domingo, 18 de agosto de 2019

4495) As amizades invisíveis (18.8.2019)




Existem muitos capítulos da História sobre as amizades e as parcerias entre grandes artistas. A amizade de Gauguin e Van Gogh, por exemplo, uma amizade mixada com competição e irritabilidade de parte a parte. Ou a relação parecida entre os poetas Rimbaud e Verlaine, neste caso misturada a uma paixão homossexual.

O que a gente muitas vezes não fica sabendo são aqueles episódios meio obscuros em que um artista famoso foi ajudado por outro sem que isso, de certa forma, tivesse muita repercussão. Ou então dois amigos de infância ou juventude que no futuro viriam a seguir caminhos opostos e se tornarem famosos em universos quase incompatíveis entre si.

Por exemplo: li certa vez no Facebook um depoimento do músico Ivan Conti, do célebre grupo Azymuth, dizendo:

Nunca falei sobre isso! Fazendo uma entrevista agora para a DownBeat, lembrei me de algo muito importante, ao meu ver, na carreira do AZYMA!!
E não éramos ainda AZYMA!!
Com isso trazíamos novidades em instrumentos e corríamos para ensaiar logo e usar tudo aquilo, pois era uma festa!!. Imagina bateria, baixo e teclados novos? Sempre!!
Valeu Ivon!

Nós tivemos um grande aliado e gostaria de agradecer, porque o cantor/artista Ivon Cúri nos levava para tocar em suas viagens patrocinadas pela VARIG, e íamos para para USA e Canadá.

Gostei desse depoimento porque se você perguntar a 50 críticos ou músicos qual a relação entre a música do Azymuth e a música de Ivon Cúri, provavelmente todos vão dizer que nenhuma.


(Ivon Cúri)

Existe uma lenda de que roqueiro só ajuda roqueiro, cineasta só ajuda cineasta. De que as simpatias artísticas prevalecem 100% sobre a possibilidade de simpatias pessoais, ou de mera atividade conjunta e harmoniosa entre pessoas que pertencem a universos culturais diferentes.

Pesquisando meu livro sobre Luís Buñuel (O Anjo Exterminador, Rocco, 2002) fiquei sabendo de uma amizade improvável entre o cineasta espanhol e o artista plástico Alexander Calder, o famoso inventor dos “mobiles”.

Parece que quando Buñuel fugiu da Europa durante a guerra e foi para Nova York, Calder e sua família o hospedaram no amplo apartamento onde moravam. Os dois foram apresentados por Iris Barry, diretora da cinemateca do MoMa e fã do surrealismo. Buñuel se mudou para o apartamento do escultor com a esposa Jeanne e o filho pequeno Jean Luis; foi ali que nasceu o segundo filho, Rafael, em maio de 1940.

Jean-Luis Buñuel lembra de quando era pequeno e Calder conversava com seus pais enquanto fazia para ele brinquedos de cortiça e arame. O próprio Jean Luis acabou se tornando escultor depois de adulto.


(postal de Calder e Jean-Luis Buñuel para Jeanne)

Todo mundo pensa que os dois reis do romance policial hardboiled, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, ou eram grandes rivais ou grandes amigos. Nem uma coisa nem outra. Na verdade, os dois se encontraram pessoalmente apenas uma vez na vida, numa reunião dos escritores que colaboravam com a revista Black Mask (há uma foto famosa). Nunca foram próximos, e ao que consta nunca sequer se escreveram cartas. Não conheço nenhum depoimento de Hammett sobre Chandler, mas este último escreveu numa carta, a respeito do mestre, que era aliás seis anos mais novo do que ele (embora começasse a publicar mais cedo), que o admirava muito como escritor e como bebedor de uísque.

Amizade meio improvável foi a que Chandler acabou tendo com Ian Fleming, o criador de James Bond, com repercussão na Inglaterra, onde Chandler era considerado um escritor de primeira linha (muito mais do que nos EUA) e Fleming um mero autor de best-sellers. Os dois acabaram se dando bem, Chandler elogiava o domínio de Fleming sobre o idioma norte-americano, e há uma gravação famosa dos dois num programa de rádio, que pode ser ouvida no YouTube.

Amizade improvável mesmo é a que descobri num artigo de Ruy Castro. Em meados dos anos 1960 o poeta João Cabral de Melo Neto, que na época era cônsul brasileiro em Barcelona, estava jantando com amigos na cantina Fiorentina, no Leme, quando se ouviu um zum-zum-zum lá fora, com a chegada de um grupo. Os amigos disseram que era Chacrinha, e Cabral perguntou quem era. “Um apresentador de TV, bem popularesco,” responderam, “e que está no auge do sucesso”.

Nesse instante Chacrinha entrou no restaurante, olhou para a mesa deles e abriu os braços gritando: “Cabral!”. E o cônsul ergueu-se, abrindo os braços e gritando: “Abelardo!”. Os dois se abraçaram aos soluços. Tinham estudado juntos quando eram meninos, no Recife, e não se viam há mais de trinta anos. E Ruy Castro encerra dizendo: “É o Brasil.”











quinta-feira, 15 de agosto de 2019

4494) A síndrome do artista ruim (15.8.2019)




Nossa cultura parece partir de um pressuposto ingênuo, ao avaliar os artistas. Ela considera que um artista é sempre uma pessoa boa, uma pessoa do bem, uma pessoa que cultiva os valores mais nobres da humanidade. E a arte superior que pratica (na pintura, na música, na literatura, no cinema, etc.) é um reflexo dessa personlidade privilegiada.

