(cartum de Jules Feiffer)
A Internet enterrou minha carreira literária. Meu último livro de contos saiu em 1996, o mesmo ano em que me conectei pela primeira vez à Grande Rede. Isto significa que há quase uma década dedico minhas noites e madrugadas a ficar lendo de graça as obras alheias, em vez de escrever minhas próprias obras e ganhar dinheiro. Estou arrependido? Nem um pouco.
Não me arrependo porque qualquer sujeito de bom senso sabe que é possível dividir de forma equânime suas oito horas regulamentares de trabalho: quatro horas surfando no ciberespaço, quatro horas martelando no teclado para inventar a história de um sujeito que surfa no ciberespaço. Uma coisa não tem necessariamente que atrapalhar a outra.
Alguém há de lembrar que ultimamente tenho publicado muitos livros. Concordo, mas não são obras de literatura, obras que exijam audácia criativa e fôlego executante. São livros de ensaios, de poemas, de estudos cinematográficos, artigos de jornal... besteiras que eu faço com um pé nas costas, ouvindo rock e tomando café. Acreditem, escrever esta coluna todos os dias não me exige o mínimo esforço mental. Já está tudo pronto, é só tocar a ponta dos dedos no teclado e o restante simplesmente acontece.
Literatura é diferente. Escrever um romance é fogo. Já tentei escrever uns dez, escrevi dois, publiquei um. Comparo a escritura de um romance à composição de uma sinfonia, em que o sujeito tem que pensar uma obra inteira com umas duas horas de duração, e depois escrever o que 50 instrumentos diferentes estarão fazendo ao longo dessas duas horas. A gente tem que ficar dando polimento em detalhes mínimos, que provavelmente passarão despercebidos, mas que se não estiverem certos não nos deixarão dormir em paz; e ao mesmo tempo tem que ter sempre em mente o “desenho geral” da coisa. É como projetar por inteiro um prédio de vinte andares e ficar horas escolhendo um modelo de maçaneta para o armário do banheiro.
Escrever um livro tendo a Internet ao alcance de um clique? Impossível. Me lembra esses caras muito compenetrados que vão para a praia de Ipanema e ficam tentando ler a página de investimentos financeiros no meio daquele mar de bundas. Precisa muita força de vontade, muito sacerdócio para não se deixar cair em tentação. Meu deslize preferido é o seguinte. Eu penso: “Vou escrever um romance ambientado na época de Lampião. Será a história de dois irmãos, um que virou cangaceiro, outro que se alistou na volante. Em vez de levar os dois a um confronto final, que seria o lugar-comum mais óbvio, vou fazer com que os dois fiquem passando informações um para o outro, sobre os respectivos grupos, de tal modo que eles dão um jeito de nunca se enfrentarem”. Aí abro o Google e começo a fazer pesquisa: “almocreves”, “Raso da Catarina”, “armas de fogo da década de 1930”, “volantes”... Minha cultura geral vai às alturas, mas romance que é bom, babau Tia Chica.