sábado, 8 de maio de 2010
2019) A Razão e a Fé (28.8.2009)
O problema com a Razão é que ela é incapaz de sustentar-se sozinha: precisa sempre se apoiar em algum tipo de Fé.
Para meus amigos cartesianos, a Razão é uma espécie de solvente universal, que tudo liquefaz. Mas o cientista que vive da Razão não pode abrir mão da Fé. Não a fé no sobrenatural, mas, justamente, a fé no natural. A crença de que o mundo da matéria se baseia em constantes, em continuidades. A fé na coerência dos fenômenos físicos.
É esse tipo de fé que garante (a mim pelo menos) que amanhã o sol vai nascer aproximadamente no mesmo ponto do horizonte em que nasceu hoje, e não 20 graus à direita ou à esquerda. Que a água vai ferver a 100 graus, e não a 120 ou a 67. Que as constelações de ontem irão se repetir no céu de hoje. Que (enfim) o Universo não muda as regras do jogo do dia para a noite.
Por mais que ocorram fenômenos inexplicáveis, o que foi explicado se repete, se repetidas as condições iniciais. Eu tenho fé nisso, como tenho na minha própria existência.
Por isso, não devemos ficar irritados quando pessoas diferentes têm fé em outras coisas. A Fé é um sentimento essencial na vida, e vai muito além do mero misticismo ou da mera religião. Não uso o termo “mero” para desvalorizar essas coisas, mas para lembrar que são facetas de nossa vida mental.
A Fé também é algo que vai além da mera ciência, da mera arte, da mera filosofia. Quando educamos uma criança, é essa Fé que estamos lhe transmitindo. Quando lhe ensinamos que este objeto se chama por esta ou aquela palavra, estamos lhe transmitindo uma das bases dessa continuidade.
(Falo isto porque já li experiências sobre crianças de 1 ou 2 anos a quem todo dia se ensinavam nomes diferentes, e inventados, para os objetos, para ver como elas reagiam. Reagiam, penso eu, com confusão mental e desinteresse pelas coisas.)
Um dos contos de ficção científica mais atemorizantes e mais comoventes que já li foi “The safe-deposit box” de Greg Egan. Por um fenômeno cuja razão não vem ao caso (mas é explicada no final da história, mesmo que de forma fantástica) o protagonista é uma mente, um “Eu”, que todos os dias de sua vida desperta num corpo diferente, de alguém com aproximadamente sua idade cronológica, em uma cidade de tamanho médio. Sempre foi assim. Num dia ele acorda na casa de José, no corpo de José; na manhã seguinte, na casa de Antonio e corpo de Antonio; no outro, na casa de Manuel e corpo de Manuel...
Quando o conto começa, ele tem cerca de 30 anos de idade e conseguiu, ao longo desses milhares de saltos inexplicáveis, criar uma história pessoal para si, uma biografia que guarda num cofre de segurança num banco da cidade.
Esse sentido de continuidade, mesmo nas condições mais adversas, é o que mais precisamos conservar. Precisamos de um senso de continuidade do Eu e de um senso de continuidade do Mundo. Nada nos prova de que essa continuidade existe, mas sem essa Fé não há religião, não há filosofia, não há ciência e não há vida.
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