quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

1524) “O Grande Truque” (31.1.2008)



Acabei de reler o romance The Prestige de Christopher Priest. Ele serviu de base para o filme O Grande Truque de Christopher Nolan, a história da rivalidade entre dois mágicos de salão na Londres do século 19. O livro já tinha me deslumbrado à primeira leitura, em 1999. Agora, tendo acabado de ver o filme de Nolan, reli com prazer redobrado suas 404 páginas, porque é uma dessas obras que, como a mágica de salão, nos dão a impressão de estar vendo uma coisa quando o que acontece de verdade é outra. Após o desfecho e a revelação dos seus numerosos segredos, o livro nos obriga a uma releitura, na qual constatamos que o autor foi escrupulosamente honesto (não nos mentiu nem uma vez sequer) e ainda assim, como um bom ilusionista, nos enganou o tempo todo.

Priest é um respeitado autor da ficção científica britânica. Seus livro mais famoso é The Inverted World (1974), uma fábula futurista sobre um planeta artificial em movimento contínuo, e que começa com uma frase desconcertante: “Eu tinha atingido a idade de 650 milhas”. Priest gosta de criar paradoxos de tempo e de espaço, e recorreu a novamente eles em A Máquina do Espaço (1976), uma releitura do clássico A Máquina do Tempo de H. G. Wells.

The Prestige conta a rivalidade entre dois ilusionistas que tentam roubar os segredos um do outro e criar truques de palco que o outro seja incapaz de reproduzir. Grande parte do fascínio do livro são as discussões sobre a essência da magia de palco, na qual sabemos que tudo é truque, mas temos o susto e o deslumbramento de poder pensar que presenciamos pequenos milagres. A maior parte do romance consta dos diários secretos que Alfred Borden e Rupert Angier mantiveram durante a vida inteira, nos quais eles parecem contar toda a verdade a respeito de si mesmos, e dão versões conflitantes dos episódios em que se envolveram. Cabe ao leitor decidir em quem acreditar.

Priest é um escritor de prosa clara e fluente. Teria que ser assim, para obter o efeito que pretende, assim como não faz sentido um mágico praticar truques de prestidigitação num ambiente pouco iluminado, onde a gente não possa ver com clareza o que some e o que surge. O mágico precisa dar a sensação de que está mostrando tudo. Daí o gesto clássico de puxar as mangas do paletó, erguer as mãos à luz, mostrá-las de frente, por trás... e no instante seguinte fazer aparecer ali um pombo ou uma vela acesa. A literatura é a mesma coisa. Quem critica a prosa sem enfeites de Agatha Christie e outros autores de mistério não percebe que, para obter os efeitos pretendidos, não faria sentido tentar uma prosa tipo Guimarães Rosa. Tudo tem que ser nítido, claro, banal e definido. O mistério tem que ser mostrado com nitidez para que no fim o leitor perceba que a solução estava ali à sua frente o tempo todo, e ele a viu, mas pensava que estava vendo outra coisa. Conseguir isto é uma façanha literária tão notável quanto escrever bonito.

1523) A música na Paraíba (30.1.2008)



Divido a história da música popular em “explosões”, não em “fases”, porque este termo dá a idéia de uma coisa com começo e fim, e na vida cultural as coisas começam e não acabam nunca, mesmo que em certo ponto se retraiam, cedendo espaço às novas coisas que acabam de aparecer. No meu tempo de vida como ouvinte, cresci na década de 1950, quando ressoava a primeira grande explosão nordestina, a música regional produzida na esteira do sucesso do baião criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Era a época de Jackson do Pandeiro, Marinês, João do Vale; de compositores como Zé Dantas, Rosil Cavalcanti, Onildo Almeida e tantos outros.

A segunda explosão foi nos anos 1970, e veio de uma direção diferente. Eram artistas de classe média, que tinham cursado (e geralmente abandonado) universidades, com formação musical variada (rock, bossa-nova, etc.). É a geração de compositores-cantores como Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Fagner, Belchior, Ednardo; de cantoras como Elba Ramalho, Amelinha. O elemento regional, rural, era muito forte, mas eram todos artistas urbanos, e a música que faziam (e ainda fazem) era um misto de regional, MPB e pop internacional.

