quinta-feira, 30 de setembro de 2021

4749) Cinco lições para dirigir melhor (30.9.2021)



Dizem que a terceira idade é a época mais adequada para a gente passar adiante os próprios conhecimentos. Em primeiro lugar, porque a essa altura já acumulamos uma boa quantidade deles. Em segundo, porque vivemos cercados de gente que estão encarando pela primeira vez um problema com o qual a gente convive há décadas. Em terceiro, porque ao transferir conhecimentos vamos ficando mais leves; asas de anjo são frágeis, não conseguem elevar muito peso.
 
Resolvi, portanto, transferir alguns conhecimentos que adquiri, ao longo da vida, sobre a arte incompreendida de dirigir carro.
 
1) Escute o carro.
 
Um automóvel é um conjunto de partes físicas, feitas de ferro, alumínio, plástico, madeira, cobre, etc. Esses materiais são vítimas de desgaste permanente durante o uso. Um carro não é feito de pixels luminosos numa tela. Carro é um bicho analógico. Todo motorista diz a certa altura: “Tou ouvindo um clac-clac esquisito aqui do lado esquerdo, embaixo...”  Um carro não é virtual, ele é “de carne e osso”, como você.
 
Ouvir o carro é como encostar um estetoscópio e pedir: “Diga 33.”  Um carro é como um corpo, é cheio de ressonâncias; de vibrações; de atritos; da expansões e contrações controladas; de partes encaixadas que não podem ficar chacoalhando impunemente; de explosões de gases que soam de um jeito quando tudo está bem e de outro quando alguma coisa vai mal.
 
Lembre do filme Um homem... uma mulher... Um piloto de corrida está azarando uma mulher bonita (Anouk Aimée, linda). Ela lhe pergunta durante um jantar romântico: “Qual a coisa mais importante, ao pilotar?”  E ele: “O ruído do motor. Houve um cara que mandou instalar tubos de órgão no escapamento, para sentir melhor como o carro estava respondendo”.
 
Claude Lelouch, o diretor, não colocou isso de graça. O cara estava tentando seduzir a mulher, e isto era uma forma velada de dizer a ela: “Eu sou capaz de ouvir. Eu estou disposto a ouvir você, para saber se está tudo bem. Ouvir faz parte da minha vida. Eu gosto.”
 
Ouça o carro como se ele fosse uma pessoa, ou como se fosse seu gato, ou seu cachorro, um ser que não fala a linguagem humana, mas que tem sua maneira própria, seus barulhinhos próprios para dizer a você: “Ei, eu tou bem, tá tudo legal”, ou então, “Ai, tou com um problema”.
 
 
2) Como fazer baliza.
 
Muita gente tem dificuldade de fazer baliza para estacionar o carro, possivelmente, porque é uma combinação anti-intuitiva de movimentos, ou pelo menos é o contrário do próprio ato de dirigir. Quando dirigimos normalmente, nossa visão e nossos movimentos (mãos e pés) convergem todos para a frente; na baliza, estamos virados para trás e precisamos reconfigurar as reações imediatas, porque estamos fazendo ao contrário uma parte dos procedimentos.
 
A prática da baliza deve ser treinada num espaço aberto, um descampado, com alguns objetos (caixotes, latas de lixo, etc.) servindo de pontos de referência. O principal é se habituar à nova relação entre, p. ex., girar o volante para a direita e ver o carro fazer algo diferente (quando em ré) do que faz normalmente.
 
É preciso encontrar uma sincronia passável entre os giros do volante, o pisar nos pedais e a avaliação visual de distância e posição. Esta parte física tem que ser muito treinada antes do indivíduo se meter a estacionar a cobaia mecânica da Auto Escola no meio-fio de uma rua no mundo real. 
 
Já que são três sistemas simultâneos (mãos, pés, olhos) agindo de maneira contraintuitiva, é preciso ver em qual dos três está a principal dificuldade. Há pessoas que fazem bem o jogo de volante e pedais, mas tem péssimo golpe de vista para calcular distâncias e deslocamentos. Há outras que até percebem isso bem, mas na hora de debrear aceleram, ou vice-versa... Enfim: é um pouco como jogar malabares. Comece aos poucos. Você não pode começar logo com meia dúzia.
 
 
3) Aprenda a se relacionar
 
Dirigir no trânsito é relacionar-se o tempo inteiro: com os outros carros; com pedestres; com motoqueiros e ciclistas; e assim por diante. Quando dirigimos na estrada, principalmente numa rodovia com pouco tráfego, é como se o carro fosse um instrumento musical fazendo um solo, onde depende só de si, tem liberdade e latitude para experimentar, e pode experimentar aquela breve euforia de um pássaro no espaço.
 
Na cidade, contudo, é diferente. Estamos cercados por todos os lados, tendo que vigiar os quatro pontos cardeais sem poder sequer piscar o olho. Tinha toda razão aquele professor que disse ao aluno: “Dirija como se todos os outros estivessem bêbados”. Ensinar direção nunca é o suficiente, ou seja, ensinar a relação do motorista com o carro não basta. Todo ensino de direção precisa ser o ensino da direção defensiva, das mil maneiras de evitar choque, colisões, arranhões, fechadas, etc.
 
Outra coisa: se você dirige automóvel, o que é o mais provável, não trate os motoqueiros do jeito que os motoristas de ônibus tratam você. Dê o bom exemplo.
 
 
4) Pratique muito
 
Se você perguntar a um motorista profissional quais são os tipos mais perigosos de motorista, ele provavelmente mais responder: os agressivos, os bêbados, e os motoristas de fim de semana.
 
Os dois primeiros são auto-explicativos, mas, e o terceiro? O motorista de fim de semana é aquele cara que comprou um carrinho mas durante a semana vai pro trabalho e volta usando o ônibus ou o metrô. No fim de semana ele pega o carro pra dar uma volta com a família, e aí começa o problema.
 
Muitos desses motoristas nunca chegam a se sentir completamente à vontade dirigindo. A falta de traquejo os deixa hesitantes, inseguros. É aquele cara que faz que vai mas não vai, e quando acaba indo deflagra um coro de buzinas e impropérios. É o que liga a sinaleira e se esquece, percorre quatro bairros e dezenas de quilômetros piscando sem perceber. É o que tem dificuldade para dirigir e ler placas ao mesmo tempo, e cada placa que aparece ele precisa reduzir a velocidade e soletrar os avisos em voz alta. É o que passa mal uma marcha, dá aquela “rasgada” de cortar o coração e fica meio minuto olhando para a alavanca de câmbio como se a culpa fosse dela (e esquece de olhar para a frente).
 
