terça-feira, 30 de setembro de 2014

3617) Campanhas políticas (30.9.2014)




Uma campanha política é uma peça propagandística (e teatral) complexa. Envolve, em sua parte visível, um catatau de impressos, programas de TV, discursos, comícios, debates, entrevistas coletivas, etc.  A parte invisível deve ser (nunca vi) de reuniões a portas fechadas com doadores de campanha, com companheiros de coligação, promessas, acenos de futuras vantagens, contratos a sete chaves onde cada vírgula é barganhada até a exaustão.

Essa parte invisível é, para as pessoas e entidades envolvidas, a verdadeira campanha, o jogo real, uma Copa do Mundo privada que acontece também de quatro em quatro anos.  A parte visível é essa festa diante dos olhos de dezenas de milhões de eleitores. A campanha não é a Copa, é a cerimônia de abertura. A Copa mesmo começa depois da posse. 

Seria injusto dizer que a campanha não tem valor nenhum.  É a conquista dos corações e mentes do eleitorado, e para isso as encenações têm um peso indiscutível.  Mas campanha é jogo-de-cena.  Algo como a dança de acasalamento de algumas espécies animais. É necessária para que o acasalamento ocorra, mas o acasalamento em si são outros quinhentos, que vêm logo depois.

Acasalamentos a portas fechadas, sob sete capas de sigilo. E la nave va. O direito de eleger os funcionários públicos que administrarão o mundo onde eu vivo é da maior importância, mas seria tão bom que bastasse isso.  Que não precisasse ficar cobrando, não precisasse vigiar e punir.  A maioria dos cidadãos, se perguntados, diriam que não querer se envolver com política é legítimo, mas não precisa entrar em choque com quem quer.

Eleições são como trocas de técnico no futebol.  Têm importância?  Claro que têm. Emocionam multidões? Certamente.  Podem trazer mudanças boas, mudanças ruins?  Sem dúvida.  Mas a estrutura fundamental não muda. Um Presidente da República, pra dar só um exemplo, é o técnico a quem cabe organizar o time e botá-lo pra correr.  Está ali para manter a todos fora do buraco, se possível, até pra que a galinha não pare de pôr seus ovos de ouro.  Quem manda no clube, no entanto, não é o técnico. Em muitos casos, não manda nem no time que botou em campo. 

Num clube seleto como a Seleção Brasileira, a gente já viu técnico como figura decorativa, que está ali pra pôr em prática políticas já decididas no vigésimo andar.  Cabe a ele administrar o lucro ou o prejuízo, dar explicações à TV, ser sabatinado, às vezes até ser derrubado com certa rudeza. Já na política, nunca consegui acreditar que quem manda, p. ex., nos EUA é o Presidente Obama. Ele é como o comandante, dando ordens na torre, e recebendo ligações do dono do navio.



domingo, 28 de setembro de 2014

3616) Palavras sem rima (28.9.2014)





A lista A Word a Day, que assino há anos, trouxe uma postagem sobre um oficial norte-americano do século 19, chamado Henry Gorringe.  Ele foi o responsável pela transferência da chamada Agulha de Cleópatra (um obelisco egípcio) para o Central Park de Nova York.  Sua presença na lista, contudo, era por uma razão ainda mais rara: segundo os redatores, o nome dele é a única rima na língua inglesa para a palavra “orange” (laranja).



Rima é um negócio danado.  Quando dizemos rima, na poesia, estamos falando em geral daquilo que se denomina rima exata, ou rima consoante: laranja / canja, abacaxi / siri, futebol / sol, e assim por diante.  A poesia modernista, no entanto (João Cabral, Cecília Meireles, tantos outros) usou fartamente a rima toante, aquela em que os sons são meramente parecidos: Paraíba / vida, sino / caminho, alma / casa, etc.  Só pra resumir: a rima consoante, exata, tradicional, é aquela onde existe entre as duas palavras uma coincidência perfeita de sons a partir da vogal da sílaba tônica.  As palavras “conta” e “ponta” rimam, não importa se antes da vogal em questão vem um C ou um P.