A terceira explosão veio nos anos 1990, e embora tenha tido perfis musicais variados pode-se colocar o “Mangue Bit” de Chico Science como o grupo mais característico. Esta geração radicalizou a influência de um rock mais visceral e ruidoso do que o que influenciara a turma anterior. Um rock meio sujo, mal comportado, de roupas desmanteladas. Houve também uma contaminação grande com o hip-hop e a música eletrônica. Tudo isto se uniu aos ritmos regionais, sendo que em vez do baião e do xote esta geração privilegiou o maracatu e o coco de embolada (numa clara interface com o rap).

É no interior destas três explosões sucessivas que os artistas paraibanos encontram seus caminhos próprios. Chico César, por exemplo, apesar de surgido nos anos 1990 tem uma sonoridade mais parecida com a dos anos 1970 do que com a dos seus companheiros de geração. Grupos como Cabruêra, As Parêa, Chico Corrêa, Totonho & Os Cabra, Beto Brito e outros seguem, com as inevitáveis variantes, o mesmo perfil de formação e de textura sonora estabelecido pelos grupos pernambucanos que cronologicamente os precederam (Nação Zumbi, Mundo Livre, Cascabulho, Mestre Ambrósio, Orquestra Santa Massa, Cordel do Fogo Encantado, etc.). Guitarras estridentes e “loops” eletrônicos contracenam com percussão pesada e instrumentação regional (rabeca, viola, etc.).

É um formato que vem sendo bem aceito pelo público e que não se esgota em si mesmo, porque a formação individual de cada grupo se organiza em função das habilidades de seus integrantes. A sonoridade dos grupos é parecida o bastante para que possamos enquadrá-los todos dentro de uma mesma proposta musical, e ao mesmo tempo é variada o bastante para que possamos distingui-los uns dos outros sem muito esforço.

1522) O herói do Everest (29.1.2008)


(Edmund Hillary e Tensing Norgay)

Faleceu no dia 11 passado um dos heróis da minha infância: Sir Edmund Hillary, o primeiro homem a escalar o Monte Everest. (Ele o fez acompanhado pelo guia “sherpa” Tensing Norkay, liderando um grupo com outros 20 guias e 320 carregadores que conduziam 10 toneladas de bagagem – mas para a imprensa e os livros de História é bem claro quem foi o herói.) Cresci num mundo pequeno, de apenas 2 bilhões de habitantes, e Hillary (que escalou o Everest em 1953) aparecia em todos os almanaques, todas as revistas, todos os jornais. Sua façanha era única, e somente em 1969, quando Neil Armstrong tornou-se o primeiro homem a pisar na Lua, surgiu alguém que pudesse rivalizar com ele.

Há muitos livros sobre a façanha de Hillary. A escalada do Everest tornou-se um lugar comum nas últimas décadas, graças a novas tecnologias. Isto não quer dizer que tornou-se algo fácil; todos os anos há alpinistas (inclusive brasileiros) que morrem na tentativa. Ao que se diz, Hillary não via com simpatia o espírito competitivo dos escaladores mais recentes, e teria comentado, após a morte do alpinista David Sharp em 2006: “Acho que se criou uma atitude horrível com relação à escalada do Everest. Tudo que as pessoas querem é chegar ao topo. Não dão a mínima importância a um companheiro que esteja em dificuldade, e não me admira nada que tenham sido capazes de deixar alguém embaixo de uma rocha até a morte”.

Num comentário no New York Times, Edward Rothstein comentou que o perfil dos montanhistas (e dos exploradores em geral) mudou muito nos últimos tempos, comparado aos tempos áureos do Império Britânico: “O explorador dos tempos do Império é hoje uma anomalia. Muita energia tem sido gasta ultimamente mostrando o quando esses aventureiros estiveram associados aos aspectos mais venais do passado, e como a conquista e o controle de novos territórios se transformaram em crueldade. Por contraste a esse tipo de explorador, criou-se um novo tipo, o pioneiro pós-moderno que não é heróico, mas cuidadoso, correndo poucos riscos, desejando mais a segurança do que a aventura, visando mais a consideração para com os outros do que sua afirmação sobre eles, desbravando novos territórios simplesmente ao dar nova forma aos antigos.” O objetivo dos escaladores, diz ele, “é estabelecer uma rotina segura”.