Esse é um conceito bonito, um conceito cheio de vernizes aristocráticos, mas que infelizmente não se sustenta de pé. Ou felizmente: é sempre melhor ver as coisas como são do que como a gente gostaria que fossem.

Eu afirmo que um(a) artista, mesmo os(as) maiores que a humanidade já viu, é uma pessoa moralmente equivalente às pessoas de qualquer outra profissão: os sapateiros, as enfermeiras, os motoristas, as médicas, os políticos, as funcionárias públicas, os encanadores, as professoras, e assim por diante.

O que não falta na História da Arte (qualquer arte) são indivíduos machistas, ou desonestos, ou cruéis, ou trambiqueiros, ou reacionários, ou insensíveis, ou egocêntricos, ou ditatoriais, ou exploradores dos mais fracos... e que nem por isso deixaram de produzir grandes obras.

A arte não corrige os nossos defeitos. Na melhor das hipóteses, serve de compensação para eles. Resgata uma vida que, se não tivesse produzido aquela arte, seria apenas uma vida-desperdiçada a mais.

Alguém questiona: “Ah, mas um artista é uma pessoa mais sensível que as outras, mais esclarecida, mais criativa, mais sensível à beleza e à verdade, pela própria atividade que exerce...” 

Eu até concordo, mas lembro que o mesmo poderia ser dito dos professores, dos filósofos, dos padres, dos religiosos em geral. E quando a gente vai ver, “é tudo uma canalha só”, como dizia Carlos Drummond num momento bem-humorado.

O que acontece é que os artistas nos conquistam com sua arte (estou falando daqueles artistas que nos tocam, que são importantes para nós – o que varia de pessoa para pessoa) e devido a isto somos tentados a “passar pano” nos seus malfeitos. O que também é compreensível. A gente não pode passar a vida inteira somente sendo juiz da vida alheia.

Artistas devem ser cobrados por suas posições morais? Sim, tanto quanto os eletricistas, as advogadas, os jogadores de futebol e as bordadeiras. Posição moral é dever de todos.

Não devemos confundir isto, porém, com uma outra atividade, essa sim condenável: a indústria de fofocas, das reportagens e das biografias escandalosas que ficam inventando ou ampliando aspectos negativos da vida de gente famosa. Isto existe para satisfazer o voyeurismo de um público que compensa a monotonia de suas vidas fantasiando os excessos dos famosos. Imaginando que os famosos fazem aquilo que elas próprias fariam, se estivessem no seu lugar.

Essa indústria da fofoca, do boato e da maledicência é mais comum no cinema de Hollywood e na música pop do que em artes mais discretas, como a poesia e a música clássica, mas não se enganem, está presente em todo canto.

Na juventude eu fui uma espécie de adorador de ídolos e muito me entristeceu, na vida adulta, descobrir que meus ídolos eram capazes de ações que me envergonhavam, de ações que eu condenava sempre nos que estavam “do outro lado do muro”.

Luís Buñuel era apaixonado pela esposa Jeanne, mas era ciumentíssimo, não queria nem que ela tocasse piano (que ela adorava) porque... sei lá por que. Talvez porque tocando ela chamasse muito a atenção sobre si mesma. Quando ele morreu, ela (que também o adorava) publicou um livro de memórias chamado “Uma Mulher Sem Piano”.

Alfred Hitchcock, um marido fidelíssimo e leal, costumava se apaixonar pelas atrizes louras que selecionava para seus filmes (Eve Marie Saint, Grace Kelly, Tippi Hedren, Kim Novak) e as martirizava no set de filmagem. Era um monstro? Não, era um cara solitário e meio cruel.

Tive um choque quando descobri que Carlos Drummond manteve uma amante durante a vida inteira, mas não se separou da esposa. Não pelo fato de ter uma amante, em si – isso acontece; mas porque esse arranjo me parecia (na época) cruel demais com as duas. Apaixonou-se? Faz como Vinícius: bota a escova de dentes no bolso e vai morar com a outra. Mas quem sou eu para achar que um deles estava certo e o outro errado?

Mais fácil era lidar com o fato de que Benvenuto Cellini e François Villon eram bandidos mesmo, dos que matam gente e vão pra cadeia. Eram outros tempos. O mesmo com Leadbelly ou Chuck Berry. Era fácil atribuir os malfeitos deles à condição de negros numa sociedade racista e injusta.

O problema era quando alguém me perguntava qual artista tinha uma vida exemplar, uma vida que a gente pudesse “assinar embaixo” sem remorsos. Sempre que um candidato era apresentado na conversa, alguém tirava da algibeira três ou quatro fatos espantosos a seu respeito. Eu ficava um ano sem nem chegar perto de um livro do sujeito, pra não me contaminar.

Essa ingenuidade é compreensível. Não que a gente deva se achar moralmente superior a quem quer que seja. Mas é preciso afirmar que existe um ideal moral, superior a todos nós, que está lá longe, lá no alto, distante mas visível. E que tanto eu, quanto você, quanto Pablo Picasso ou William Shakespeare ou Orson Welles deveríamos ter em mente esse ideal, e tentar agir de acordo com ele.

Temos uma certa dificuldade em reconhecer que o Bem e o Mal, sejam lá o que forem, fazem parte da vida real. Lemos um número excessivo de biografias laudatórias de santos, de heróis, de mártires, de gênios. Ficamos achando que algumas pessoas são imunes às pequenas e grandes sacanagens da nossa vida diária, às pequenas e grandes covardias, às pequenas e grandes brutalidades que cometemos sem remorsos porque sabemos que ninguém vai nos punir, ou, melhor ainda, que ninguém vai ficar sabendo.

