quarta-feira, 14 de julho de 2010
2263) O acerto e o erro (9.6.2010)
Dizem que Howard Hawks deu este receita para um bom filme: “Três cenas boas e nenhuma ruim”. Com isso ele não queria dizer “se tiver três cenas boas todo o resto pode ser banal”. Hawks sabia que fazer um filme é dar uma série de saltos no escuro, porque o trabalho em grupo, mesmo em situações aparentemente controladas (como num estúdio de Hollywood) é sempre imprevisível. Quando pessoas se juntam para produzir “entretenimento artístico” (gostei desse oxímoro) isso tanto pode resultar em coisas brilhantes dentro desse gênero (aí estão Cantando na Chuva, Casablanca, A Noviça Rebelde e outros) quando em coisas inomináveis.
As três cenas boas são as que nos emocionam durante, e não são esquecidas depois. A receita de Hawks poderia (e aliás deveria) ter sido formulada por Alfred Hitchcock, cujos filmes sempre têm algumas cenas de alto impacto visual e narrativo, cenas clássicas que fazem esses filmes serem lembrados para sempre. Faça um teste: pegue um filme de Hitchcock que você não vê há mais de vinte anos. As grandes cenas estão lá, intactas, do jeito que a gente lembra; o resto é tão novo e banal que a gente fica em dúvida se já viu mesmo aquilo tudo. São as tais cenas “nenhumas ruins”, que servem de ponte entre as cenas geniais, que ajudam a contar a história, a preparar o espectador para o próximo suspense e ao mesmo tempo não são tão chatas que façam o bonequinho levantar da cadeira e ir embora.
Falei acima que um estúdio de Hollywood é um ambiente aparentemente controlado. A própria existência do estúdio se deve ao conceito de controle total. É mais simples e mais barato reconstruir Times Square num estúdio do que filmar em Times Square. Na locação real, você não pode dar ordens específicas a todos os carros, todos os pedestres, todas as pessoas nas janelas dos prédios. No estúdio, pode. O gasto de construir pode ser grande, mas ganha-se em horas de filmagem (principalmente quando essa locação envolve um número muito grande de cenas) e ganha-se no resultado final, que tem condições de ficar mais próximo do que o que o diretor queria.
Todo este arrazoado é para comparar duas concepções criativas: a do Controle Total (que procura reduzir ao máximo, já que é impossível extinguir) a possibilidade de erro; e a da Improvisação Planejada, que aceita o erro e tem mecanismos para incorporá-lo ao produto final. Nenhuma das duas é boa ou má, certa ou errada “a priori”. A primeira concepção é a de Kubrick, Hitchcock, Lang, Orson Welles. A segunda é a de Fellini, Jarmusch, Glauber Rocha, Godard. De um modo geral, quem trabalha em estúdios (e hoje em dia, quem trabalha em TV, dirigindo novelas) tem como primeira preocupação cercar o erro, evitar que qualquer cena fique “ruim”, na esperança de que ao longo do processo aconteçam as “cenas boas”. É por isso que em filmes de estúdio e em telenovelas se vê com frequência este resultado estranho: nenhuma cena boa e nenhuma ruim.
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2 comentários:
brilhante o texto , bráulio, como sempre por aqui...
Registro a sincronicidade de uma conversa que tive ainda ontem com um amigo justamente sobre a diferença nesses dois processos em nosso trabalho (somos ambos pintores).
Listamos também os dois time só que num mano a mano. Vão aí alguns...
velasquez x goya
dali x max ernest
mondrian x pollock
lucien freud x bacon
scliar x iberê
braque x picasso
roth x de kooning
magritte x dufy
Interessante essa comparação, porque no casos dos artistas plásticos eu geralmente conheço a obra deles, mas não sou familiarizado com o processo, a não ser em alguns casos. Acho que isso vale pra tudo - música, teatro, etc.
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