O mito de que as mulheres dirigem mal foi construído em cima de mulheres que dirigem pouco. Geralmente dirigem pouco porque o marido lhes repete o tempo inteiro que elas dirigem mal. E acabam dirigindo mal mesmo, por nervosismo e, mais uma vez, por falta de prática constante.
 
O motorista de fim de semana tem medo de ir muito depressa e causar algum desastre, e muitas vezes acaba por causá-los pelo simples fato de que numa rodovia de mão dupla insiste em avançar a 60 km por hora, retendo uma fila de veículos impacientes, até que alguém, desesperado para ultrapassá-lo, acaba fazendo uma besteira grande.
 
Um carro é um instrumento, e só funciona direito quando a gente adquire familiaridade com ele. Paul MacCartney dormia com a guitarra na cama, Pelé dormia com a bola, e mesmo que você não possa dormir com o carro, aproveite seu tempo acordado para ganhar mais e mais intimidade com ele.
 
 
5) Obedeça ao carro
 
Dirigir um carro não é comandá-lo como se ele fosse um mero agregado de matéria morta. É perceber que embora seja uma simples tonelada de ferro, plástico, etc., ele gera sua própria energia e depois de ligado comporta-se quase como um animal, meio burrinho mas voluntarioso.
 
Trate o carro como se fosse um cavalo. Entenda como funciona. Saiba para que servem aquelas engrizias e aqueles parangolés que tem embaixo do capô. Servem para alguma coisa, sim, não foram botados ali simplesmente para boquiabrir os incautos.
 
É espantosa a quantidade de gente, Brasil afora, que dirige o próprio carro sem fazer a menor idéia do que acontece no motor, nos eixos, nos pneus, no sistema elétrico, quando o carro está em movimento. Em geral a gente ironiza mulher que não sabe trocar um pneu; a maioria desses engraçadinhos não sabe trocar uma bateria nem desentupir um carburador.
 
Sinta o peso do carro em movimento como se fosse o do seu próprio corpo. Deixe o carro se projetar. Ele pesa uma tonelada, e a maneira de deixá-lo mais leve é colocá-lo em movimento. Há motoristas que têm medo de dar liberdade ao carro, mesmo numa rodovia desimpedida e sem curvas. Em vez de acelerá-lo, em vez de passar uma segunda, uma terceira, e deixar que o carro respire sozinho, ficam dando pequenas pisadas no acelerador jogando o carro em pulinhos sucessivos para a frente, como se ele estivesse com soluços. Não faça isso. Sinta quando o peso do carro se projeta por conta própria, e fique apenas administrando.
 
O carro é seu corpo, na pista de asfalto. Você é o cérebro do carro. Dê ao seu carro um cérebro inteligente.





 
 







segunda-feira, 27 de setembro de 2021

4748) A onipotência do pensamento (27.9.2021)



Freud classificou várias formas de manifestação do Uncanny em nossos pensamentos. O “uncanny” é o estranho, o sinistro, o sobrenatural; aquilo que nos perturba e nos inquieta, que parece inacreditável e ao mesmo tempo esquisitamente familiar.
 
No ensaio famoso Das Unheimlich (1919) ele cita um dos seus exemplos disso:
 
Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condição sob a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca. Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamento, mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação.
 
(Obras de Freud, Edição Standard, Ed. Imago, vol. XVII, pág. 264, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza)
 
A realização de desejos, na narrativa fantástica, vem muitas vezes ligada ao tema do objeto mágico, de que a “lâmpada de Aladim” é a imagem mais conhecida, das Mil e Uma Noites. Tanto a narrativa oral quanto a literatura escrita estão cheias de objetos equivalentes, que vão desde anéis mágicos até a “Pata do Macaco” de W. W. Jacobs, desde as invocações da magia ritual até o “Duende na Garrafa” de R. L. Stevenson.
 
Como esse tipo de narrativa tende a se repetir, os autores buscam variantes mais afastadas. Uma delas é a onipotência involuntária. Ao invés de formular com intensidade um desejo, um indivíduo vê-se na situação de estar manipulando inadvertidamente algum tipo de poder cósmico, que envolve às vezes o desejo de causar a morte a outras pessoas – e quando isso de fato acontece, ele se horroriza, mas não pode fazer mais nada a respeito.
 
Stephen King tem um conto, “Obituário”, em que um escritor descobre ser capaz de matar outras pessoas meramente escrevendo os seus obituários – que acabam se tornando textos proféticos.
 
No conto clássico de William F. Harvey, “August Heat”, um homem que produz lápides para um cemitério se distrai criando uma lápide fictícia, com o nome de um homem, uma data de nascimento e de morte (a da morte naquele mesmo dia); e em seguida encontra um homem com aquele nome, que nasceu naquele ano e que, portanto, está aparentemente destinado a morrer naquele dia.
 
Diz Freud:
 
Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: “Então, afinal de contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo de sua morte!”.

(idem)
 
Mais interessante do que o “mero desejo realizado” é a descoberta repentina de um super-poder perigoso. O indivíduo, por uma razão qualquer, vê-se capaz de fazer com que algo aconteça, inclusive a morte de uma pessoa.
 
 
Eu Enterro os Vivos (“I Bury the Living”, 1958), de Albert Band, é um curioso filme fantástico que pode ser visto no YouTube (com legendas em português) sobre o administrador de um cemitério que em certo momento se descobre possuidor de um poder estranho. A história original do filme é um trabalho de juventude de Louis Garfinkle, que depois seria o autor do argumento original de filmes como A Gang dos Dobermans (1972) e O Franco Atirador (1978).


Na parede de seu escritório, no próprio campo-santo, ele tem um enorme painel com as sepulturas marcadas e numeradas em suas alamedas. Todas têm o nome do proprietário. Os vivos estão marcados com alfinetes brancos, os mortos com alfinetes pretos. Ele descobre que causou involuntariamente a morte de algumas pessoas ao colocar alfinetes pretos nos respectivos jazigos.
 
Richard Boone, o famoso coadjuvante barbudão que fazia guerreiros medievais (O Senhor da Guerra) ou pistoleiros do Oeste (Meu Ódio Será Tua Herança) faz aqui o papel de Robert Kraft, o atormentado sujeito tocado pelo poder do Uncanny. 

O mais interessante é que se fosse um filme “B” comum o dono desse poder começaria a praticar atentados, matando seus desafetos. No caso de Kraft, ele percebe, horrorizado, o que está acontecendo. Conta aos amigos. Três amigos riem na cara dele, e propõem um teste: ele colocará alfinetes pretos nos nomes dos três, para ver o que acontece. (Não vou contar o que acontece.)
 
