrangeiro, é preciso
manter em português algo do charme do título original, mas numa linguagem
acessível ao público daqui, e de preferência sem apelar.
Um belo western de Anthony Mann, The Man From Laramie, tinha um título
pouco chamativo (Laramie é uma cidade). Alguém resolveu chamá-lo de Um certo capitão Lockhart, o nome do
personagem principal. Anos depois, uma adaptação de Érico Verissimo para o
cinema acabou se chamando Um certo capitão
Rodrigo, em função do personagem Rodrigo Cambará, e fiquei imaginando se
este formato de título não teria sido extraído do livro de Érico, que até hoje
imperdoavelmente não li.
Um filme de crime, por exemplo, precisa
deixar claro esse apelo, o que não é o caso de um título como “Dupla
Indenização”, Double Indemnity, o
clássico escrito por Raymond Chandler e dirigido por Billy Wilder. No Brasil o
filme se chamou “Pacto de Sangue”, que reproduz com fidelidade o elemento básico
do enredo e tem o melodrama necessário ao gênero.
Em outros casos, isso se perde. Um grande
filme-de-assalto é O Segredo das Jóias,
dirigido por John Huston, mas eu preferiria muito mais que ele se chamasse A Selva do Asfalto, “The Asphalt Jungle”
no original.
Filmes que no original trazem apenas um
nome próprio pedem algo mais animado na tradução. Se você vê um cartaz de um
ótimo thriller de Don Siegel, com
Walter Matthau, sob o título de Charley
Varrick talvez não fique muito entusiasmado, mas O Homem Que Burlou a Máfia certamente fez mais ingressos serem
vendidos.
Deve ter sido esse raciocínio que inspirou
uma famosa manobra de Expedito, o escolado distribuidor de filmes de Campina
Grande, que funcionava ali perto da Feirinha de Frutas, na rua Peregrino de
Carvalho. Ele levou Édipo Rei de
Pasolini para exibir no sertão paraibano, e o filme naufragou na bilheteria.
Expedito não contou conversa: refez os cartazes com o título Édipo, o Homem Que Matou o Rei, e o
cinema num instante encheu.
Questionado, ele levava as mãos à cabeça:
– Mas eu estou mentindo, por acaso?! Ele
matou o rei, minha gente, esse é o detalhe mais importante da história!
11 comentários:
Quem traduziu What's Eating Gilbert Grape (1993) sofreu. Fora títulos idiotas: “Meu primeiro amor II) Naked Lunch virou “Mistérios e Paixõesl
Texto ótimo, a única falha foi não ter lido Um Certo Capitão Rodrigo, que é muito bom. O blog está cada vez melhor.
Certamente Expedito entregou o segredo. Mas neste caso o segredo estava embrulhado. O bom do filme - da própria tragédia - é o processo. Literalmente. Expedito também é descolado. Viva Expedito. Obrigada, Bráulio. Genial sempre. E o bom é que leio escutando a sua voz.
O pior exemplo que conheço é o do Down By Law que foi traduzido como Daunbailó
"Daunbailó" remete à pronúncia do inglês estropiado do imigrante italiano interpretado por Roberto Benini, que estava preso, isto é "Down by law". É bene trovato!
Expedito teria estourado a boca do balão se tascasse: "O homem que comeu a mãe".
Um dos exemplos mais estapafúrdios é The Teen Wolf (1985) que no Brasil virou O Garoto do Futuro.Ficaria perfeito como O Lobo Adolescente (ou talvez O Jovem Lobisomem) mas preferiram surfar no recente sucesso de Michael J. Fox em De Volta Para o Futuro.
Acho a saída Daunbailó genial. Assim como "traduzir" "The Sound of Music" como "A Noviça Rebelde". Eu era garoto e achava que "Sound" era Noviça e "of music" era rebelde.
Acho a saída Daunbailó genial. Assim como "traduzir" "The Sound of Music" como "A Noviça Rebelde". Eu era garoto e achava que "Sound" era Noviça e "of music" era rebelde
"Daunbailó" é uma típica tradução de fã. O filme só foi distribuído comercialmente quando já tinha um público de fãs, e na imprensa o pessoal do Estação Botafogo dizia que ninguém aceitaria um título que não fosse o original; fizeram a "tradução fonética" e os fãs vibraram.
É isso aí. A tradução para Daunbailó é ótima.
Postar um comentário