domingo, 30 de janeiro de 2022

4789) "Munique - No Limite da Guerra" (30.1.2022)



O portal Netflix acaba de colocar na sua telinha o filme Munique – No Limite da Guerra (“Munich – The Edge of War”, 2021) de Christian Schwochow, uma história de espionagem e diplomacia em torno do famoso Acordo de Munique, assinado em 1938 entre os líderes da Alemanha, Inglaterra, França e Itália, pelo qual a Alemanha ganhou direito de posse sobre a região dos “Sudetos” e a II Guerra Mundial foi adiada para o ano seguinte.
 
Voltarei a falar da política mais abaixo. Por enquanto, prefiro falar de literatura, porque traduzi o livro que deu origem ao filme: Munique (Alfaguara, 2018), de Robert Harris.



Harris é um autor de thrillers muito competentes, e bom narrador. São também dele Enigma (1995), sobre a decifração dos códigos da máquina de criptografia nazista, na II Guerra (filmado por Michael Apted em 2001); Conclave (2016), sobre a polêmica eleição de um Papa no futuro próximo (que também traduzi para a Alfaguara) e vários outros.
 
A adaptação de Ben Power é muito boa; seu roteiro segue passo a passo o enredo original do livro, com a inevitável eliminação de episódios menores. Há pequenas mudanças no enredo que achei inferiores ao livro, mas que não comprometem. (Um exemplo: no livro, o diplomata britânico Hugh Legat tem uma situação conjugal muito mais tensa, e que se resolve se uma maneira mais complexa do que o típico final “welcome home, darling” apresentado no filme.)
 
Hugh Legat (George MacKay) é um diplomata jovem, próximo ao primeiro-ministro inglês, Chamberlain. Em Oxford, ele tornou-se amigo de um alemão, Paul von Hartmann (Jannis Niewohner), e da namorada dele, Lena (Liv Lisa Fries). Eles estudaram juntos na Inglaterra e de volta à Alemanha o casal toma caminhos diferentes – Paul entra para o nazismo (e rompe com Legat), Lena entra para a oposição.


 
Agora, Hitler ameaça invadir a Tchecoslováquia para anexar os Sudetos (região habitada mais por alemães do que por tchecos), e o ministro Chamberlain se desespera.
 
“Mas será possível?!”, pensa, e diz, ele. “A gente acabou de sair de uma Guerra Mundial que estraçalhou uma geração inteira de jovens britânicos, e vamos ter que entrar em outra, para defender um território que os ingleses nem sabem que existe?!”
 
Nesse instante Legat recebe por vias transversas um recado: Von Hartmann se decepcionou com o nazismo e quer passar para a Inglaterra documentos militares confidenciais, mas só o fará para alguém em quem confia. Como seu ex-amigo Hugh Legat.
 
Não é todo dia que a gente vê uma história de espionagem centrada em dois tradutores (porque é nesta função que os dois, fluentes em inglês e alemão, assessoram seus líderes).
 
O filme segue de perto a narrativa do livro, alternando episódios de Legat em Londres e Von Hartmann em Berlim, até que na altura da metade os dois convergem para Munique, onde se dará o encontro de cúpula.


Vale transcrever aqui um trecho do livro em que o Fuhrer, durante um jantar, ironiza os demais negociadores europeus, que se recusaram a jantar com ele e Mussolini, alegando cansaço:
 
Hartmann sentou do lado oposto ao de Hitler, tão longe dele quanto lhe foi possível. (...) Ainda assim, estava perto o bastante do Führer para poder vê-lo com clareza – distraidamente beliscando um bolinho e conversando muito pouco. Parecia estar meditando naquela atitude esnobe da parte dos britânicos e dos franceses. (...)
 
– Duce – disse ele, – não concorda que alguém pode observar o declínio de uma raça nos rostos dos seus líderes? (...) Os franceses estão sem dúvida decadentes: Léger é da Martinica, e claramente de ascendência negroide, mas Daladier tem uma aparência que indica caráter. É um velho soldado, como eu e você, meu caro Duce. Daladier... sim, é possível entender-se bastante bem com ele. Ele vê as coisas como elas são e tira as conclusões adequadas.
 
– Ele queria apenas tomar sua cerveja em paz e deixar que os consultores tocassem o barco – disse Mussolini.
 
Hitler pareceu não tê-lo escutado.
 
– Mas Chamberlain! – Ele pronunciou o nome com um desagrado cheio de sarcasmo, prolongando as vogais de tal maneira que o nome soava como uma obscenidade. – Esse Chamberlain arenga por causa de cada vilarejo e de cada interesse mesquinho como se fosse um barraqueiro de mercado! Os senhores sabem, cavalheiros, que ele queria garantias de que os fazendeiros tchecos expulsos dos Sudetos teriam o direito de levar consigo seus porcos e suas vacas? Podem imaginar a trivialidade burguesa de uma mente capaz de se preocupar com detalhes desse tipo? Ele queria indenizações para cada edifício público!
 