O superpoder é mais interessante na mão de um Relutante do que nas mãos de um Entusiasmado. O Entusiasmado irá inevitavelmente realizar seus desejos mais óbvios, que são os enredos mais óbvios ao alcance da imaginação curta dos roteiristas. O Relutante produz uma tensão entre sua tentativa de lidar com algo descomunal que não compreende e não sabe manejar direito.
 

Mais importante do que isto, o Relutante, na sua insistência em provar que está errado, que “coisas como aquela são impossíveis de acontecer”, acaba produzindo o efeito uncanny do desejo ao contrário. Tentando mostrar que aquilo é impossível, ele faz com que o fato se repita.

É um pouco como aquele personagem de Tom Stoppard em Rosencrantz and Guildenstern are Dead, que começa a jogar uma moeda para o alto e a moeda começa repetidamente a dar cara, cara, cara, cara, cara... Ele se desespera com aquela improbabilidade e, decidido a provar que aquilo vai parar de acontecer mais cedo ou mais tarde, faz com que continue acontecendo. 

 


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

4747) A linguagem da ficção científica (24.9.2021)



Samuel R. Delany descreve a ficção científica como um gênero literário onde as frases podem (e devem) ser lidas ao pé da letra.
 
Na literatura mainstream, quando um personagem diz: “Meu mundo foi destruído”, o leitor entende que a vida do cara se desestruturou por completo, perdeu o referencial; que as suas certezas desmoronaram, ele ficou sem parâmetros, etc. etc. Na FC, o leitor entende que um planeta explodiu, que sua população foi dizimada por bombas atômicas, etc. etc.
 
Isto é, aliás, um dos problemas de quando se dá um livro da FC para um tradutor que não tem familiaridade com o gênero. O tradutor está acostumado a ler frases como “meu mundo foi destruído” num sentido metafórico, e muitas vezes tem dificuldade em aceitar que o autor está querendo dizer aquilo literalmente.
 
Lembro uma conversa por telefone que tive com o saudoso José Sanz, tradutor e militante da ficção científica. Ele esbravejava (era o jeito dele) contra a tradução que fizeram de um livro de Philip K. Dick, em que um personagem vivia duas realidades paralelas, e o tradutor deu uma aconchambrada no texto, para que o texto “fizesse sentido” e tudo aquilo acontecesse no mesmo mundo – o que na história, é claro, não fazia o menor sentido.
 
Delany cita com deleite o exemplo clássico de uma história de Robert Heinlein, que dizia a certa altura: “The door dilated”. A porta se dilatou. Muitos filmes e contos de FC nos acostumaram com a idéia de portas que são aberturas (redondas, quadradas, etc.) na parede, que aumentam ou diminuem de tamanho, como o diafragma de uma máquina fotográfica.

 
Outro exemplo: em inglês existe o verbo “two-time” que significa ser infiel, trair a esposa ou o marido. “She was two-timing her husband.” O escritor inglês Bob Shaw tirou desse modo de falar coloquial uma história de FC, simplesmente levando ao pé da letra a expressão. The Two Timers (1968) é um romance em que um homem mata a esposa, que o estava traindo. Mas logo em seguida aparece um “duplo” seu, vindo de um universo paralelo, que tenta evitar o crime.
 
Certamente Bob Shaw leu a expressão “dois-tempos” num texto qualquer, ergueu os olhos da página e pensou: “Arrá!  Adultério... Crime... Tempos paralelos...”
 
É possível extrair idéias de FC simplesmente levando ao pé da letra expressões que todo mundo usa num sentido metafórico.



Os críticos inventaram a expressão “Space Opera” para designar as histórias de guerras e aventuras interplanetárias, no estilo de “Star Wars”. A ninguém ocorreu levar esse rótulo ao pé da letra, até que Jack Vance publicasse Space Opera (1965), a história de uma enorme espaçonave que viaja por entre os planetas, levando consigo uma companhia itinerante de ópera, com todos os seus barítonos e contraltos, seus cenários, sua orquestra...
 
Quando um texto de FC diz que apareceu na porta um homem de duas cabeças, não está se referindo a alguém com dupla personalidade. É um homem com duas cabeças físicas, com dois crânios, dois rostos, etc.  (Ainda estou pra ver uma história BOA de ficção científica em que apareça gente de duas cabeças; mas não é de qualidade que estamos falando.)



E de repente estou eu, aqui, lendo uma coletânea de contos de Shirley Jackson, uma grande escritora de histórias fantásticas (Hill House, “The Lottery” e outras) mas que nunca se aventurou pela ficção científica.
 
O conto chama-se “After you, my dear Alphonse” (1943) e foi publicado originalmente na revista The New Yorker. Em sua primeira frase, diz assim:
 
Mrs. Wilson was just talking the gingerbread out of the oven...
 
“Que bacana”, pensei. “A sra. Wilson estava convencendo o pão-de-mel a sair do forno...” 

Uma idéia interessante de ficção científica, não muito distante (e uma precursora, sem dúvida) daqueles contos de Philip K. Dick em que existem objetos falantes dentro da aparelhagem doméstica.
 
Há uma história de Dick que começa com o personagem acordando e recebendo o aviso de que seu condomínio está vencido. Ele troca de roupa para ir trabalhar, e a maçaneta da porta se recusa a abrir. Ele pragueja, e a maçaneta responde algo como:
 
– Mr. Smith, o senhor encontra-se em débito no pagamento dos encargos do condomínio. Enquanto o senhor não estiver regularizando esta situação, o apartamento permanecerá bloqueado.
 
– Ora que diabo! – exclama ele. – Como vou poder pagar, se não posso sair para trabalhar?!
 
E o pobre Smith fica ali, discutindo com uma maçaneta.
 
Tudo isto passou pela minha mente durante oito ou dez segundos, até que baixei de novo os olhos para a página e li:
 
Mrs. Wilson was just taking the gingerbread out of the oven...
 
Era “taking”, e não “talking”. A sra. Wilson estava tirando o pão-de-mel do forno.
 
Jorge Luís Borges dizia que cada gênero literário constrói um tipo novo de leitor, um tipo de leitor preparado (treinado, adestrado, amestrado, lavagem-cerebralizado) para ler aquele tipo de história. O conto policial, dizia ele, produziu o leitor desconfiado, o leitor que sabe que aquele escritor está tentando enganá-lo, está tentando evitar que ele descubra a verdade antes do capítulo final. E essa é a graça do gênero.
 
A ficção científica produziu esse leitor capaz de aceitar ao pé da letra uma imagem metafórica e imaginar cenas reais a partir delas.
 
“Furioso, ele fuzilou o patrão com os olhos.”
 
“O horizonte estava rubro com o nascer do sol.”
 
