sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

4648) A Internet de Zé Limeira (4.12.2020)




(Salvador Dali, "Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha em Volta de uma Romã Um Segundo Antes de Acordar")

Podemos propor como hipótese de trabalho a idéia de que a Internet, a World Wide Web e as Redes Sociais foram criadas a fim de refinar alguns conceitos básicos do pensamento humano: o Acaso, o Significado, o Feedback, a Mediação Entre Dois Pontos Que Não Se Tocam, a Substituição Do Silogismo Causal Pelo Non-Sequitur Como Fator de Iluminação e Satori.
 
Acho que fui longe; voltemos ao ponto de partida. A mente humana (disse famosamente Philip K. Dick) anseia por significado com a mesma intensidade com que seu corpo anseia por H2O. Sem a cola do significado, a mente humana se desfaz como farofa ao vento.
 
Daí que desde muito cedo aprendemos algumas das palavras essenciais para essa junção dos pedaços soltos do mundo, das impressões sensoriais que nos assaltam desde o nascimento, ou até antes. Não devemos nunca subestimar as façanhas intelectuais das nossas crianças, que lhes permitem absorver, entender, conceituar e pôr em prática palavras como “se não”, “também”, “porém”, “nunca”, “contra”, “mais ou menos”...
 
O cérebro capaz de assimilar conceitos assim é capaz de tudo. Vamos e venhamos, mostrar uma casa e ensinar “Casa!”, mostrar um cachorro e ensinar “Cachorro!”, mostrar uma bola e ensinar “Bola!” é bolinho perto do ensino de sutilezas como “de vez em quando”.
 
À medida que o mundo se torna mais complexo, precisamos de mais palavras assim, de mais “operadores” como dizem os teóricos, palavras que não se referem a seres ou objetos, concretos ou abstratos, mas palavra que implicam em modificações específicas dos enunciados que acompanham.
 
Uma coisa é dizer: “Eu gosto de ver futebol na TV”. Outra coisa é dizer: “Eu nem sempre gosto de ver futebol na TV”.  Seu filho tem dois ou três anos e fica ali caladinho, tentando digerir essa aparente contradição. E consegue. Eu e você não conseguimos?
 
Minha proposta teórica é que o contato entre mentes distantes, conectadas apenas pelos fios virtuais do curtir e comentar, está produzindo um novo tipo de mentalidade coletiva em que associações de idéias extremamente rápidas são feitas por pessoas de culturas diferentes, idades diferentes, repertórios de informação diferentes.
 
Isso pode significar um avanço gigantesco em nossa capacidade de processar dados, de estabelecer os significados pelos quais Philip K. Dick tanto ansiava. Pode ser o deflagrar de uma nova rede neurológica mundial (em termos metafóricos, claro) onde os cérebros individuais, mesmo os mais privilegiados, os grandes filósofos, os grandes cientistas, serão meros ticos-e-tecos dessa gigantesca teia por onde as idéias serão geradas e circuladas.
 
Daí o fato de que os comentários em postagens de blog e em chats ao vivo e em redes sociais assuma muitas vezes a aparência disjuntada de um koan dos mestres Zen-budistas. Estaremos criando uma geração inteira de Zé-bundistas, como escarnecia Mário de Andrade?! 
 
O koan é aquela frase enigmática com que o mestre responde à pergunta de um discípulo, mergulhando o "pobe" numa perplexidade tão grande que o deixa a um passo da Iluminação. O discípulo pergunta: “Mestre, como posso encontrar o caminho da perfeição?”  E o Mestre responde: “Quando a chuva cai, o sapo fica contente”.
 
Eu vivo me deparando com respostas assim, aleatoriamente encorajadas pelas redes sociais.

Uma vez postei um comentário que dizia: 

“Meu problema com a literatura de José de Alencar não é sua escolha dos temas, que são épicos e vibrantes, mas do vocabulário, que é alambicado e dulçuroso”.
 