“Quem sabe o Mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe!”, dizia Walter Gibson. Ele sabia que o Bem também se esconde no mesmo lugar. Um artista tem a mesma quantidade de Bem e de Mal que qualquer outra pessoa. A única diferença talvez seja que ele tem acesso direto ao filão disso tudo, e isso torna sua responsabilidade (e sua eventual tragédia) maior do que a nossa.












segunda-feira, 12 de agosto de 2019

4493) A arte e o ruído (12.8.2019)




Uma definição possível (e incompleta) de arte seria: a reunião de um número reduzido de elementos capazes de fornecer a maior quantidade possível de informação. Um mínimo capaz de sugerir um máximo.

Lenore Coffe, uma roteirista de Hollywood dos anos 1920-30, dizia que um escrever era apenas colocar as palavras certas na ordem certa.

O que me lembra a “boutade” de Glauco Mattoso ao afirmar que todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estavam no dicionário, só que em outra ordem.

Qualquer tentativa de descrição do que seja uma forma de arte nos conduz nessa direção de algo que, dos zilhões de estímulos com que o mundo nos bombardeia, escolhe um número mínimo deles, e com isso é capaz de produzir uma ressonância muito maior do que essa tempestade zilionária.

Isso me vem à mente escutando uma coisa indescritível que um internauta, Antoine Souchav, postou no YouTube.


Neste clipe, foram reunidas e superpostas as 555 sonatas para cravo compostas por Domenico Scarlatti. É uma massa sonora única, algo como uma avalanche onde em vez de neve há notas muscais, um paredão gigantesco delas derramando-se lentamente dentro dos nossos ouvidos, submergindo tudo.

É uma experiência semelhante à que vi há algum tempo – a de superpor todos os fotogramas de um filme gerando uma única imagem.

Uma “redução ao absurdo” só possível por se dispor da tecnologia digital, que simplifica, agiliza e barateia qualquer idéia maluca baseada no gigantismo quantitativo.

Juntar 555 sonatas num bloco musical simultâneo significa anular o efeito estético de cada uma, por completo.

Notas musicais só podem se superpor até um determinado ponto. Imagens, idem. Pixels, idem. Superpor esses elementos indefinidamente significa apenas produzir ruído, entropia, indiferenciação.

É uma experiência estética? Sem dúvida. Uma demonstração às avessas. “Agora vou mostrar como a música deixa de existir quando é amontoada sobre si mesma.”

Não é produção de efeito, nem produção de sentido: é potencialização de ruído, como uma microfonia amplificada.

Experiências semelhantes foram feitas com a obra de outros compositores. Aqui estão, por exemplo, postagens feitas por Remo De Vico:

Os 21 noturnos para piano de Chopin, superpostos:

Os 25 Caprichos para Violino Solo, de Paganini:

O resultado desses sons acumulados não nos dá propriamente uma experiência estética. Seu objetivo não é o mesmo objetivo que tinha Scarlatti (ou qualquer outro) ao compor uma peça musical.

Pode ser uma dessas brincadeiras que tantos internautas desocupados fazem por mero desfastio, e pode também ser uma experiência para-científica, uma tentativa de ir até o limite sensorial de uma experiência para ver até que ponto ela mantém seu conteúdo original, e a partir de que ponto começa a se deteriorar em entropia.

Não é a mesma coisa de experimentalismos que visam a produzir efeito estético, como a do sujeito que fez um anagrama de um romance – pegou todas as palavras de um livro (repetições inclusive) e, sem adicionar ou subtrair uma só, rearranjou todas até compor um livro diferente.

Veja aqui:

É nesse momento que alguém diria, coçando a cabeça: “Mas meu ilustre, afinal de contas, qual é o propósito dessa pirotecnia toda?”.

Eu diria que o propósito de toda arte experimental é justamente fazer algo sem saber no que vai dar, sem prever com clareza os resultados, e sem estar buscando consequências. Fazer por fazer, fazer for the sake of it como dizem os ingleses.

Daí que seja tão difícil, para o público e para uma parte da crítica, a convivência com a arte experimental. São pessoas acostumadas a conviver com uma arte de efeitos deliberados e de idéias esboçadas com um mínimo de clareza: a arte que tem um objetivo, um propósito, uma mensagem, um posicionamento no mínimo de natureza apenas estética – como têm a composição de um noturno para piano ou de um punk rock.

Podemos teorizar de maneira um tanto arbitrária que há dois tipos de artista: o que tem uma idéia e em seguida parte para sua realização, e o que começa a realizar sem saber o que vai resultar daquilo, e a idéia, quando existe, é formulada a posteriori.

É este o caso da arte experimental, sempre levando em conta os inúmeros casos em que a experiência não resulta em nada. O que aliás também se dá na arte mais convencional – quantos manuscritos de romances ou poemas, depois de prontos, não são jogados no lixo porque não resultaram em nada?

Mas existe um caminho meio arrepiante nisso tudo. Fico imaginando um futuro em que teremos inteligências artificiais desenvolvidas a ponto de necessitarem de experiências estéticas: computadores que, por um motivo qualquer, precisam ler histórias, ou ouvir música.

O protetor de tela, por exemplo, é uma “pequena arte” desenvolvida para o bem das telas dos nossos monitores. Para que, quando estiverem ociosos, a imagem fixa não acabe desgastando as pequenas células luminosas.

Talvez os computadores de próxima geração sejam tão complexos que não possam se dar o luxo de serem desligados – precisem ficar rodando permanentemente alguns programas, resolvendo problemas, programando efeitos...