Hillary subiu ao Everest, e depois visitou os Pólos Norte e Sul – consta que é o único ser humano a ter estado nesses três lugares. Não era um desse profissionais frios e deliberados de hoje (suas preocupações sociais e ambientais, temas hoje comuns, foram uma novidade em sua época). Quando ele e Tensing passaram quinze minutos no topo do Everest, o sherpa não sabia manejar uma máquina fotográfica, e Hillary ficou sem uma foto de seu maior triunfo. Ao descer, comentou com os outros membros da expedição: “Derrotamos o filho da p...” O Everest era uma aventura pela aventura, não um empreendimento tecnológico e publicitário como hoje.

1521) Flagrantes da vida real (27.1.2008)




(a filha e o pai)

Existe um princípio básico, uma lei não-escrita no mundo literário, que diz, mais ou menos: “Coincidências são permitidas e aceitáveis na vida, porque se devem ao Acaso. Elas não devem ser estimuladas ou mesmo toleradas na literatura, porque em geral acontecem para poupar trabalho a um autor preguiçoso”. 

Não são poucos os livros policiais nos quais o crime só é resolvido porque o detetive ia passando por baixo de uma janela e ouviu casualmente uma conversa que o pôs na pista do verdadeiro assassino. 

Alguns exemplos chegam a ser patológicos, como aquela novela da TV Globo na década de 1980 em que um crime misterioso acontece e vai sem solução até o último capítulo. E na noite final a polícia resolve examinar mais uma vez a cena do crime (ocorrido semanas atrás) e ali descobre a carteira de identidade do assassino, que a deixou cair no momento da fuga!

Saiu na imprensa esta semana uma notícia curiosa que veio enriquecer o Melodrama da Vida Real. 

A vietnamita Tran Thi Kham nunca conheceu seu pai, que engravidou sua mãe e depois foi embora, deixando de lembrança um anel de ouro e uma fotografia. A mãe morreu logo em seguida, e ela foi criada por uma tia. Quando ficou adulta, ficou sabendo a história completa de sua origem, e a tia lhe entregou os dois objetos. Ela sabia apenas que seu pai era de Taiwan, e tinha se relacionado com sua mãe em Hong Kong.

Tran partiu para Taipei (capital de Taiwan) para tentar encontrar seu pai. Arranjou emprego cuidando de uma mulher doente, enquanto realizava buscas infrutíferas pela cidade. Depois que a patroa morreu, ela largou o emprego e transferiu-se para a ilha de Kinmen. Depois de chegar lá, descobriu que deixara na casa de seus ex-patrões alguns objetos, entre eles o anel e a foto do pai. 

Pediu ajuda à polícia de Kinmen para contatar seu ex-patrão. Quando este fez uma busca no quarto que ela ocupara, encontrou os objetos – e se reconheceu na foto. Era ele o pai que Tran Thi Kham tinha procurado durante todo o tempo!

Se isso acontecesse numa novela da Globo, provocaria risinhos de mofa em muitos espectadores, a começar por mim. Quando acontece na vida real, dá o que pensar. 

A primeira coisa em que fico pensando é no fato de Tran Thi Kham ter morado durante meses com esse casal idoso, enquanto fazia suas buscas, e nunca ter comentado com eles nada que pudesse revelar a verdade. A que se deve isto? Distância de classe social? Temperamento introvertido dos orientais? 

Não sei, mas é espantoso, como é espantoso o fato de que numa cidade como Taipei (2 milhões e 600 mil habitantes) ela ter ido parar justamente na casa da pessoa que procurava. Para não falar no “lapso freudiano” de esquecer ali os seus preciosos objetos, obrigando o ex-patrão a encontrá-los e reconhecê-los. São fatos assim que dão ao autor de melodramas o maior dos álibis: “Não estou inventando nada. Isto acontece na vida real”.







1520) A vanguarda de auto-ajuda (26.1.2008)


Parece não haver duas coisas mais distantes do que o mundo sofisticado e intelectual dos praticantes da Arte Conceitual e o mundo banal, popularesco e raso dos livros de auto-ajuda. Ainda assim, certas obras de arte conceitual podem ser chamadas “vanguarda de auto ajuda”. Muitos críticos irreverentes vêem desta forma algumas obras da artista Yoko Ono, a viúva de John Lennon. Na exposição que está em cartaz no CCBB de São Paulo, Yoko tem obras como “Cleaning Piece”, em que ela nos instrui: “Faça uma lista de todas as coisas que o magoaram. / Faça uma pilha de pedras, cada pedra correspondendo a um item da lista. / Quando terminar, queime a lista, e aprecie a beleza do monte de pedras. / Depois, faça uma lista de suas alegrias, e repita o processo”. Outras instruções são mais metafísicas, como “Voe”, ou “Olhe para o sol até que ele fique quadrado”.