Tentativa boba de ser engraçadinho às custas de um falecido, mas recebi, entre outras de teor comum, uma resposta que não me saiu até hoje do juízo:
 
Alencar! Fala-se de Alencar como se o voluntarismo de um político não escondesse mais que uma pragmática de bolsos-sem-fundo. Para que perder tempo com esse tipo de maiêutica? Onde fica José Verissimo nesta equação?!
 
Depois que esse koan me desabou na cabeça passei três dias sem entrar no Facebook, somente pensando, o que me fez bem. E folheando a História da Literatura Brasileira de José Verissimo, cujo estilo e pensamento respeito bastante, apesar de muito pincenez, muita pena-de-ganso. Encontrei umas dez respostas; mas para perguntas outras.
 
De outra vez, comentei alguma coisa relativa à política da Europa Ocidental, que eu, que conservo minha ingenuidade intacta apesar de tantos anos, ainda sonho em ver unida e diferenciada. E me vem um distante conhecido com essa intervenção:
 
O imperador romano que perguntava pela própria alma não estava muito distante dos iludidos de hoje. Como se câmbio e políticas monetárias resolvessem tudo. Lamentável.
 
Li certa vez um artigo muito interessante dizendo que uma das coisas mentalmente mais estimulantes é a leitura da poesia surrealista clássica. Num laboratório, foram feitos diferentes grupos, cujas pessoas recebiam tipos diferentes de leitura, e nos intervalos submetiam-se a testes.
 
Ficou comprovado que as pessoas que obtinham índices mais altos nos testes, ou seja, a que estavam com as mentes mais “acesas”, mais rápidas, mais eficazes, eram as que estavam lendo a poesia aparentemente absurda e sem-sentido desses autores como André Breton, Paul Éluard, Louis Aragon, Benjamin Péret...
 
O autor do artigo propunha a explicação de que ler poemas aparentemente absurdos forçava a mente do leitor e procurar (e eventualmente encontrar) conexões de sentido, interpretações do tipo “Ele está querendo dizer que...”, o que, se nem sempre é correto do ponto de vista propriamente literário, não deixa de ser um exercício mental útil.
 
Exercício que eu ponho em prática agora, quando critico algum desses zagueiros do Flamengo e recebo:
 
Caro amigo, o junco se curva à tempestade, e são os caibros de carvalho que se despedaçam. Pense Getúlio, pense Washington Luís. O valor de um cheque não está no numerário, e sim na assinatura.
 
Toda vez que a mente humana se depara com um Non Sequitur – proposições que aparentemente não têm nada a ver uma com a outra, mas são apresentadas como se tivessem – ela produz um esforço extra capaz de gerar (estou delirando, mas é o calor) cadeias de sinapses específicas que não se desfazem quando a mente muda de assunto. Essas sinapses cumprem sua função momentânea e recolhem-se, de reserva, esperando o momento em que serão convocadas de novo para explicar outra proposição aleatória qualquer.
 
Já dizia Benjamin Péret:
 
Minha cabeça de lixa de papel esfregando-se à beça nas bordas de uma taça de cristal
feita à tua imagem de ave que um javali impede de alçar o primeiro voo
está cheia da fina chuva dos teus olhos semelhantes a duas laranjas que nunca serão colhidas
teus olhos que talvez são pedra despedaçada como árvore fulminada
tudo igual ao pequeno coração que tenho no meu bolso
encostado num fogareiro mais vermelho que um zepelim em chamas.
(em Amor Sublime, Brasiliense, trad. Antonio Houaiss)
 
Já nos ensinava Zé Limeira:
 
Eu me chamo Zé Limeira
de Lima Limão Limança;
a estrada de São Bento
bezerro de vaca mansa,
valha-me Nossa Senhora
‘tão bombardeando a França.
 
E eu só gosto dessa moça
porque tem vegetação,
porteira de pau-a-pique,
três pneus de caminhão,
peido de jumenta ruça...
e haja chuva no Sertão!