Esses computadores podem refinar sua apreciação estética a ponto de considerar uma sofisticada iguaria a superposição de todas as faixas do Metallica ou a anagramatização recursiva, recorrente, de algum clássico como Os Sertões ou A Rosa do Povo. Porque não podem parar de pensar. Porque são inteligências artificiais e desconhecem a morte, a inconsciência.

As possibilidades, como sempre, são infinitas.













sexta-feira, 9 de agosto de 2019

4492) A Canção Fantástica: "O Buraco Sem Fundo" (9.8.2019)




A gente fala tanto em literatura fantástica em forma de romances e de contos, mas vejo pouca gente discutindo a poesia fantástica e, menos ainda, a canção fantástica.

Porque o fantástico não decorre da prosa: decorre da narrativa, e onde quer que exista a possibilidade de uma poesia narrativa, existe a possibilidade de uma poesia fantástica.

Eu próprio comento isso aqui de vez em quando, e quem quiser pode consultar artigos neste blog a propósito de clássicos como “A Balada do Velho Marinheiro”, “O Barco Ébrio”, “A Atlântida” de Amílcar Quintella Jr. e tantos outros.

Uma das minhas bandas preferidas neste gênero é The Handsome Family, de quem ouvi falar pela primeira vez através do crítico Greil Marcus, um dos melhores estudiosos da canção popular norte-americana. E não me refiro à música pop que toca no rádio, e sim àquela canção folk meio soturna, meio sombria, meio transgressora, do que ele próprio chama, no título de um livro, The Invisible Republic.

Chamar The Handsome Family de “banda” é até meio derrisório, porque trata-se apenas de um casal que compõe e canta em conjunto. São do Illinois e atualmente vivem em Albuquerque, a cidade tornada famosa pelo seriado Breaking Bad. Eles são Brett e Rennie Sparks: ele toca violão e teclados, ela toca baixo e banjo. Ele tem uma voz poderosa de barítono que lembra bastante a de Johnny Cash. Ela, ao que se diz, escreve a maioria das letras, que flutua entre aqueles gêneros de “Southern Gothic” ou “surrealismo rural”.

Muita gente talvez lembre desta canção, “Far From Any Road”, que serviu de tema à primeira temporada da série de TV True Detective:


A grande maioria das canções do duo tem esse clima meio terrorífico, meio sobrenatural, cinzelado com precisão por versos curtos que nunca dizem tudo mas sugerem muita coisa, às vezes com uma narrativa inteira condensada em uma ou duas linhas, como nas canções de Leonard Cohen ou Tom Waits.

Uma das minhas preferidas é esta, “The Bottomless Hole”, do álbum Singing Bones (2003):


O BURACO SEM FUNDO (tradução: BT)

Meu nome eu não recordo, mas eu vim do Ohio;
eu tinha mulher e filhos, um carro com bons pneus...
O que me tirou de casa e me levou ao fundo da terra
foi um buraco largo e escuro, que descobri atrás do celeiro.

Nós o enchíamos com todo lixo que se pode imaginar:
restos de cozinha, vacas mortas, tratores enguiçados,
mas eu nunca ouvia aquilo bater no chão lá dentro
e comecei a temer que o buraco não tivesse fundo.

Eu ia para trás do celeiro, ficava olhando o buraco,
ficava assim noite adentro, sem sossegar o juízo...
E um dia peguei cordas e uma velha banheira enferrujada,
e improvisei uma carroça para entrar lá no buraco.

Minha esposa me ajudou, foi me dando mais e mais corda
enquanto eu descia para longe da superfície
a última corda foi retesada e eu não chegara ao fim,
estava ali pendurado, balançando sobre o abismo.

Então eu puxei a faca, disse adeus a minha mulher,
cortei as cordas e me deixei cair no buraco escuro;
e ainda estou assim, caindo, caindo nesse poço maldito
mas enquanto não chegar lá embaixo, não acredito que não tenha fundo.

É uma canção naquele estilo das baladas country com música monótona e ritmo compassado. Tem um pouco do espírito dos tall tales do folclore norte-americano, aquelas histórias mentirosas, de coisas absurdas contadas ao pé da fogueira para provocar o riso.

E ao mesmo tempo tem o clima obsessivo de tantos contos de terror em que um indivíduo se deixa arrebatar por uma idéia fixa e acaba se destruindo na tentativa de confirmá-la, ou de desmenti-la.

É um “fantástico rural” mas sem o tom brincalhão e irônico de tantas canções rurais. É uma parábola de Kafka em paisagem de faroeste, e a voz grave e sisuda do cantor, o arranjo minimalista, a melodia monocórdia, tudo isto contribui para o senso de tragédia inevitável, e do insólito aceito como uma coisa inexplicável a mais, numa vida já sem sentido.










terça-feira, 6 de agosto de 2019

4491) Canudos e o Coração das Trevas (6.8.2019)






A obra de Euclides da Cunha, o homenageado deste ano da Flip (em Paraty), ainda está longe de ser uma conta que não deixa resto.

Ninguém fecha uma discussão sobre ele nem sobre sua obra, o que é uma coisa boa. Toda cordilheira de argumentos a seu favor, depois de devidamente empilhada, se conclui com um ominoso “Mas...”. Idem idem quanto aos argumentos contra.

Estilisticamente, sociologicamente, politicamente, etc.