Uma que me interessou em especial foi “On Ownership IV”, que diz mais ou menos: “Observe uma foto neste livro. Escolha um lugar que lhe agrada. Declare-se possuidor desse lugar, e comunique o fato aos seus amigos. Visite o lugar com freqüência, e traga pessoas consigo. Mantenha o lugar limpo e arrumado. Todos os anos, mande cartões postais aos seus amigos, lembrando a eles que aquele lugar lhe pertence. Faça estudos históricos e geográficos sobre aquele lugar. Distribua materiais relativos àquele lugar entre as pessoas de quem você gosta”.

O interessante dessa proposta é que o tal “lugar” não é definido com clareza. Pode ser um banco de praça. Pode ser um poste de luz numa rua, uma porta de um prédio, um trecho de calçada. Pode ser uma árvore. Pode ser a Torre Eiffel ou o Pão de Açúcar. Tudo que importa é o fato de você se considerar mentalmente responsável por ele, e passar a cultivar com ele uma relação pessoal. É claro que muita gente não vai reconhecer você como proprietário (digamos) do Teatro Municipal ou da Ponte Rio-Niterói, mas isto não impede que você se aproprie deles. Basta saber exercer essa relação de posse de uma maneira cuidadosa, que não chame a atenção, e sem fazer nenhum gesto despropositado – como, por exemplo, proibir o acesso de outras pessoas, ou querer levar para casa partes significativas do “logradouro” escolhido.

A Arte Conceitual cria essas possibilidades aos exagerar a importância do receptor da obra artística, ou seja, do público. Em vez de ser um simples apreciador dos filmes e da arquitetura da Cinemateca do MAM, por exemplo, eu posso me considerar proprietário dela, e desenvolver uma relação simbólica muito mais intensa do que a de um mero espectador. Como sei que minha posse pode ser questionada, e não sou bobo, não vou interferir na programação ou na administração da Cinemateca. Mas vou lá de vez em quando, pago meu ingresso (claro!), verifico se está tudo bem, volto para casa satisfeito. E me torno eternamente responsável por aquilo que me cativa.

1519) Gramiro de Matos (25.1.2008)




Na minha estante dedicada aos autores fora-de-esquadro, àqueles que não se encaixam com facilidade em estilos, movimentos ou épocas, guardo com carinho e curiosidade o livro Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros (Rio: Eldorado, 1973), assinado por Gramiro de Matos, autor baiano nascido em 1944. 

É seu segundo livro e seu segundo nome, porque a primeira obra, Urubu Rei (Rio: Gernasa, 1972) foi assinada por Ramirão Ão Ão. Tem muita poesia essa história de assinar cada livro com um nome novo! 

O estilo de Ramiro Silva Matos (seu pálido nome oficial) é um dos pontos altos da prosa-poesia beat-tupiniquim, concreto-psicodélica, rock-joyceana, cultivada com furor por algumas dezenas de malucos durante os anos 1970. Gramiro previne nas páginas iniciais: 

“Os dessemelhantes tipos de leitores deverão contentar-se com as transformações ilimitadas que tenta uma narrativa ligada à atividade mental variável – não apenas uma linguagem que apresente o mundo, mas a metamorfose do mundo inconsciente em movimento”.

A filiação linguística do livro é deixada explícita por citações diretas que emergem aqui e acolá no texto fragmentado do romance: Anthony Burgess (Laranja Mecânica), Sousândrade, James Joyce, João Ubaldo Ribeiro, Waly Sailormoon. 

O autor admite que o romance não tem propriamente um enredo e que as páginas estão “soltas no espaço”, o que aliás não importa muito, porque cada uma delas é uma combinação de achados brilhantes, cascalho bruto do linguajar cotidiano, imagens violentamente surrealistas, proliferação incontrolável de termos indígenas, interferências semânticas e ortográficas, fragmentação tipográfica do fluxo do texto.

O livro conta várias histórias de amor e farra entrelaçadas, sendo a principal delas a que envolve os personagens denominados O Besta e A Doida. Outros personagens têm nomes curiosos como Fhedra, Don Xenaldo, Bavy, Kilânio, Finado Bufa, Perilampo. 

Eles bebem em botequins, amam-se nas areias da praia, questionam o Universo em janelas de apartamentos, fazem bobagens, têm alucinações, escutam música tropicalista.