– Eu gostei do aparte de François-Poncet: “O quê?! Até dos banheiros públicos?” – interrompeu Mussolini.
 
Houve gargalhadas em volta da mesa.
 
Hitler não se deixava desviar do seu alvo:
 
– Chamberlain! Ele foi ainda pior do que teriam sido os tchecos. O que tem ele a perder na Boêmia? O que representa tudo aquilo para ele? Ele me perguntou se eu gosto de pescar nos fins de semana. Eu não tenho fins de semana. E eu odeio pesca!
 
Mais gargalhadas. Ciano disse:
 
– Sabe como ele é chamado em Paris? “J’aime Berlin”!
 
Chamberlain é interpretado pelo camaleônico Jeremy Irons, que assume a fisionomia, a postura corporal e a voz errática de um cavalheiro do século 19 perdido na Realpolitik do século 20. O Acordo de Munique não evitou a guerra, apenas a adiou; e isso acabou com ele, politicamente e fisicamente.


 

(Jeremy Irons; Neville Chamberlain)
 
No livro, há uma delegação tcheca que tenta a todo custo participar da reunião onde vai se decidir o destino do seu país, e é impedida pelos nazistas. Os tchecos, coitados, acabaram impedidos de aparecer até no filme.
 
Hitler é interpretado por um ator que parece fadado a um Karma tenebroso. Ulrich Matthes interpretou , com olhos de pesadelo, o ministro Goebbels no conhecido filme alemão A Queda (Oliver Hirschbiegel, 2004). Não se parece muito com o chanceler alemão, mas consegue encarnar o poder cego do psicopata com carisma.


Um aspecto recorrente no livro, e quase ausente no filme, é a divisão social entre os alemães. Von Hartmann representa as famílias germânicas tradicionais, aristocráticas, guerreiras, ansiosas para vingar a humilhação do Tratado de Versalhes após a I Guerra. Ele entra para a conspiração anti-Hitler pelos motivos políticos óbvios, mas também pela repulsa que lhe causam os nazistas, que ele considera uma horda de gangsters e aproveitadores, buscando vantagens pessoais no antissemitismo e na expansão militar pela Europa.
 
Havia lá dentro uma insatisfação surda contra a ascensão dos “plebeus” nacional-socialistas, e entre a oposição clandestina ao Führer havia até oficiais que sonhavam com a recondução do Kaiser ao poder.
 
Numa cena ausente do filme, Von Hartmann tenta entrar num recinto para entregar uma mensagem urgente ao Ministro do Interior, que está com Hitler. É barrado com rudeza por um oficial da SS.
 
Hartmann recorreu a sua altura e aos seus três séculos de antepassados Junker. Deu um passo à frente para ficar bem próximo do ajudante e abaixou a voz.
 
– Escute bem, porque esta é a conversa mais importante da sua vida. Minha missão é entregar uma mensagem pessoal do Primeiro Ministro britânico para o Führer. Você vai me levar imediatamente a Herr von Ribbentrop, ou então posso lhe garantir que ele vai falar com o Reichsführer-SS, e você vai passar o resto da sua vida nas cavalariças, com uma pá na mão, recolhendo merda.
 
Há tensões internas lá e cá: do lado inglês, Churchill (ausente do filme) é uma presença constante nos bastidores, insistindo na necessidade da guerra imediata – o que Chamberlain não achava possível.
 
O livro esmiuça essas questões históricas muito melhor do que o filme. Como a História acabou sendo escrita por Churchill, Chamberlain é visto hoje como um covarde, ou pelo menos um contemporizador. Harris se dispõe a vê-lo por uma luz positiva, até pela epígrafe que colocou no romance: “ ‘Devíamos ter entrado em guerra em 1938... Setembro de 1938 teria sido a data mais favorável.’  Adolf Hitler, fevereiro de 1945”.


Que os historiadores se engalfinhem, and let the games begin. O livro de Harris se estende em longos diálogos, reuniões de gabinete, cenas curtas para “dar clima”, enquanto que o filme de Schwochow precisa ter outro ritmo, omitir, condensar, simplificar muita coisa.
 
Um thriller em forma de romance pode ser saboreado ao longo de dois dias. É rápido.
 
O mesmo thriller em forma de filme tem que durar cerca de duas horas. (Munich – The Edge of War tem 131 minutos.) É mais rápido ainda.
 
Em casos assim, em que a história contada é mais importante do que o estilo literário de um e o estilo visual do outro, minha indicação é: Veja o filme primeiro e, se gostar, leia o livro.