Unanimidade ninguém tem, é verdade, mas luminares como Machado de Assis ou Guimarães Rosa podem se considerar em posições confortáveis no Olimpo. Despertam questionamentos e polêmicas, mas longe de inspirar posições extremas como as que Euclides inspira. Até mesmo “malditos” como Dalton Trevisan ou Campos de Carvalho desfrutam de uma certa uniformidade de julgamentos.

Verdade que pouca gente hoje se atreve a rompantes como este de Mário de Andrade, em O Turista Aprendiz (em “Caicó, 21 de janeiro de 1929”), onde desanca o então presidente da República, e o pobre Euclides entra de Pilatos no Credo:

A reverendíssima Exa. do dr. Washington Luís passa pelo Nordeste em discurso, não tirando luva da mão, sem experimentar o tapa-mão de couro do vaqueiro, bem hospedado, comendo, e muito, as comidas morenas de por aqui. E antes ou depois da viagem, que nem todos os brasileiros (até o nordestino!), continua lendo as literatices heroicas de Euclides da Cunha.

Pois eu garanto que Os Sertões são um livro falso. A desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante.

Mário, turista acidental e aluno aplicado, estava passando pelo mesmo choque de realidade que tantos brasileiros experimentaram quando saíram da Corte ou da Metrópole e foram tostar a testa no sol do sertão. Paulo Francis que o diga.


Apesar da linguagem agressiva que emprega, Mário não parece estar fazendo uma crítica moral ao escritor, mas empurrando-o para a região do mero beletrismo ocioso, que ele, Mário, tanto combateu (inclusive em si mesmo). Porque ele prossegue num tom que conhecemos muito bem no Brasil: o de “chega de escrever romances de denúncia e de protesto, é preciso fazer alguma coisa”:

Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopeia... Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora.



Nelson Werneck Sodré (História da Literatura Brasileira, cap. 14) via a falsidade de Euclides justamente no extremo oposto: nas tinturas de ciência que ele se esmerou em aplicar. Ao exibir a erudição penosamente pesquisada, diz NWS, ele era falso; a verdade emergia quando ele falava do drama humano.

E é curioso notar que a inverdade da forma corresponde quase sempre a uma inverdade de conteúdo, e por isso mesmo ocorre com muito mais frequência na parte dedicada ao estudo da terra e do homem, em que acolhe os conceitos e os preconceitos da ciência externa, a única de que se pode valer. O falso da sua botânica, da sua antropologia, da sua sociologia, encontra paralelo, em cada caso, no falso da sua linguagem. Quando surgem os acontecimentos, os episódios, as peripécias, o estilo se torna menos tortuoso, e a parte da campanha propriamente é muito mais acessível do que a introdução. 


Euclides procurou, em grande medida, se impor com o aval do cientificismo. Isto não apenas estava inculcado no espírito do seu tempo, como era nas letras brasileiras uma novidade positiva. Neste sentido, ajudou a marcar não apenas o seu território, mas o de autores de menor sucesso em vida, como Augusto dos Anjos.

O que garantiu a sobrevivência de Os Sertões, no entanto, foi o embate entre esse iluminismo laboratorial da prosa e a ferocidade bruta dos fatos. E Euclides (ele assim o afirma) parte sempre dos fatos. É isto que faz do seu livro a história de uma conversão, de alguém que mergulha numa experiência dantesca e sai dali transformado para sempre e, em grande medida, transformado num antagonista do que fôra.

Os Sertões é (entre outras coisas) a narrativa de como uma visão-do-mundo trinca, se estilhaça, e desmorona ao contato do mundo. Para ficar no tom cientificista, é a história de um “conceptual breakthrough”, o termo de Peter Nicholls para aquelas histórias de ficção científica em que um indivíduo percebe de repente que vivia num mundo ilusório, e que o “mundo de verdade” é algo maior e mais terrível (como Neo em Matrix, como Ragle Gumm em O Tempo Desconjuntado). 

Wilson Martins (História da Inteligência Brasileira, vol. V) sugere um parentesco, ainda a ser estudado, entre Euclides e Victor Hugo, comparação que não deixa de evocar o epíteto de “Hércules-Quasímodo” com que ele descreve o sertanejo. Os dois autores são “épicos, dramáticos e trágicos”, e ambos têm uma fascinação pelo lumpen, pelo ser humano reduzido à miséria mais extrema (como os truões do Pátio dos Milagres, em Nossa Senhora de Paris), o mendigo andrajoso que mesmo dentro do abismo se agiganta e dá trabalho. 


Um paralelo que não vejo ser muito explorado por aí (mas devo estar comendo mosca) é o do livro de Euclides com O Coração das Trevas de Joseph Conrad. São obras praticamente contemporâneas: Heart of Darkness saiu primeiro na revista Blackwood’s Magazine em 1899 e em forma de livro em 1902 – o mesmo ano de Os Sertões.

Em ambas se narra uma jornada lenta e aterradora rumo a uma sucessão de violências inimagináveis, praticadas em nome da cultura e da civilização. O “centro” da tragédia do livro de Conrad é Mr. Kurtz, um gerente comercial que comanda grupos de nativos na África e negocia com marfim: “um emissário da piedade, da ciência e do progresso”. Na transposição de Francis F. Coppola para o cinema, Apocalipse Now, ele se transforma no Coronel Kurtz, oficial norte-americano na guerra do Vietnam – o que faz o filme de Coppola chegar ainda mais perto do livro de Euclides.


Algumas das passagens mais chocantes de Os Sertões mostram que depois de um certo ponto soldados e jagunços não se distinguiam mais uns dos outros, todos esfaimados, maltrapilhos, mergulhados na demência da chacina permanente. Tal como as volantes que perseguiam os cangaceiros, era quase impossível distinguir os caçadores da caça.          


