(foto: David Zingg)
João Guimarães Rosa tornou-se um dos maiores autores da
literatura brasileira com uma obra pequena, de apenas cinco livros: Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande
Sertão: Veredas (1956), Primeiras
Estórias (1962) e Tutaméia
(1967). Sim, vieram outros depois, e pelo menos um destes cinco acabou sendo
desmembrado em vários títulos, mas no edifício-base da obra rosiana as pilastras
são essas aí.
“Poderia ter escrito mais,” é uma lamentação reiterada
entre o admiradores, ainda mais quando pensamos na sua morte certamente
prematura, aos 59 anos. O que esquecemos, às vezes, é que todo escritor
trabalha para viver. Rosa era funcionário do Itamaraty, e muitos episódios
importantes da sua vida demonstram sua dedicação ao trabalho, às missões de que
era encarregado. Tão grande quanto sua dedicação obsessiva à literatura.
Ele faria 110 anos em junho próximo, e se estivesse ainda
por aqui descobriria alguma alusão cabalística nesse número. Perguntado numa
entrevista famosa se escrevia realismo mágico (na época em que na Europa só se
falava em Borges, Astúrias, Garcia Márquez, Cortázar etc.) ele sugeriu que
“álgebra mágica” seria uma descrição mais acurada do que fazia em suas
estórias.
Acho que foi Fábio Lucas que eu vi pela primeira vez elogiar
esse lado duplo de obras com a escala do Grande
Sertão: a ousadia arquitetônica do gigantesco conjunto narrativo e a
atenção obsessiva a cada detalhe, cada sílaba, à formatação gráfica de cada palavra.
Um narrador capaz de imaginar do nada um império, e de limpar a poeira de cada
centímetro quadrado dele.
Rosa é sempre considerado um xamã e pajé da palavra, da
palavra em si, mas suas narrativas são tão inquietantes, tão estranhas e
aparentemente familiares quanto seu vocabulário.
A melhor extensão de texto para Guimarães Rosa era a
noveleta, o conto longo a que ele recorreu com galhardia em Sagarana. Ele ampliou esse formato ao
máximo em Corpo de Baile, contraiu-o
e chegou talvez ao seu melhor ponto de síntese em Primeiras Estórias, passou desse ponto e produziu Tutaméia, que é concentrado a ponto de
ser espesso. E que nem por isso é um mau livro, muito ao contrário.
Rosa recorria fartamente à própria memória, que era
prodigiosa, uma vez que ele nunca cessa de louvar as experiências de infância
que teve. Mas recorria também à memória alheia, como mostram suas numerosas
cartas para o pai Florduardo, sempre pedindo uma descrição detalhada de como era
a festa tal no ano não sei quanto, ou que contasse de novo a história do primo
Fulano, ou lembrasse aquela cantiguinha.
Memória alheia significa que é preciso ter um arquivo,
anotações, cadernos, “borrões”, fichários. Rosa fala, aqui e ali, que grande
parte de suas anotações sobre o assunto A ou B foi quase toda derramada no
conto tal. “São Marcos” é virtualmente um tratadinho de feitiçaria popular.
“Conversa de Bois” é o contrário: dá mesmo a impressão de ter sido (ele mesmo
conta, num dos prefácios de Tutaméia)
primeiro pensado realisticamente, depois sonhado em versão final.
Memória, arquivos, isso todo escritor tem. O que mais
tinha Rosa? Ele é visto por muita gente como um escritor exigente, hermético,
pedante, mas a primeira exigência era consigo mesmo. E no que diz respeito ao
mero vocabulário, ele tinha, sim, a busca preciosista não só pela palavra
certa, mas pela versão mais profunda dessa palavra. Muitos grandes prosadores e
poetas tem isso, mas nem todos o fazem com a leveza, o humor contemplativo, a
falta de azedume de sua prosa.
Comparam tanta coisa de Rosa com James Joyce, acho que se
pode comparar também que nos dois havia uma biblioteca vaticana e uma feira
popular ao ar livre. As entidades que falam através de Joyce em Ulisses e os jagunços do Grande Sertão têm acesso a um banco-de-dados
erudito, mas se exprimem também com as dicções milenares e plebéias produzidas
por pessoas em qualquer esquina do Curvelo ou de Montes Claros. Coloquialidade,
tratamento sem-cerimonioso do idioma, arteirice de menino com o álibi da
velhice, nos dois.