Meu pai fez para minha avó (Vó Clotilde, que era a cara de Agatha Christie) um soneto chamado “Mãe”, que terminava dizendo: “Pois teu nome sem rima é o hemistíquio / do verso alexandrino de minh’alma”.  Quando o questionei, ele me interpelou: “Pois me diga uma rima para a palavra ‘mãe’”.  Eu disse, em-cima-da-bucha: “Bãe... tamãe...”, e ele me mandou pastar.  Não, não tem rima.  Assim como “sempre” também não tem. Dou um milhão de dólares por duas palavras terminadas em “...empre”, preu fazer uma sextilha que está engatilhada há anos.



Também não têm rima palavras como cérebro, víbora, câncer, nuvem, órfã, mil outras.  De vez em quando aparece um esperto exumando um vocábulo seiscentista, ou distorcendo de leve uma pronúncia pra aconchambrar um verso periclitante.  Vale?  Às vezes vale.  Guilherme de Almeida, artesão de mão cheia e bom poeta, tem um poema chamado “Berceuse da Rimas Riquíssimas” onde cataloga alguns desses truques, como por exemplo rimar “nuvem” com “nu vem”.  Existe o caso famoso de “cinza”, que só rima com “ranzinza”, mas um cantador de viola sabichão encaixou num verso a história de um cantador fanho que em vez de “camisa” falava “caminza”.


Palavras proparoxítonas têm rimas mais difíceis, porque há três sílabas que precisam ser iguais (cântico / romântico). As oxítonas são as de rima mais fácil, a começar pelas terminações de verbos (...ar, ...er, ...ir, ...por).  Quando Monsueto dizia “Pra que rimar amor e dor?” estava exprimindo uma nostalgia afetiva e também uma impaciência estilística.


sábado, 27 de setembro de 2014

3615) Paranóia hospitaleira (27.9.2014)




(Bela Lugosi, 1931)


Um vampiro nunca pode entrar por vontade própria quando vai pela primeira vez à casa de alguém. Ele precisa ser convidado a entrar por alguém, pertencente à residência (ver Drácula, cap. 18). Depois que alguém diz: “Oh, Conde Drácula, mas que surpresa, veio conhecer minha humilde casa, pode entrar, não repare a bagunça”, ele entra, e a partir desse instante você perdeu todo seu domínio, todo seu direito à proibição, à interdição da presença. Ele poderá entrar e sair à vontade. 



Esta é uma das regras da existência do “nosferatu”, mas ela se estende a outros domínios. Celia Fremlin, escritora inglesa, tem um conto arrepiante sobre  uma menina que está sozinha em casa numa noite chuvosa, na ausência dos pais, e ouve outra menina batendo à porta, pedindo para entrar. (Vejo um eco desse conto, que é bem antigo, no filme sueco, depois refilmado nos EUA, Deixe ela entrar)  É um dos medos mais primitivos da humanidade. Se você está trancado e em segurança num ambiente familiar, confortável, etc., será que se arriscaria a deixar entrar ali um desconhecido, que pode representar uma ameaça? (Lembrem de Laranja Mecânica: “Por favor... sofremos um acidente na estrada... meu amigo está ferido... deixem-nos usar o telefone...”). 



A paranóia da hospitalidade é uma daquelas situações analisadas na Teoria dos Jogos em que você é forçado a uma decisão porque com a decisão oposta teria pouco a ganhar (se desse certo) e muito a perder se desse errado. Na dúvida, é melhor dizer: “Vá embora, não vou abrir pra ninguém, vá bater noutra porta”.