“Naquela tarde, fui convidado a tomar chá e conversar sobre literatura com os imortais.”
 
“Desculpa não ter te ligado, ontem à noite deu um bug na minha cabeça.”
 
“Meu filho vive no mundo da lua.”
 
“Nossa vizinhança anda cheia de alienígenas.”
 
“Sinto que eu e você somos uma pessoa só.”
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas.
 
 
 




terça-feira, 21 de setembro de 2021

4746) O poder do que a gente desconhece (21.9.2021)

 

(texto em tamil)

As coisas que a gente não entende têm um poder estranho sobre a nossa mente. Línguas estrangeiras, por exemplo. A experiência de ouvir alguém falando coisas que a gente não entende é inesquecível, e devemos agradecer ao cinema por nos proporcionar isso o tempo inteiro.
 
Me lembro da história do brasileiro rico que foi a Las Vegas e lá foi apresentado a Frank Sinatra.
 
“Você conversou com Sinatra?!...” perguntaram os amigos, na volta.
 
Ele: “Claro que sim”.
 
Os amigos: “E ele te falou o quê?”
 
Ele: “Não sei, estava sem aquelas letrinhas na barriga.”
 
Fazer as letrinhas-na-barriga ajuda a pagar os boletos de muita gente por aqui – e é uma mediação necessária para o Grande Mistério. Porque é mistério, sim, a fala que a gente não entende. Gosto quando estou vendo um filme falado numa língua vagamente familiar como francês ou inglês, e de repente aparece um personagem árabe ou turco que começa a dizer coisas com o protagonista, num tom amistoso, ou furibundo, ou conspiratório, ou debochado, ou impaciente...
 
A gente não sabe! Mas percebe a natureza das emoções que estão por trás daquela algaravia. O que torna (a meu ver) a algaravia como uma manifestação pura e direta de alguma divindade, de algum Poder que tem um significado e um mistério que me serão inacessíveis para sempre.
 
“E línguas como que de fogo tornaram-se visíveis... e se assentaram sobre a cabeça de cada um deles... e principiaram a falar em línguas diferentes...”
 
Para mim, isto era um simples monólogo surrealista, numa música de Gilberto Gil (“Objeto Semi-Identificado”, 1969), e só depois me avisaram que era um trecho da Bíblia referente ao fenômeno de Pentecostes. E seria este fenômeno a origem da expressão inglesa “speaking in tongues”, “falando em línguas diferentes”, também encarado como um fenômeno médico-psicológico em que uma pessoa entra numa espécie de transe, ou estado alterado de consciência, e começa a pronunciar sons que podem ser interpretados como uma língua estrangeira conhecida ou desconhecida.
 
Não devemos confundir isso com a capacidade de auto-sugestão que nos induz a atribuir significados a sons ou imagens surgidos aleatoriamente. Nada disso. Estou me referindo a coisas que têm significado real, sim, como os hieróglifos egípcios, que durante séculos fascinaram a humanidade – não somente pela beleza visual do seu traçado, mas pelo frisson de pensarmos que tudo aquilo tinha um significado, e esse significado se perdeu.
 
A Pedra de Roseta resgatou esse significado, e de certa forma a escrita egípcia se banalizou. O que era sagrado virou profano: qualquer professor de Egípcio de algum colégio de segundo grau em Paris é capaz de apontar o dedo e sair interpretando os baixo-relevos.
 
O que continua indecifrado, contudo, continua numinoso. Continua carregado de presságios, enigmas, potencialidades indescritíveis. Vemos a imagem de um texto escrito na língua tamil, e temos a angústia de estar vendo algo e não saber se é uma prece a Vishnu ou uma bula de remédio.
 
Em seu Curso de Literatura Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 2006) Jorge Luís Borges traça um retrato da época e do ambiente literário de onde brotou Samuel Taylor Coleridge, um dos seus poetas românticos preferidos. E assim ele descreve o pai do poeta, que era um pastor protestante no sul da Inglaterra:
 
O reverendo Coleridge foi pastor de um povoado rural e impressionava muito seus ouvintes porque costumava intercalar em seus sermões o que chamava “the immediate tongue to the Holy Ghost”, “a língua imediata do Espírito Santo”. Quer dizer, longas passagens em hebraico, que seus rústicos paroquianos não compreendiam, mas que veneravam ainda mais por isso mesmo. Quando o pai de Coleridge morreu, seus paroquianos sentiram certo desprezo por seu sucessor, porque ele não intercalava passagens ininteligíveis no idioma imediato do Espírito Santo.
(pág. 186; trad. Eduardo Brandão)
 
É tintim por tintim o mesmo episódio referido por Guimarães Rosa no famoso trecho das “palavras que têm canto e plumagem”, em Sagarana:
 
E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo (“Ara, todo o mundo entende...”) e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, “que tinham muito mais latim”...
(“São Marcos”)
 
Campinenses (e talvez os nordestinos em geral) devem se lembram de que era costume dizer, quando não se entendia algo: “Estou na missa....” 

Sinônimo de “estou voando”, de “não estou entendendo patavina”. Pela simples razão de que eram assim as missas totalmente em latim, antes do Concílio Vaticano II de 1962, que liberou o uso do português nos ritos católicos, o que teve como consequência imediata um incremento na compreensão e uma deflação na transcendência.
 

 
 
 




sábado, 18 de setembro de 2021

4745) Kafka no século 21 (18.9.2021)



 
A revista online “Prosa Verso e Arte” reproduz um depoimento de Jorge Luís Borges sobre a obra de Franz Kafka e a influência que ela teve sobre sua própria obra.
 
 
Já escrevi por aqui que Borges pode não ter sido o maior escritor de sua época, mas é possível que seja o maior leitor do século 20.  Suas qualidades como escritor brotam da maneira atenta, erudita mas descontraída, questionadora mas empática, com que ele lê os livros alheios, principalmente os clássicos. Com seus contemporâneos ele costumava ser ranheta, desdenhoso, hiper-exigente, às vezes ressentido – como o provam as anotações de Bioy Casares em seu quase cúbico Borges, 2006.


Borges observa um aspecto importante na obra de Kafka, a sua simplicidade com a linguagem. Diz ele que esbarrou na obra desse desconhecido autor tcheco quando estava estudando alemão, e descobriu que com um dicionário alemão-inglês dava conta de ler aqueles contos surpreendentes. As palavras eram palavras comuns. As situações é que eram fantásticas.
 