O livro tem capa de Mixel, texto de Jorge Amado na contracapa, pós-escritos de Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Anna e Laís Corrêa de Araújo, todos com apreciações críticas de Urubu Rei

Gramiro teve impacto na época, mesmo que esse impacto não tenha lhe rendido uma visibilidade contínua como a de que desfrutou seu companheiro de geração e de estilo, Waly Sailormoon (ou Salomão).

É uma obra difícil? Não por falta de explicações, como esta, irretocável, à página 142: 

“Neste’mpo fora do corpo, na cabeceira da cumieira mesa-telha-planeta, ou s’esmaga ou decepa a cabeça da serpente y da semente, Finado Bufa livre do’sequazes’orri escorrendo em sangue fantasmagórico pelo chão di azulejos medievais antiazuis indo juntar seu pensamento motor transmissor numa molécula captora-voadora doutr’semente’semelhantes da consciência cósmica pós-consciente”. 

Precisa mais?





quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

1518) O cinema fantasmático (24.1.2008)


(David Bowie, como Nikolas Tesla, em O Grande Truque)

Nada se parece tanto ao cinema quanto a mágica de salão, a mágica dos artistas que serram mulheres ao meio, fazem surgir e desaparecer moedas entre os dedos, adivinham a carta de baralho que escolhemos, fazem uma pessoa sumir no palco agitando um lenço colorido à sua frente.

Nos anos 1920, quando cristalizou sua linguagem, o cinema se apoderou da extrema maleabilidade do mundo das imagens, da superfície aparente do real. Formas, volumes, movimento, ação – tudo isto ele reproduzia com verossimilhança assustadora. E ao mesmo tempo era capaz de produzir nessa superfície tão realista uma série de modificações impossíveis de ocorrer no mundo material. A arte dos efeitos especiais, desenvolvida principalmente por Méliès, começou como se fosse uma atração circense ou teatral, mas evoluiu para ajudar a criar um mundo virtual onde a matéria aparentemente sólida se tornava elusiva como a fumaça e dócil como massinha de modelar.

Daí o meu espanto ao ver como o cinema explora pouco o mundo dos mágicos de cartola, dos Houdinis e dos Blackstones que, na época em que ele surgiu como Arte, dominavam as platéias. Os efeitos especiais são o equivalente à magia do palco. Sabemos que aquilo não aconteceu fisicamente no momento da filmagem, sabemos que foi um truque, mas talvez o fato de sabermos que se trata de um truque nos encante ainda mais. Qualquer idiota pode filmar um homem desaparecendo: basta ter uma câmara e apontá-la para um homem capaz de desaparecer. Muito mais difícil é produzir a ilusão de um desaparecimento que todos sabemos impossível.

Dois filmes recentes exploram com brilho esse universo: O Ilusionista de Neil Burger e O Grande Truque de Christopher Nolan. O primeiro é um filme policial, o segundo é um filme de ficção científica. Em O Ilusionista temos uma trama complexa que envolve crime e investigação, e o ilusionismo entra como aquele fator de encantamento que os grandes criminosos tentam produzir – impedir, através de “prestidigitação” e de pistas falsas, que o detetive saiba o que realmente aconteceu (e, mesmo quando desconfie, não possa prová-lo).

O Grande Truque, baseado num romance de Christopher Priest (conhecido escritor britânico de FC) introduz o elemento ficcientífico através de uma invenção imaginária de Nikola Tesla, rival de Thomas Edison na domesticação da eletricidade. Alguns críticos (como Roger Ebert) se sentiram trapaceados com o desfecho deste filme, mas apenas porque não sabiam que era uma história de FC, e esperavam uma solução realista. Enquanto O Ilusionista tem um final realista de espetacular engenhosidade, O Grande Truque nos arrasta consigo para o território do fantástico. São filmes que se baseiam em imagens vistas muito rapidamente e mal identificadas, em cortes bruscos produzindo uma ilusão de continuidade entre dois tempos ou dois espaços. Magia do cinema, magia do palco e, no segundo filme, a magia da FC.

1517) Guga (23.1.2008)


Vejo no “Globo Esporte” que o tenista Gustavo Kuerten começou sua despedida das quadras. Guga vem sendo martirizado há anos por um problema no quadril que lhe causa muitas dores, que o impede de jogar direito, e que não foi resolvido por cirurgias sucessivas. Acompanho essas histórias à distância, pela imprensa, sempre com a esperança de que o atleta se recupere e volte com força total. Com a medicina de hoje, quase tudo é possível. Vejam o joelho de Ronaldo, que se esfrangalhou diante das câmaras do mundo inteiro num jogo da Inter de Milão. Poucos anos depois, lá estava o Fenômeno, novinho em folha, sendo artilheiro e campeão da Copa de 2002.

