sábado, 12 de fevereiro de 2022

4793) Como viver em segurança? (12.2.2022)




No ano passado, moradores de uma rua no bairro de Afogados, no Recife, botaram no meio de um cruzamento uma cadeira com uma boneca bem grande sentada em cima. Para quê? Em parte por zueira, claro. E em parte (quem sabe?) para assustar algum indivíduo mal intencionado que quisesse circular por aquela vizinhança. Nunca se sabe.
 
Circula nas redes sociais há algum tempo uma postagem feita em 2019 por Cecília do Lago, no Twitter (@ceciliadolago). O twit original foi compartilhado mais de 2.600 vezes, então acho que posso transcrever seu conteúdo aqui e comentá-lo, sem estar invadindo a comunicação alheia.
 
Diz Cecília (transcrevo o post literalmente):
 
Resolvi o problema de segurança da rua atrás da minha casa. É simples e requer apenas um roteador.
 
Como tenho o hábito de chegar tarde em casa, e a rua atrás da minha casa é mais ampla e teoricamente mais segura que a minha própria rua. Acabo voltando por lá. Entretanto, ela é muito erma. Resolvi abrindo uma rede pública do meu roteador, com limitação de banda.
 
A rede não tem força para segurar um streaming (afinal não sou operadora de ninguém) mas é o suficiente para, agora, 4 meses depois da medida, a rua tem sempre uns 5 ou 6 adolescentes na calçada, até as 1h da manhã.
 
A amplitude da minha internet grátis pega apenas poucos metros, então eles praticamente ficam sentadinhos na guia em frente à minha casa e a do vizinho, mexendo no celular, papeando, andando de skate e até tem umas crianças jogando bola.


Tudo isto converge para aquela idéia clássica de que rua segura é rua frequentada, rua onde a qualquer hora tem gente passando. Um amigo meu dizia que “ladrão gosta de multidão, assaltante gosta de rua deserta”.
 
Os garotos do celular são segurança suficiente? Não, se vier alguém decidido mesmo a invadir a casa da moça. Mas um assaltante casual passa na esquina, vê o movimento e segue adiante, confiando que mais à frente vai ter uma rua mais indefesa do que esta.
 
É como aquela tranca de segurança que se prende no volante dos automóveis. Perguntei a um amigo se era 100% segura. Ele disse: “Não, mas o cara vai precisar de alguns minutos a mais para desarmá-la, e provavelmente vai passar adiante e arrombar um carro sem tranca”. Por mim, faz sentido.
 
Adolescentes de skate não trazem segurança, trazem uma impressão de segurança. Algo que contribui, em certa medida, para a segurança.
 
A sociologia cita muito a teoria das “vidraças quebradas”: numa vizinhança cheia de prédios ou casas com vidraças quebradas, a criminalidade é maior, porque a aparência do bairro dá a entender que ali vale tudo. Terra sem lei.



Uma impressão de normalidade é necessária, e não é apenas maquiagem, hipocrisia, disfarce, embora muitas prefeituras e administrações públicas tentem impor essas coisas quando lhes convém (arrancar mendigos das ruas na véspera de um grande evento, etc.).
 
É uma forma benigna de controle psicológico. “Te comporta. O pessoal daqui é exigente.”
 
As sociedades humanas apostam na normalidade, desejam a existência de zonas de conforto. E quem pode dizer que estão erradas? Como diria qualquer líder político, existe a hora do conflito, e existe a hora do conforto.
 
No romance The Postman (1985), de David Brin, a civilização foi arrasada por uma guerra biológica, e regride a uma semi-selvageria. Um cara, ao vaguear de aldeia em aldeia, acha por acaso (e veste) um antigo uniforme de carteiro. Daí em diante, quando é avistado, as pessoas pensam que o mundo está se reorganizando, porque “os carteiros voltaram a entregar correspondência”. Não é o caso; mas esse sopro de otimismo ajuda a desencadear uma pequena maré civilizatória.



O livro foi filmado em 1997 com Kevin Costner na direção e no papel do “Carteiro”. Fábio Fernandes traduziu para a Isaac Asimov Magazine (# 21 e 23), Ed. Record, duas noveletas (“O Carteiro” e “Cyclops”) que fazem parte do livro original.
 
Claro que existem outras formas de proteção. Ryszard Kapucinski, em seu livro Ébano – Minha Vida na África (1998; Companhia das Letras, 2002, trad. Tomasz Barcinski), fala, a certa altura, do tempo em que viveu em Lagos, na Nigéria. O jornalista polonês desdenha os colegas que vão à África, hospedam-se nos bons hotéis da capital, comem nos bons restaurantes e depois voltam para à Europa e fazem “relatos autênticos, de quem esteve lá”.
 
Ele foi morar numa cabeça-de-porco num beco, no meio de uma vizinhança paupérrima. Fala sobre o calor assassino, a falta de luz elétrica, a falta de água, os mosquitos. Há um homem que só possui de seu uma camisa. Outro possui um facão, e nada mais. Uma mulher possui apenas uma panela.


Kapucinski narra seu desespero ao perceber que toda vez que saía do seu quartinho alguém entrava ali e roubava alguma coisa. Acaba fazendo amizade com Suleiman, um muçulmano local, e explica seu problema.
 
Contei-lhe que era roubado com frequência. Suleiman achou muito natural. O roubo – embora desagradável – era uma forma de nivelar as desigualdades.É bom ser roubado, afirmou; chega a ser um sinal de boa vontade da parte dos moradores do beco. Eles demonstram dessa forma que lhes sou útil e que por isso sou aceito por eles. Posso me sentir seguro. Fui ameaçado alguma vez? Tive que confessar que não. Então! Estarei em segurança enquanto permitir ser roubado. Se eu chamar a polícia e começar a persegui-los, então será melhor mudar-me daqui. (p. 132)
 
Mas Suleiman entende o problema do polonês em terra estranha, e o convida para dar um passeio pela feira local. Examinam vários produtos nas barracas. A conselho dele, Kapucinski compra algumas penas de galo branco.
 
Eram bastante caras, mas não fiz objeção. Voltamos ao beco. Suleiman arrumou as penas, amarrou-as com um fio e as pendurou na parte superior do umbral da porta.
 
Daí em diante, nada mais sumiu do meu apartamento.
 
Era um ritual de feitiçaria? Uma simpatia? Um código de gang? Tanto faz. É outra cultura, são outros costumes. É como se isso acontecesse numa cabeça-de-porco do bairro do São José e Suleiman colocasse ali uma flâmula do Treze. “Não bulam. Esse rapaz é gente nossa.”
 
 







Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Braulio:

Neste tema do "The Postman", recomendo a leitura do livro Estação Onze, de Emily St. John Mandel, escrito em 2014. Após uma pandemia de gripe que dizima 99% da humanidade, o mundo regride a uma vida medieval. Mas um grupo de artistas, a Sinfonia Itinerante, viaja pelo que restou apresentando concertos e peças de Shakespeare. "Sobreviver não é suficiente".

Me ocorre, também, o seguinte: você que gosta de criar/identificar áreas da literatura de ficção científica/fantástica/policial, que acha dessas obras de fim-de-mundo por vírus, doença misteriosa? Seriam realmente ficção científica? De fato, nelas, a ciência regride.

Abraços
Paulo - Recife/PE