Borges diz:
 
O fato de que Kafka escrevia de maneira tão simples me chamou a atenção, já que eu mesmo podia entendê-lo, apesar de o movimento impressionista, tão importante nessa época, ter sido marcado, em geral, pelo barroco, que jogava com as infinitas possibilidades do idioma alemão. (...) Eu traduzi o livro de contos cujo primeiro título é ‘A Transformação’ e nunca soube por que todos decidiram chamá-lo de ‘A Metamorfose’. É um disparate, eu não sei quem teve a ideia de traduzir assim essa palavra do mais simples alemão. Quando trabalhei com a obra, o editor insistiu em deixá-la como está porque já era famosa e se vinculava a Kafka.


De fato, “metamorfose” é uma versão meio erudita de “transformação” (Verwandlung). Para mim, que não sei quase nada de alemão, não faz diferença.  Mas para algum leitor há de fazer, e esta é uma das muitas cascas de banana à espera de um tradutor apressado, como todos nós acabamos sendo mais cedo ou mais tarde.
 
Em qualquer idioma existem essas classes de sinônimos que eu, para meu consumo interno, chamo de “sinônimos plebeus” e “sinônimos chiques”. São palavras que querem dizer basicamente a mesma coisa, mas o fato de um personagem preferir uma delas à outra implica numa pequena sutileza psicológica que está sendo indicada ao leitor.
 
Por exemplo, se você vai a uma repartição ou um consultório, a recepcionista geralmente lhe pede para “aguardar” um pouco, e não para “esperar”. “Esperar” é um verbo comum, rasteiro, um verbo de sandália havaiana, qualquer brocoió usa. Mas “aguardar” é uma versão sapato-de-verniz da mesma idéia, e é por isso que as recepcionistas recebem instruções para falar assim – mesmo que o cliente esteja de bermuda e havaiana. É para mostrar que naquele ambiente fala-se um português diferenciado.
 
Secretárias dos escritórios de todo o Brasil não mandam uma carta, elas enviam uma carta. Elas não pedem, elas gostariam de solicitar. Elas não pagam, elas efetuam o pagamento. Esse tipo de linguagem de coque-amarrado acabou abrindo caminho, em décadas recentes (ah, como é divertido comparar décadas!) para o gerundismo, a mania de dizer que “nós vamos estar enviando”, etc.
 
Voltando a Kafka... Ou melhor, continuando nele – porque um dos temas centrais na obra de Kafka era a burocracia, a impessoalidade, a falta de empatia, a senoçãozice das pessoas dotadas de um minúsculo poder de decisão numa instância burocrática lá na esquina da Rua de São Nunca com a Avenida Já Era.


(desenhos de Kafka)
 
As pessoas em livros como O Processo, O Castelo e outros comportam-se muitas vezes como esses burocratinhas-do-birô-da-frente capazes de passar uma tarde inteira a dois metros de distância do Suplicante que espera debruçado no balcão e nem sequer erguem os olhos para ele, para não ter que perguntar: “O senhor deseja alguma coisa?...”
 
Borges faz uma outra observação, que não vou deixar passar em branco de jeito nenhum.
 
E quando Kafka faz referências é profético. O homem que está aprisionado por uma ordem, o homem contra o Estado, esse foi um de seus temas preferidos.
 
Kafka escreveu contra o Estado mas contra muito mais do que isto: escreveu contra a Hidra da qual o Estado é apenas uma das muitas cabeças, e nem por ser a maior (e já começa a não sê-lo) é a única visível. Kafka escreveu contra o poder das Organizações, dos Sistemas interligados de forças manipuladoras (e depredadoras) da Natureza física e da linguagem.
 
Críticos mais politizados do que eu diriam que o autor de Na Colônia Penal escreveu contra o complexo Industrial-Militar-Político-Financeiro-Tecnológico-Jurídico que, à força de uma proliferação de avatares neo-liberais e bilionários, tomou conta do mundo no século 20 e provavelmente asfixiará até a morte os Estados-Nações que o pariram.
 
Os Estados-Nações, no tempo de Kafka (ele morreu em 1924) ainda podiam ser vistos como Saturnos que devoravam os próprios filhos. Hoje, por não terem evoluído e se adaptado, são dinossauros decadentes, fagocitados pelas forças cegas e famintas das Corporações. Essas Corporações que cada Estado nacional incentivou, subvencionou, legalizou, protegeu, indenizou, sancionou, isentou e absolveu até o momento de pousar o pescoço no cepo para o machado.   


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yberpunk 2077
 
Neste aspecto, os legítimos sucessores da ficção de Kafka não são os parafraseadores de Kafka no mainstream, mas os cyberpunk da ficção científica (William Gibson, Bruce Sterling, Neal Stephenson, etc.) e os cultores do que James Wood chamou de “realismo histérico” (Don DeLillo, David Foster Wallace, etc.).
 
Julio Cortázar, que afirma nem ser tão influenciado assim pelo autor tcheco, admite:
 
Acho que a máquina do horror tem no campo do romance dois exemplos extraordinários. Um deles é O Processo, de Kafka. (...) Neste livro surge o caso do destino que vai se cumprindo inexoravelmente, passo a passo, sem que jamais se saiba a última linha, sem que se chegue jamais a saber quais eram as motivações que determinaram esse destino. Muitas vezes pensei, lendo esses casos típicos de desaparecidos e torturados na Argentina, que eles viveram exatamente O Processo de Kafka, porque em muitos casos eles foram detidos só por serem parentes de gente que tinha atuação política (eles mesmos não tinham atuação política, ou tinham de maneira muito parcial), e foram torturados, presos e muitos, executados. Essas pessoas, em cada etapa do seu destino, devem ter se perguntado quem era o responsável, de onde vinha aquele acúmulo de desgraças, e não puderam saber nunca, porque a única coisa que puderam conhecer foram seus torturadores, seus executores. Que, por sua vez, tampouco sabiam quem eram os chefes...
(Omar Prego, O Fascínio das Palavras, José Olympio, 1991, trad. Eric Nepomuceno)
 
O outro exemplo de Cortázar justapõe ao de Kafka é, previsivelmente, o 1984 de George Orwell.
 