Guga nas quadras era uma figura. Exageradamente alto, ossudo, desengonçado. Tinha um físico contraditório, porque faltava-lhe a agilidade de jogadores de menor estatura como McEnroe ou Agassi. Também não tinha o vigor físico de Rafael Nadal, ou a elegância de Borg ou de Pete Sampras. Se colocar por cima disso uma cabeleira encaracolada presa por faixas coloridas, e um uniforme de cores meio berrantes, temos uma figura que chamava a atenção no mundo do tênis, que é um mundo muito formal e bem-comportadinho, todo mundo de branco como se fosse um batalhão de médicos indo à praia.

Os braços desmesurados de Guga o faziam alcançar bolas aparentemente perdidas num canto remoto da quadra. Ele devolvia essas bolas numa “passada” indefensável para o adversário, que já estava dando o ponto como ganho. E talvez tenha sido esse desengonço que o liquidou, forçando-lhe o quadril a movimentos que não podia suportar, e acelerando o fim de uma carreira cujo ponto alto foi no final de 2000, quando ganhou em Portugal o torneio dos campeões, batendo André Agassi na final.

Guga sempre me pareceu um bom caráter. Um sujeito “família”, sério, dedicado e amoroso à mãe, à avó, aos irmãos. E ao mesmo tempo um cara com quem teoricamente a gente poderia passar uma noite num terraço de bar de frente para a praia, tomando cerveja, tocando violão, surfando nas ondas da mente, e conversando brebôte. Não consigo visualizar uma cena assim com certos “atletas modelos” que tem por aí, todos bons-meninos, evangélicos, parâmetros de conduta na imprensa. Sempre desconfio de quem parece certinho demais.

Guga não igualou as façanhas dos grandes tenistas contemporâneos. Dos quatro torneios do Grande Slam, ganhou Roland Garros três vezes, mas não venceu nenhum dos outros. Depois da primeira vitória em Paris, ele criou uma afinidade afetiva com a cidade e o torneio, vindo a vencer mais duas vezes. Isto não sugere um atleta-exemplo, um profissional imbatível, mas um artista de talento que em vez de cumprir todas as exigências e os currículos oficiais triunfou instintivamente naquilo com que se identificava, criando uma carreira que parece apenas com a pessoa e a história de vida dele. As carreiras dos grandes campeões são todas parecidas entre si. Guga foi diferente e será único.

1516) “Across the Universe” (22.1.2008)


Os beatlemaníacos andam soltando pistolas-de-3-tiros à saída deste filme, em cartaz no Rio e São Paulo. É mais uma tentativa de fazer um semi-musical com trilha sonora totalmente extraída do repertório dos Beatles. O roteiro tem um fiapo de história: um rapaz das docas de Liverpool, chamado Jude, viaja aos EUA à procura de seu pai, marinheiro americano que engravidou sua mãe durante a guerra e voltou para a América sem saber do filho. Chegando aos EUA, Jude fica amigo de um rapaz chamado Maxwell e sua irmã Lucy. Vão morar em Nova York e formam ali um grupo de amigos que incluem a oriental Prudence, o guitarrista negro Jo-Jo, e a cantora e dona da pensão onde vivem, a cantora Sadie. Assim, personagens das canções dos Beatles vão sendo introduzidos aos poucos. E as canções se sucedem, algumas sendo meramente ilustradas pela ação, como num clip pouco imaginativo, outras com riqueza de produção, outras com interessantes releituras.

O grupo de amigos vive os anos 1960: os protestos contra a Guerra do Vietnam, o movimento estudantil sendo reprimido pela polícia, a morte de Martin Luther King, o começo da cultura psicodélica das drogas e das roupas em cores berrantes. E de dois em dois minutos uma canção dos Beatles emerge, muitas vezes em circunstâncias inesperadas. O filme é um longo jogo de reconhecimentos e de pequenas surpresas. Como os arranjos são, muitas vezes, diferentíssimos da gravação original, quando as canções começam só as identificamos quando o primeiro verso é cantado – e perpassa pela platéia do cinema um sussurro de risos deliciados, de pequenas exclamações de surpresa, um murmúrio de quem reencontra algo querido e remoto.