O que os torna parecidos não é apenas a tendência ao
neologismo e às palavras portemanteau,
a riqueza dos nomes próprios, mas a mistura de uma enorme informação livresca e
uma enorme coloquialidade na expressão. Doutores ou gente rústica falam todos a
língua do autor sem deixar de falar como esperaríamos deles. Até os bois
falantes, todos falam como deveriam falar. Ulisses
e GS:V são dois livros com
bibliotecas inteiras por trás, mas a língua que usam é uma síntese perfeita
entre a palavra falada e a palavra escrita.
Já o Finnegans Wake
foi muito mais longe do que Tutaméia,
em todos os sentidos.
No mais, não podiam ser mais diferentes. Joyce me parece um
boêmio sagaz e meio neurastênico, vivendo de país em país, ricocheteando entre
os abrigos que encontra, uma espécie de Orson Welles sem um centavo. E Rosa um
diplomata, um cosmopolita, um homem – como direi? – “um homem do Primeiro
Mundo”. Quem o arranhasse, no entanto,
não encontraria o boêmio, encontraria o cientista, encontraria o médico do
corpo estudando o balé-xadrez entre as nações, entre os grandes agentes
econômicos e políticos.
Numa matéria na Folha
de São Paulo (05-05-2013), o diplomata Luiz Filipe de Macedo Soares, trinta
anos mais jovem que Rosa, e que foi seu contemporâneo no Itamaraty, recorda
momentos dessa convivência profissional e amistosa.
Desde
1956, Rosa chefiava a Divisão de Fronteiras no Ministério das Relações
Exteriores, cargo que ocupou por 11 anos até morrer, em 1967. Não é comum, no
Itamaraty, tão longa permanência em uma função. Não voltou a servir no exterior
desde que regressou de seu último posto, na Embaixada em Paris, em 1951.
Desejava certamente concentrar-se em sua obra, embora a parte principal já
estivesse feita. Em princípio, em 1956 restariam-lhe 17 anos de carreira até a
aposentadoria compulsória, aos 65, e bem mais de vida, em vez de meros 11 anos.
Os últimos onze anos de vida de Rosa foram divididos
entre seu projeto literário pessoal e a demarcação das fronteiras do Brasil,
uma tarefa simbolicamente interessante para quem faz literatura. A parte mais
espinhosa das fronteiras parece ter sido resolvida pelo Barão do Rio Branco,
mas Macedo Soares refere questões específicas como a que Rosa administrou, com
o Paraguai.
Ele cita o livro de Heloisa Vilhena de Araújo, Guimarães Rosa: Diplomata (Fundação
Alexandre de Gusmão, 1987). Em 1941, já em plena II Guerra, Rosa estava lotado
em Hamburgo mas emprestado à Embaixada em Berlim, e viajou a serviço para Madri
e Lisboa. E cita daquele livro um trecho de um relatório em que Rosa avalia o
clima ideológico dos países por que passou, Portugal e Espanha:
A circunstância de estarem os dois países mais ou menos comprometidos,
quando mais não seja teoricamente --Portugal pela sua plurissecular aliança com
a Inglaterra, a Espanha pelos vínculos com as Potências do Eixo-- ajuda-nos a
compreender o inteligente afã com que os seus governantes se apertam as
destras, uma vez que cada um deles dá a mão esquerda a um dos dois grupos
beligerantes.
Praticam uma política de recíproca ajuda, e cultivam uma amizade
compensadora, realizando, sem atritos, a osmose adaptativa, entre dois regimes,
autoritários mas de diferente colorido totalitário conforme a pitoresca
disposição, no mapa, das ditaduras europeias, que se escalonam, de leste para
oeste, numa seriação decrescente de radicalismo.
Vê-se aí um indivíduo ajustando a riqueza expressiva de
que dispõe a um repertório de discursos meio ritualístico como é o da
diplomacia. O relatorista se sai bem, porque descreve uma situação complexa com
uma linguagem de palavras fortes e específicas, num discurso claro,
consequente, sem experimentações.
Tem interesse isso? O mesmo interesse dos relatórios de
prefeito de Graciliano Ramos, ou do balanço geopolítico de José Américo de
Almeida sobre a Paraíba; mas tudo isso só ganha sentido se iluminado pela
literatura, sem a qual não brilhariam. Mostram que muitos escritores são
capazes de escrever, longe da literatura.
Um comentário:
Joyce? E o Pessoa? E o Pessoa?
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