Mas Kafka não bateu na América Latina apenas como o anunciador da “máquina do horror”. Borges (no depoimento citado acima) lembra que Kafka desejou queimar seus escritos, e o descreve como “...esse sonhador que não quis que seus sonhos fossem conhecidos”. É uma avaliação próxima à de J. G. Ballard, que dizia em 1986, comentando uma antologia de sonhos:
 
O típico sonho REM tem a estrutura narrativa linear de uma narrativa verbal; primeiro isto, depois isso, depois aquilo, onde os vários istos-e-aquilos têm alguma conexão temática perceptível entre si. Em outras palavras: a velha arte de contar histórias, com seu apelo imemorial e acesso imediato aos grandes mitos e lendas que pavimentam o solo de nossa psique individual. Nos domínios do sonho, Kafka é um autor contemporâneo, e atualizadíssimo. Não existe metaficcção pós-moderna nem espaço para o “nouveau roman” na hospedaria da noite.
(A User’s Guide to the Millenium – Essays and Reviews, New York, Picador, 1996; trad. BT)


Essa liberdade onírica seduziu também Gabriel Garcia Márquez, que lembra seus tempos de jornalista jovem e sem um vintém:
 
Um dos meus companheiros de quarto era Domingos Manuel Vega, um estudante de medicina que já era meu amigo desde Sucre e que compartilhava comigo a voracidade da leitura. (...) (Ele) chegou uma noite com três livros que acabava de comprar e me ofereceu um ao acaso, para ajudar-me a dormir. Desta vez, porém, deu-se o contrário: nunca mais tornei a dormir com a placidez de antes. O livro era “A Metamorfose” de Franz Kafka. (...)Eram livros misteriosos, cujos desfiladeiros não eram apenas diferentes, como muitas vezes eram contrários a tudo que eu conhecia até então. Não era necessário demonstrar os fatos, bastava que o autor os tivesse escrito para que tudo fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade de sua voz.
(Vivir para contarla, Bogotá, Norma, 2002; trad. BT)
 




quarta-feira, 15 de setembro de 2021

4744) "Lupin" e o melodrama de aventuras (15.9.2021)


E lá fui eu para uma segunda temporada da série francesa Lupin, de George Kay (Netflix). (São até agora duas temporadas curtas, cada uma com cinco episódios.)
 
Todas as coisas lupinianas me interessam – e por falar nisso não vejo a hora de pôr as mãos no livro recentíssimo da gaúcha Simone Saueressig, O Jovem Arsène Lupin e a Dança Macabra, Ed. Avec. Me interessam por várias razões. Pelas memórias afetivas das leituras de infância e adolescência; pelo encanto do personagem aventureiro, que me fascinou paralelamente ao fascínio despertado por Sherlock Holmes.
 
E por outro lado uma questão de ordem técnica e criativa: como adaptar um século depois, para o leitor/espectador sofisticado e calejado de hoje, o clima meio inebriante e meio ingênuo de um folhetim dos anos 1920. O chamado melodrama de aventuras criminais.


(Marius Jacob, inspiração para Arsène Lupin)
 
A série de George Kay, como já escrevi aqui, teve felizmente a grande sacada de não atualizar o personagem. Não que isso fosse necessariamente uma coisa ruim – a série Sherlock, por exemplo, nos deu um Holmes moderno (Benedict Cumberbatch) que usa GPS e smartphone, e um Watson blogueiro; mas é sempre uma coisa arriscada, principalmente quando quem assiste e comenta é um velho ranheta que não admite que alguém sequer sonhe em ironizar seus heróis de infância.
 
Lupin não mostra o Lupin dos livros, mas um francês de hoje, Assane Diop, que é fã do Lupin dos livros. É desse jogo de espelhos que a série extrai um dos seus muitos charmes, a comparação entre as aventuras dos livros de Maurice Leblanc e o que acontece no mundo “real”. Esse mundo é o mundo dos leitores de Leblanc –  que incluem o Assane (o “Lupin” moderno), o filho dele, Raoul (um dos pseudônimos favoritos do Lupin dos livros), e o policial Guédira. Assane passa a chamar este último de “Ganimard”, aludindo aos inspetor dos livros de Leblanc. Ele e Arsène Lupin mantêm uma relação alternadamente de caça-e-caçador, e de parceiros na perseguição de algum criminoso que incomoda a ambos.


("Paisagem de Étretat", por Gustave Courbet)
 
Num melodrama de aventuras, por definição, é preciso abusar um pouco da verossimilhança, pois a graça do melodrama reside em ser uma exageração benigna da realidade. Uma história cheia de perigos na qual o leitor mergulha sabendo que no fim tudo vai dar certo. Algum leitor já temeu, a sério, que James Bond levasse um tiro fatal?
 
Se não for assim, não é um melodrama, é um thriller realista. Raymond Chandler dizia que os romances de Philip Marlowe eram melodramas implausíveis, no sentido de que era altamente improvável que tantas coisas extraordinárias sucedessem a um grupo tão pequeno de pessoas num tempo tão curto.
 
Daí que o leitor/espectador que conhece as regras não se preocupa com as leves inverossimilhança de certas escapadas, certos disfarces, certas fugas-por-um-triz de Lupin, tal como não se preocupa numa historia de Indiana Jones ou do Homem Aranha. Eles não pertencem ao realismo, por mais que estejam repletos de vida cotidiana e referências ao mundo atual. Essas histórias sucedem no Universo do Desejo Mirabolante, e quem não gostar sinta-se à vontade para assistir filmes sérios como... ... deixa pra lá.


A série também usa um outro jogo de simetrias que resulta divertido, porque mostra o Lupin de hoje e o Lupin de ontem. Este é o garoto Assane, cujo pai, imigrante e negro, morreu na prisão acusado de um roubo que não cometeu; e o garoto vai pouco a pouco se tornando um ladrão para vingar o pai. Cada aventura específica do Lupin adulto encontra uma “rima” numa aventura semelhante vivida por ele quando rapazinho. O que tem toda uma lógica, porque, como sabe qualquer leitor de romance policial, todo bandido tem um “modus operandi” preferido (ou alguns poucos). Ele já vai para um golpe com um plano B e um plano C prontos na cabeça, para o caso do plano A não dar certo. E assim Lupin sempre se safa.


(catacumbas de Paris)
 
Para sermos justos, é preciso reconhecer que coincidências, pequenos deslizes, portas mal fechadas, pedaços de papel caídos no chão, um celular furtado, uma carteira batida, conversas ouvidas pela janela e tudo o mais não ocorrem apenas para facilitar o trabalho do “herói”.
 
Nunca! A ética do melodrama exige que Lupin (assim como The Shadow, e Rocambole, e Doc Savage, e Tarzan, e o Brigadeiro Gerard, e mais, e mais...) esteja exposto ao Acaso, tanto como beneficiário quanto como vítima. A coincidência não existe para ajudá-lo. Ela pode ajudar também aos que o perseguem.


A melodia do melodrama de aventura criminal é sempre um contraponto. Ela se desenha pelo entrelaçamento entre duas linhas: a das coisas que dão certo para ele, e a das coisas que dão errado. As subidas e as descidas de uma e de outra vão compondo o desenho da narrativa. Num episódio de TV de 50 minutos temos pelo menos uma dúzia de guinadas repentinas, aqui o herói se dá bem, ali o herói se dá mal, acolá o herói se dá bem de novo...
 