Esse clima alucinatório de guerra é evocado na famosa sequência, perto do final de Apocalypse Now, em que o barco norte-americano avança silenciosamente pelo rio noturno, por entre margens repletas de fogueiras, cruzes, caveiras, corpos empalados. É a chegada ao núcleo da barbárie de que aquela civilização se alimenta a pretexto de extingui-la, e lembra a descrição de Euclides do caminho que leva ao arraial, após o massacre da Terceira Expedição:

Os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas... (...) Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo. (...) 

Quando, três meses mais tarde, novos expedicionários seguiram para Canudos, depararam ainda o mesmo cenário: renques de caveiras branqueando nas orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, esgarçados nos ramos dos arbustos, e, de uma banda – mudo protagonista de um drama formidável – o espectro do velho comandante... (“Expedição Moreira César, VI”) 

O Coração das Trevas e Os Sertões são como aqueles pontos correspondentes no do-in ou na acupuntura, muito distanciados no corpo, mas basta tocar um deles para que o outro responda de imediato. São duas extremidades de alguma coisa mais profunda. 








sábado, 3 de agosto de 2019

4490) O Romance de Uma Frase Só (3.8.2019)




Eu tenho uma fascinação inexplicável por textos literários contínuos. Textos não interrompidos por nenhum ponto, nenhum corte, nenhuma pausa. Como o famoso “monólogo de Molly Bloom” que constitui o último capítulo do Ulisses de James Joyce. 

Foi onde tomei conhecimento de que uma façanha assim não apenas era factível, mas podia resultar, como resultou, num texto fervilhante de sentidos e de uma estranha beleza. (E basta isto para cancelar o “inexplicável” que coloquei no começo.)

Um texto com pontuação normal, como este aqui, equivale a andar a pé: é uma série confortável de impulsos e repousos. É diferente com um texto onde a pontuação se limita praticamente à vírgula, este sinal que proporciona apenas um segundinho para respirar, e também a travessões – tão necessários quando precisamos enxertar um período qualquer bem no miolo de um período mais longo que fica, por assim dizer, parado, à espera de que essa melodiazinha noutro tom se encerre e a lenga-lenga retorne ao tom normal – e quem sabe também ao uso de parênteses (os quais, aqui pra nós, eu já acho um pouco de jogo sujo, porque tudo que estiver dentro dos limites dessas meias-luas mágicas está pra todos os efeitos num outro plano da existência e do discurso, o que muitas vezes chega a produzir exageros e excentricidades, como a famosa história, tão repetida no folclore oral da literatura escrita, do sujeito que abriu um parêntese num livro e só se lembrou de fechá-lo no romance seguinte).

Textos assim parecem o alçar-voo de uma criatura que a partir do instante em que se desprende do chão passa a contar somente com seus próprios esforços para não se precipitar nele de volta com todo seu peso e momentum

Ler esses monólogos incessantes me lembra o esforço daqueles craques do basquetebol que quando se elevam do chão rumo a uma “enterrada” consagradora pedalam com as pernas no ar, como se isso fosse capaz de mantê-los em pleno voo, tal qual um colibri ou Dadá Maravilha, que em matéria de impulsão e planadura nada devia a Michael Jordan ou Shaquille O’Neal.

Isso me vem à mente quando leio que um dos concorrentes ao Booker Prize (um dos principais prêmios literários da língua inglesa) deste ano é o romance Ducks, Newburyport, de Lucy Ellmann – um romance feito de uma única frase que se estende por mais de 1.000 páginas.

Pelo que descreve a imprensa, “trata-se do monólogo interior de uma dona-de-casa de Ohio, que está ruminando sobre todo tipo de coisa, desde o cardápio de um jantar para amigos até o lado mais tenebroso da América de Donald Trump”.

Alguém se deu o penoso trabalho de contar quantas palavras tem o texto. (É simples: no meu teclado, é Shift + Ctrl + G.) Parece ser algo em torno de 426.100 palavras, e nem vou falar que se trata de um recorde, porque coisas mais ambiciosas do que isso já devem ter visto o laser das impressoras.

Textos desse tipo têm mais liberdade do que se imagina, e isso depende apenas da habilidade do(a) autor(a).