Algumas encenações são mais elaboradas: animação e coreografia em “I Want You”, efeitos psicodélicos em “I am the Walrus” (cantada por Bono Vox no papel de um tal Dr. Robert), animação e efeitos circenses em “Being for the benefit of Mr. Kite”. “Strawberry Fields Forever”, superposta a cenas das selvas do Vietnam ganha uma pungência imprevista. Curiosamente, as canções relativas aos nomes dos personagens não são cantadas, mas ficam como um subtexto possível, uma elipse que os enriquece.

É um bom filme? Assim, assim. Como obra de cinema nada traz de novo, e seus picos de originalidade atingem apenas o nível de coisas já vistas em filmes anteriores. Talvez possamos definir o filme como uma “fan-fic” (ficção escrita pelos fãs de um artista), uma homenagem, uma curtição entre correligionários. Se o indivíduo não conhece os Beatles, vai achar o filme confuso e meio despropositado em muitos detalhes. Se não gosta dos Beatles... passe por longe, companheiro, e seja feliz. E há aqueles que, por mais cinéfilos que sejam, por mais fiéis aos sisudos ditames da Arte Das Imagens Luminosas em Movimento, já prometeram silenciosamente a si mesmos assistir de novo, comprar o CD da trilha, saborear o DVD.

1515) A inspiração equivocada (20.1.2008)




O poeta John Hall Wheelock conta que quando estava na universidade foi assistir uma montagem do Ricardo III de Shakespeare. A certa altura, ele ouviu um dos atores dizer um verso que o encantou: “Vai, dorme... Eu te contemplo dos balcões do céu”. 

Wheelock pensou: “Que belo verso! Gostaria de tê-lo escrito”. Escreveu então um poema intitulado “De Coelo – Canção baseada num verso de Shakespeare”. E começou a receber cartas de leitores (inclusive especialistas em Shakespeare) perguntando onde se encontrava o tal verso. Ele o procurou em todas as cópias do texto da peça, e o verso não aparecia em nenhuma. 

Wheelock tinha certeza, por outro lado, de não ter inventado o verso por conta própria, porque teve inclusive de procurar no dicionário o significado da palavra “oriel” (“balcão”), que ele desconhecia.

E agora? De onde veio o verso? Ninguém sabe. Wheelock, nas edições subseqüentes do poema, assumiu a autoria, depois de perceber que não era mesmo de Shakespeare. Poderia talvez ter sido um “caco”, um improviso do ator, mas eu duvido. 

Uma interpretação imaginosa seria a de que no momento em que desejou ter escrito aquele verso o poeta o fez com tal intensidade que foi magicamente transportado para um universo paralelo em que esta linha estava ausente da peça de Shakespeare, dando-lhe assim a oportunidade de assumir sua autoria.

Mais realista é supor que, na acústica variável de um teatro, Wheelock ouviu palavras parecidas e as traduziu por outras. Acontece muito, e às vezes esses erros nos dão de graça algumas boas idéias. Já referi nesta coluna que o título O Evangelho Segundo Jesus Cristo ocorreu a José Saramago quando ele, passando por uma banca de revistas, viu de relance palavras soltas e montou esse título, achando que o tinha visto em algum jornal. Voltando atrás, percebeu o engano, mas achou que o título seria um bom ponto de partida para um livro. 

Coisas assim nos acontecem o tempo todo. Algum tempo atrás passei por uma rua onde havia um cartaz lambe-lambe na parede anunciando o show de um grupo chamado “Sobrado Mardito”. Voltando atrás, percebi que na verdade era “Sorriso Maroto” – mas o falso título daria um belo filme de terror com trilha sonora de Adoniran Barbosa.

O músico Brian Eno criou um baralho chamado “Estratégias Oblíquas” com frases para estimular a criatividade. Numa das cartas ele diz: “Honre o seu erro como uma intenção oculta”. E explica: 

“Você pode dar-se o trabalho de elaborar uma série de condições, na esperança de que a certa altura haverá um estalo e as coisas irão todas na direção certa. Mas muitas vezes não é isto que acontece. Então, o melhor é organizar deliberadamente as coisas de modo a que ocorra entre esses elementos uma sinergia que você mesmo não compreende. Na verdade, o que ocorre não é que você tem controle total sobre o processo, mas que você está criando uma situação que expande a sua noção de controle”.