O herói na verdade não é o objetivo do melodrama, ele é apenas o seu centro tonal, é em volta dele que se tece essa filigrana, esse bordado, esse arabesco de alternativas que são (elas, sim) o objetivo do melodrama policial e aventuras.
 
Isso dá a esse gênero (que se manifesta na literatura, no cinema, nos quadrinhos, etc. etc.), uma expressão tão popularesca e superficial. E que se assemelha, por diferentes motivos, à estrutura “de ferro” de uma tragédia clássica, de Ésquilo a Shakespeare, onde tudo se encaminha, por cima de todos os obstáculos (inclusive a verossimilhança psicológica, a verossimilhança factual) para um desfecho que é, ao fim e ao cabo, a razão de estarmos lendo aquele livro ou assistindo aquele espetáculo.
 
A verossimilhança é apenas um obstáculo que pode ser transposto, eludido, aconchambrado, driblado por meio de uma negociação dramatúrgica qualquer.
 
Lupin encerrou suas duas temporadas e dez episódios com a conclusão de um único arco narrativo central – a vingança do jovem Assane Diop, leitor e fã de Arsène Lupin, contra o sórdido milionário Pellegrini e o comissário de polícia Dumont, que destruíram a vida de seu pai. Sua fuga final para o desconhecido, um gesto tipicamente lupiniano, deixa em aberto a possibilidade de uma terceira temporada onde ocorra uma segunda aventura.


Os heróis do melodrama não morrem. Suas aventuras se interrompem. Quando Conan Doyle encheu o saco com as aventuras de Sherlock e matou o personagem em dezembro de 1893, as Ilhas Britânicas estremeceram em protesto. Ofertas milionárias para “ressuscitar” o herói choveram sobre sua mesa. Doyle se recusou a revivê-lo. Mas precisava de dinheiro. O que fazer?
 
Muito simples: ele escreveu O Cão dos Baskervilles (1901-1902), com o argumento de que essa história teria acontecido antes da morte de Holmes. Não se pode modificar o passado, mas o passado está incompleto. O passado tem lacunas, esquecimentos, segredos, amnésias, está cheio de histórias que podem ter acontecido e ainda não foram contadas.


("Às vezes é possível parar o tempo.")
 
Mesmo depois que Doyle jogou a toalha e ressuscitou Holmes de vez em “The Adventure of the Empty House” (1903), o precedente havia sido criado. E começou a florescer nessa época a gigantesca indústria da fanfic, a ficção escrita por fãs de um herói.



O Lupin de George Kay é uma fanfic escrita, filmada e interpretada com bom gosto e leveza, e cheia de pequenas piscadelas subliminares dirigidas aos conhecedores; mantendo intacto o mito original (o Lupin dos livros), mas superpondo a ele um novo mito, moderno, hi-tech (celulares, phishing, fake news, photoshop, rastreadores, microcâmeras, microgravadores), negro, filho de migrantes, essencialmente mesclado à Paris de hoje.



(Pissarro, "O Sena e o Louvre")
 
Arsène Lupin, o ladrão que não mata, e que só rouba de quem tem muito, funciona como um orixá capaz de produzir a amizade entre um bandido e um policial quando eles servem a um ideal ético e lúdico que sabem ser maior do que ambos. 
 






domingo, 12 de setembro de 2021

4743) "Eu quero ler, e não posso" (12.9.2021)



Quando se fala nessa história de gente que lê livros e gente que não lê, existe uma tendência a dizer que o brasileiro não lê porque só gosta de televisão, de novela e tudo o mais. Pode até ser, mas tem gente que gostaria de ler e não consegue.
 
Eu estava de passagem por Campina Grande muitos anos atrás, não sei exatamente quantos. Eu estava na casa dos 50 anos. Era uma época ótima, de muito trabalho, muitas viagens, e muita farra também.
 
Tinha saído com uma turma de amigos, era sábado e a gente estava bebendo e conversando desde a tarde. A certa hora da noite, entramos no carro e alguém disse:
 
– Olha, vocês eu não sei, mas eu estou com fome. Pago um milhão de reais por uma galinha guisada com macaxeira.
 
O que estava ao volante anunciou:
 
– Pois pode ir preenchendo o cheque, porque vamos direto pra Tia Noêmia.
 
Era uma casa em José Pinheiro, o popular Zepa, bairro dos raposeiros, os torcedores do Campinense; mais populoso do que muitas cidades paraibanas. Chegamos lá, era uma casa discreta, com uma latada na lateral, meia dúzia de mesas.
 
Sentamos, fizemos os pedidos, brindamos na primeira rodada de cerveja, e quando limpei a espuma do lábio olhei em redor e numa mesa próxima avistei João Melo bebendo sozinho. Pedi licença à turma, levantei e parei junto da mesa dele.
 
– Fala, caba safado.
 
Ele ergueu olhos carrancudos, mas que se arregalaram ao me reconhecer. Ficou de pé, demos um abraço, ele me pediu para sentar. Engatamos na conversa, nas lembranças.
 
Tínhamos estudado juntos no Estadual da Prata, nos anos finais do ginásio. Tempo bom. João era um aluno irrequieto e inteligente. De vez em quando era botado pra fora de classe, porque conversava incontrolavelmente. Algumas vezes fugimos juntos, eu, ele e mais alguns, pra cortar caminho pela Duque de Caxias e ir ver o treino coletivo no campo do Treze. Para se ter uma idéia, João Melo era raposeiro, ia só pela aventura e pela farra.
 
– Mas Braulio... Lembra quando teve o golpe de 64? A gente tudo amontoado no pátio lá de cima, olhando os PM bloqueando a saída dos portões do colégio... E a gente cantando: “Acorda Maria Bonita, levanta pra fazer café...”
 
– “Que o dia já vem raiando, e os polidoro já tão de pé...”
 
Risadas. “Polidoro” era como se chamava soldado da PM naquele tempo. Lembramos de Prof. Almeida, que ensinava Ciências e trazia a aula na ponta da língua, como quem recita uma peça de teatro; Dona Wanda, mãe dos gêmeos, que ensinava Geografia e tinha uma voz de artista de cinema; Celso, que era gay e botava moral, na aula dele ai de quem desse um pio; Josusmá Viana, outro que ensinava Português, risonho, bem humorado...
 
– Mas Braulio, e tu perdesse um ano, não foi? Rapaz, nunca acreditei.
 
– Eu vagabundava muito. No fim do ano, quem me lascou foi Matemática e Desenho.
 
– Teu pai te deu uma surra?
 