Eu posso começar um romance, por exemplo, contando o problema que tive hoje de manhã, quando recebi inesperadamente um telefonema internacional, de um número desconhecido com código da China, onde com alguma dificuldade uma voz que se exprimia num português claudicante perguntava por um tal de Brouláiol que não imagino quem seja, mas logo conseguimos nos entender, em parte porque o interlocutor de sotaque oriental foi logo substituído por uma voz feminina e impaciente, de inconfundível acento mineiro, explicando com eficiência secretarial que eu estava sendo convidado para ministrar uma oficina de Literatura de Cordel naquele país do Oriente, o que por um lado me surpreendeu, mas por outro nem tanto, haja visto que os portugueses que tanto ejacularam seu DNA na América do Sul também rumaram a Catai e outras portas do fim do mundo, não é à toa que o Macau deles não difere muito do Macau do Rio Grande do Norte, a não ser por características geofísicas e geopolíticas que seriam de se esperar, mas afinal de contas somos todos iguais, somos todos bípedes implumes e caniços pensantes, como nos assevera a História da Filosofia, todos dotados do mesmo sistema operacional básico que permitiria a qualquer um acompanhar sem muito esforço esta xaropada que aqui estou enfileirando com o propósito único, que talvez realize agora, de mostrar como em textos desse tipo o que importa é produzir uma sucessão de fragmentos que alguém possa entender sem fazer muito esforço, porque os leitores, em sua imensa e democrática maioria, se satisfazem com pequenos triunfos e, vamos e venhamos, não estão nem aí para o que os teóricos chamam The Big Picture, assim como as pessoas que mastigam jujubas se satisfazem com essas façanhas rudimentares de eficiência mecânica e com os miúdos orgasmos da glicose, e não estão nem aí, repito, para os índices de absorção de nutrientes – o que faz com que esta sucessão de fragmentos aparentemente inteligíveis aja em benefício do leitor, que a cada pousada-de-pé encontra um chãozinho semântico onde se apoiar e um vetor sintático que o conduz na direção do próximo passo, razão pela qual não é difícil a um escriba calejado em redações e Olivettis chamar-lhe a atenção para o fato de que a glicose e o açúcar das jujubas não difere muito, em termos químicos e sociológicos, do sal que os nossos irmãos norte-riograndenses extraem com desmedido e mal-pago labor, unindo dessa forma duas pontas improváveis de um colar textual no qual podemos enxergar algo como um enorme fio onde contas da mais variada natureza, formato e cor podem ser enfiadas uma atrás da outra, o importante é que o fio não se parta, e seja possível estendê-lo quase que indefinidamente, mesmo tendo que elevar a voz para abafar os irritados protestos da mineirinha pragmática do outro lado do outro fio, que insiste em saber se está falando com a pessoa certa, insiste em saber se eu sou eu mesmo (como se fosse necessária outra prova além desta catadupa estilística com que a estou banhando e enxaguando), insiste em saber se estou de brincadeira, insiste em saber o que andei fumando, e logo se despede com um tunco e uma rabissaca e um seco recado mandando-me “passar bem”.

É meio assim que conseguem se virar certas cobras-criadas como David Foster Wallace e James Joyce. Não duvido que nossa amiga Lucy Ellmann (que, vejam só, tem o sobrenome de um dos biógrafos do bardo-ribaldo irlandês!) seja capaz de estender-se confortavelmente ao longo de um lençol de mil páginas. Garante o resenhador do Quartzy, onde colhi estes dados, que a certa altura do romance o fluxo-de-consciência da narradora principal se alterna com o ponto de vista de uma leoa-da-montanha, o que por si só já elimina qualquer chance de monotonia.

Os finalistas do Booker Prize serão anunciados em 3 de setembro, e o nome do vencedor será dado a público em 14 de outubro.



(Lucy Ellmann)





quarta-feira, 31 de julho de 2019

4489) Santa Helena, o cordelista pop (31.7.2019)




Na terça-feira dia 30 participei de um evento na Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), onde se encontraram pesquisadores e poetas populares. Foi a doação, para o acervo da FCRB, do material reunido em vida pelo poeta Raimundo Santa Helena, falecido no ano passado.


Santa Helena foi uma figura muito conhecida nos meios literários do Rio de Janeiro, porque estava presente, divulgando a poesia do cordel, em todo tipo de evento ligado à literatura: coquetéis, lançamentos, palestras, simpósios, noites de autógrafos... 

Foi em alguma ocasião assim que vim a conhecê-lo. Vi que estava vendendo cordéis, me aproximei para olhar, comprei um ou outro, ele perguntou de onde eu era, e aí engatamos uma conversa boa, porque tínhamos muitos amigos em comum.

Anos depois recebi de Joseph Luyten, coordenador da coleção de cordel da Editora Hedra (São Paulo) a encomenda de fazer a antologia de Santa Helena. Tivemos alguns encontros, sempre à tarde, no jardim e nas lanchonetes do Museu da República. Eu levava o gravador e ele falava, falava, falava...


Santa Helena era um irresistível (e irrefreável) contador de histórias. Na época desse trabalho ele estava com 75 anos e era um dínamo de energia. Andava sempre com uma enorme bolsa cheia de folhetos, livros, panfletos, manuscritos, cadernos. E era um propagandista incansável do próprio trabalho: andava sempre com enormes folhas plastificadas onde reproduzia documentos, diplomas, certificados...

Uma vez perguntei “pra quê isso tudo” e ele disse que na cultura oral as coisas somem com muita facilidade, e que por isso ele fotografava e xerocava tudo, botava nome e data em tudo, numerava os folhetos...

Os folhetos dele eram um caso à parte. Leitor atento do Pasquim e talvez de outras publicações da poesia marginal dos anos 1970-80, ele criou um estilo próprio de cordel, envolvendo colagem, textos, datilografados, montagem de fotos, desenhos trechos manuscritos.


O cordel tradicional era impresso nas antigas máquinas de tipos móveis, onde as letras são pecinhas de metal, soltas, que vão sendo enfileiradas uma a uma para formar cada palavra. Santa Helena fez o cordel da época do fotolito, onde bastava encher de textos recortados uma “prancha” de papel, fotografá-la e reproduzi-la. Isso dá aos seus cordéis um perfil único, que ninguém até agora (que eu saiba) imitou.


Foi também um dos raros poetas a fazer cordel traduzido em outras línguas para vender aos turistas. Em todo evento internacional que acontecia no Rio (como a “Eco-92” ou “Rio-92”), lá estava ele vendendo e recitando em inglês. Marinheiro na época da II Guerra Mundial, ele viajou pelo mundo, passou algum tempo nos EUA, falava inglês com um desassombro que eu desde então procuro imitar, e recitava sextilhas tipo:

Engineer André Rebouças
at one hundred years ago
wrote about Amazônia:
“agriculture”… now we go
to discuss concerning forest
millions of trees over there still rest
to save the world of a blow…
(“Brazilian Amazônia”)

Ou então, no folheto “Don’t kill the President / Não matarás o Papa”:

Brazilian pulp writing
runs the world through the gates.
In dark space we are lighting
wherever there’s classmates
to listen to our message
as a dawn-pop-image
going far beyond the States.

