Bob Dylan, que faz hoje 64 anos, acaba de publicar seu melhor livro: Crônicas, Vol. 1, o primeiro da uma série de três volumes de memórias.
Como é habitual no caso de Dylan, críticos e fãs no mundo inteiro estão dissecando cada parágrafo, cada frase e cada letra como se aquilo fosse o Diário de Jesus Cristo, escrito de próprio punho.
O livro acaba de sair pela Editora Planeta, por 44 reais (mais ou menos o que paguei há meses pela edição americana). Dizer que é o melhor livro de Dylan envolve um pouco de picaretagem da minha parte. O que foi que Dylan publicou? Uma colagem de frases pop-surrealistas, Tarântula, influenciada por William Burroughs e Allen Ginsberg; e songbooks com suas letras e poemas.
Este livro, no entanto, revela uma coisa que eu mesmo, fã de carteirinha, não esperava: Dylan escreve uma prosa de excelente qualidade.
Primeiro, falemos do que o livro não é. Muita gente esperava um livro de memórias tipo Revista “Contigo”: Dylan comentando as razões de suas separações e divórcios, Dylan explicando por que trocou de empresário ou de gravadora, Dylan descrevendo o acidente de moto de 1966 (que muitos dizem ter sido forjado), Dylan revelando quanto custou a mansão de Malibu ou quem é sua namorada atual, Dylan confessando plágios...
Nada disso. O livro tem uma estrutura fascinante, conduzida simplesmente por associação de idéias e nomes, saltando para a frente e para trás, cheio de flash-backs e de flash-forwards. No meio de uma cena ocorrida num bar em 1963 ele comenta a entrada de um personagem e aí salta para 15 anos à frente para outro episódio envolvendo o mesmo cara, e daí aproveita um terceiro nome para retroceder 5 anos e narrar outro momento, passado em outro país...
Mas não perde o fio da meada. Cedo ou tarde, depois de 40 páginas, ele diz: “Pois é, nada disso passaria pela minha cabeça naquela madrugada, no bar de Fulano, quando Beltrano pegou o violão e começou a cantar tal coisa...” – e prossegue a narrativa como se só existisse o aqui-e-agora.
Isto é marca de um prosador maduro. O leitor liga menos para uma estrita ordem cronológica do que para a verdade e a concretude daquilo que se conta; basta fazer parecer real cada episódio que se narra. Se você através de ação, descrição e diálogo consegue fazer o leitor imaginar-se vendo a cena descrita, você pode pegar na mão do leitor e saltar com ele o quanto quiser.
É o que Dylan faz, pulando anos e às vezes décadas – mas em cada trecho ele recria com vívidas imagens visuais o ambiente descrito, descreve em duas ou três linhas uma pessoa e nos dá a impressão de que a conhecemos (ou então uma vontade danada de conhecer alguém assim).
Dylan não é um ficcionista – mas é sem dúvida um prosador de peso, sabendo misturar memória, imaginação e auto-análise na medida exata para prender um leitor. Se parasse de gravar, mas ficasse escrevendo coisas assim, por mim tava bom.