– João, era melhor que tivesse dado... Eu levei a notícia pra ele, ele escutou, fez assim com a cabeça e não disse nada. Nunca mais tocamos nesse assunto. Mas daí pra frente eu tirei umas notas boas, acabei compensando.
 
– Ah, rapaz, meus parabéns! Eu soube que você publicou um livro. Um livro! Vi no jornal, faz anos isso.
 
Àquela altura, eu já tinha publicado meia dúzia. O orgulho dele era visível. Um livro! Perguntei sobre o trabalho. Ele trabalhava de supervisor numa fábrica. Casado, claro, quatro filhos entre dezoito e cinco anos. Morava no Zepa, ali pertinho.
 
Lembrei que muitas vezes a gente voltava do colégio e ia comprar livros de bolso na lojinha das Edições de Ouro, ao lado do Capitólio. Eu ficava horas escolhendo, comprava algum policial de Irving Le Roy ou um livro de terror. João Melo tinha a minha idade, mas levava leitura a sério. Eu lembrava ele comprando, com expressão concentrada, livros como Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco ou A Besta Humana de Émile Zola.
 
– Tu ainda lê muito, João? Vou te mandar meu livro.
 
– Ah, rapaz, quem me dera... Faz anos que eu não leio um livro. Nem lembro mais qual foi.
 
Começou a descrever a rotina dele, sem lamentações, sem coitadismo. Era “o tirinête da existência”, como ele disse com bom humor. Acordando com o dia ainda escuro, um transporte para o centro da cidade, outro para Bodocongó, e mais uma caminhada de alguns quilômetros até o lugar da fábrica, se não quisesse ficar esperando uma kombi que fazia uma ida-e-volta. O salário contado. A mulher cuidando da casa e volta e meia costurando, volta e meia aprontando salgadinhos, a filha mais velha que já dava aula em algum lugar... Chegava em casa nove da noite, era só banho, janta, conversa e sono de novo.
 
– E no fim de semana?
 
– Levar os menores pra passear. Quando tou rico é um cinema, quando tou pobre é correr no parquinho. E de vez em quando uma cerveja com os amigos. Hoje marquei aqui com um vizinho, que até agora não apareceu. Eu pensei: “Vou tomar só uma, pra não passar em branco.” E aí olha quem aparece. O fí de Seu Nilo. Teu pai como vai?
 
– Faleceu há pouco tempo. Vamos tomar uma em lembrança dele.
 
Tomamos. Começamos a falar de livro. Naquele tempo, a gente falava muito de livros e mesmo sendo da mesma idade João me dava conselhos, indicava “títulos fundamentais”, segundo dizia.
 
– João, eu só li Capitães de Areia por tua causa.
 
– Não me lembro desse.
 
– Jorge Amado, rapaz!
 
– Sim, Jorge Amado eu sei quem é. Não lembro se li nada dele.
 
Bem, eram uns trinta e cinco anos de intervalo. As coisas vão ficando na bruma. João tinha imaginado que as coisas iam ser diferentes, mas quando o pai morreu ele teve que parar de estudar, com o segundo grau completo e só. A mãe doente. A inflação. As crises. Os empregos que nunca rendiam grande coisa. Vieram mulher e filhos, aumentando as despesas. Trabalho, trabalho, trabalho.
 
– Eu não tenho cabeça, velho. A hora que eu tenho pra ficar em casa é só pra ver televisão. Quando preciso ajudar meus filhos com dever de casa é um sacrifício, porque o juízo não entra em foco, sabe como é? Dá uma trava. “Pai, o que é triângulo equilátero?...” E eu não lembro mais nem o que é triângulo.
 
Era alguns meses mais novo do que eu; agora, parecia anos mais velho. Nas aulas de Josusmá, havia um exercício horroroso de levantar e ir na frente do quadro-negro fazer um discurso de improviso; eu detestava isso, ficava vermelho, gaguejava. João Melo tirava essas coisas de letra. Parecia uma versão de Rui Barbosa feita por Oscarito.
 
Lembrei trechos de um desses discursos dele, que a turma ficou repetindo: “Bravos concidadãos... A Pátria precisa de vós! A Pátria precisa de voz! (gesticulando na garganta, com expressão trágica) A Pátria está muda! A Pátria está surda! A Pátria está mouca! A Pátria está oca!...”  E a gente rolava de rir, batendo palma.
 
– Nem me lembrava disso – disse ele. – Como é que tu lembra, rapaz? Isso é uma memória da porra.
 
– A gente ficou anos repetindo isso. Eu, tu, Lagoa Seca, Zé Renato, Nicó... Lembra de Nicó? Ele depois virou dono de um curso de inglês em João Pessoa.
 
Um vento soprou por cima da vida de João Melo. Um vento espinhara, o bafo quente do sertão, que cresta tudo, que tudo torra e esfarela. Ele não podia saber, mas aqueles anos despreocupados, com livros de bolso, cinema no sábado, futebol no domingo, tinham sido o ponto alto da leitura na vida dele. Dali em diante foi só descida, descida para a cratera-fornalha dos empregos, das dívidas, dos compromissos... A família compensando, com suas alegriazinhas e seu aconchego, o moedor-de-carne em que se transforma a vida de quem trabalha assim. De quem corre como se tivesse uma corda amarrada na cintura e a outra ponta amarrada num trem que não para nunca.
 
João Melo jamais vai ler estas linhas. Não é para ele que eu escrevo meus livros. Meus livros são lidos por quem se acomoda numa poltrona, no silêncio de uma sala, põe uma música baixinho, abre um vinho, uma cerveja... Ou talvez por quem me lê em pé no metrô, máscara no rosto, livro aberto à frente da cara, olhos concentrados... Ou por quem lê de noite, sentado na cama, luminária puxada para pertinho, uma esposa ou marido ressonando junto...  
 
Ler é um luxo, um privilégio? Ou é uma batalha?  Não duvido que muita gente, tão surrada pela vida quanto João Melo, ainda consiga varar um Jorge Amado de ponta a ponta, um Paulo Coelho que seja. São vitórias. Ler exige esforço, e por isso exige esforço de pessoas exaustas. 

O moedor-de-carne não deixa muitos minutos livres para investir em leitura. Mesmo quando os boletos estão pagos e tem comida na geladeira, mesmo quando as pessoas estão risonhas e aparentemente tranquilas, aí vem a música, vem a televisão, vem o cinema (“quando tou rico”)... Tem novela, tem filme na telinha, tem tanta coisa pra se compartilhar, a família no sofá, nas poltronas, conversando, ouvindo, acompanhando os programas, trocando uma idéia... Tudo conspira para que um homem com a barba quase branca acabe desistindo de se isolar num quarto pra ler Capitães de Areia.