Santa Helena morava numa casa humilde em Madureira; ele e a esposa Yara morreram com alguns meses de intervalo. Dois filhos estão servindo à Marinha, como ele fez, e sua filha Ynah esteve presente na Casa de Rui Barbosa, com o marido Jorge Simas, para fazer a doação do material em nome da família. Poetas e pesquisadores deram seus testemunhos pessoais, coordenados pela profa. Sylvia Nemer, que há anos vinha articulando a transferência deste acervo.


Para quem não sabe, a Casa de Rui Barbosa tem uma das maiores coleções de cordel do Brasil. Anos atrás fui um frequentador assíduo dessa biblioteca, ou “cordelteca”, como já se diz hoje em dia. Agora não preciso mais, porque grande parte da coleção já pode ser consultada online. Isso nos permite, sem sair de casa, passar a noite lendo pelejas de Costa Leite, romances de Delarme ou gracejos de Leandro, apenas clicando neste link:


O prefácio que fiz para a antologia da Editora Hedra conta muitas histórias de Santa Helena, e tenta situar sua obra, tão pessoal, tão peculiar, não apenas no contexto do cordel mas no contexto da imprensa alternativa carioca dos anos 1970-80. Mais do que um romancista inventor de fantasias ou um poeta lírico, ele foi um poeta-repórter, um indivíduo intensamente ligado no momento presente.










domingo, 28 de julho de 2019

4488) Dicionário Aldebarã XVIII (28.7.2019)




(ilustração: Hundertwasser)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Stóleo”: certas premonições que demoram a se confirmar, voltam a ser revisadas e reconstituídas de vez em quando, e acabam se transformando num evento perpetuamente adiado, parte integrante da vida da pessoa.

“Nakrunium”: grupos de leitores que se comprometem a toda semana passar adiante um livro para o próximo da lista, e receber um livro do membro que vem antes.

 “Zarbunz”: troca de carícias físicas, sem intenção sexual, entre pessoas que se conhecem profundamente e querem apenas curtir a proximidade uma da outra.

“Argobann”: qualquer recipiente usado para aparar a água que pinga de uma goteira, de uma torneira que está vazando, etc.  Por extensão, pessoas compassivas que se dispõem a escutar queixas e lamentações de alguém que precisa desabafar.

“Ablanim”: cartões metálicos redondos, cobertos por uma película com polarização química que mantém gelados os copos de bebida colocados sobre eles.

“Chissode”: pequenos epitáfios manuscritos, personalizados, que os amigos deixam no túmulo de uma pessoa querida sempre que vão visitá-lo.

“Maltomar”: diz-se da morte de certas pessoas onde nunca se poderá saber com certeza se foi morte natural, acidente ou suicídio, e que precisam sempre ser abordadas com um máximo de cautela e respeito.

“Raffikam”: pequenos retalhos de pano úmido que algumas pessoas colocam na quina da mesa, durante as refeições, panos que elas pegam e passam sobre a madeira nua da mesa para ir recolhendo os farelos de comida.

“Weruss”: o estado mental de quem, diante de um estresse aparentemente esmagador, consegue juntar forças e manter uma atitude permanente de que tudo está indo muito bem.

“Lodenz”: grupos de amigos que se reúnem periodicamente para lembrar os velhos tempos, e a cada reunião fazem um depósito numa “caixinha”, a qual deverá servir de fundo de ajuda para qualquer um que estiver precisando.

 “Fratuls”: livros com pequenos bolsos disfarçados no interior da encadernação, que servem para esconder documentos ou dinheiro.

“Vontersez”: minúsculos chalés que a maioria das casas de Aldebarã tem no fundo do seu quintal ou pátio interno, e que não pode ser ocupada pela família, devendo servir de alojamento gratuito para viajantes, que ali se hospedam em troca de ajudar nas tarefas da casa, por um prazo limitado de tempo.

“Conluvig”: pequenas peças de corda, em tamanhos variados, com prendedores de metal nas duas pontas, usadas para firmar bagagens ou outras cargas ao serem transportadas.

“Saidop”: grupos de três acontecimentos relacionados entre si que as pessoas costumam usar como argumentos para justificar um conceito, uma teoria, uma opinião, uma intuição aparentemente esdrúxula. Podem variar desde associações de idéias solidamente lógicas e argumentadas até disparates que provocam o riso.

“Orau”: cerimônia em que de tantos em tantos anos as pessoas começam a transferir suas posses para parentes ou amigos próximos, durante um almoço ou jantar formal, numa antecipação da herança que deixarão ao morrer.

“Arani”: a tradição de dar nomes próprios a cada objeto da casa: pratos, talheres, cadeiras, cortinas, para que cada um deles tenha sua individualidade e possa ser distinguido dos demais.

“Pargass”: pequenos códigos que os casais criam entre si, em que certas palavras ou nomes de pessoas são trocados por palavras comuns, para que eles possam conversar diante de outros sem que se perceba o verdadeiro conteúdo do que dizem.

“Zertend”: pequenos doces esféricos à base de frutas, envoltos em papel coloridos, que quando dados de presente a alguém devem ser comidos na hora, endo substituídos por uma pedrinha do mesmo tamanho, para que o presente possa ser tanto saboreado quanto guardado de lembrança.