Deixar entrar um estranho: eis uma fórmula simples para muitas situações trágicas. Curiosidade e ingenuidade são uma combinação perigosa, vide os troianos ao receber o presente do cavalo de madeira. Levaram o Estranho para dentro de suas muralhas, que era justamente onde ele queria chegar.  Não foram muito mais espertos do que os índios brasileiros que aceitaram roupas usadas e morreram de peste.


Na série Game of Thrones, a hospitalidade, os direitos e deveres recíprocos entre anfitrião e hóspede são sagrados.  Um dos seus momentos mais dramáticos foi no episódio chamado de “Red Wedding”, quando essa regra foi covardemente quebrada.  Matar o hóspede (tanto quanto matar o que hospeda) é o mais desonroso dos crimes. Macbeth recebe o rei em seu castelo e o assassina durante a noite.  Isso é mais vil do que mandar matar um amigo e o filho pequeno, do que aconselhar-se com as três velhas sinistras.  Hospedar um criminoso, ser recebido na casa de um criminoso: uma ingenuidade imperdoável na Guerra dos Tronos.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

3614) 5 mentiras (26.9.2014)





“Mãe, será possível, eu passei a tarde na casa da Priscila, es-tu-dan-do-pra-pro-va, se você não acredita pega aqui, vai, liga pra ela e pergunta!” (Daniela Martins, 18 anos, estudante, São Paulo, estendendo o celular para a mãe e cruzando metaforicamente os dedos na esperança de que seu blefe funcione e a mãe não ligue para a colega e não a force a gaguejar mentindo, não venha a desconfiar de que a filha foi pela terceira vez ao motel levada por Pedro Paulo, um homem casado e sem escrúpulos que mora no terceiro andar do prédio para onde as duas se mudaram juntas após o falecimento do pai).



“Eu preciso desse empréstimo, tenho uma ex-mulher que me arranca o derradeiro centavo, tudo que eu ganho tenho que dividir com aquela praga do Egito!” (Ladislau Werneck, 49 anos, Belém, para o gerente do Banco, tentando justificar, sem que ninguém lhe pedisse, o empréstimo que está em trâmites, sendo que a ex-mulher, coitada, apenas lhe pede uma graninha emprestada de vez em quando, e sempre paga, e o buraco financeiro na verdade é pra sustentar os luxos de Keyla Simone, 23 anos, dançarina, que faz Ladislau comer na sua mão e nas horas vagas gasta os tubos com roupa e academia).



“Pai, preciso daqueles 50 reais que falei pro senhor, o da taxa de material esportivo para os Jogos Colegiais, era pra ter levado na segunda-feira.” (Wilson Leite da Silva, 16 anos, estudante, Santa Maria do Paraná, na esperança de que o Pai, sempre resmungão e reticente, não descubra que metade do dinheiro é para comprar no sebo da cidade, que fica a 10km, livros que Wilson esconde no celeiro, porque se o pai descobrir queima tudo no querosene e diz “vai trabalhar, vagabundo!”).



“Não, doutor, nunca fiz aborto, deve haver algum engano...” (Marilene de Campos, 38 anos, Aracaju, morrendo de medo de confessar ao ginecologista seu erro de juventude, porque nunca se sabe, numa cidade pequena homens comentam coisas em mesa de bar e essas coisas acabam chegando aos ouvidos de Valdir, seu marido, o melhor homem do mundo, tão melhor que casou com ela e nunca percebeu que ela não era mais virgem).


“Falou que estava tudo bem, que era estresse, e que na minha idade eu preciso é de dieta e um pouco mais de exercício.” (Mário Guilherme Frota Santos, 57 anos, administrador de imóveis, Cachoeiro do Itapemirim, guardando os Raios-X e os resultados sombrios dos exames que tinha feito, disposto a tomar as providências necessárias, organizar as finanças, e depois aproveitar os meses de vida profetizados pelo médico, porque se por um lado não tinha jeito, também não era motivo para jogar todo mundo num desespero sem futuro).


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

3613) As cidades voadoras (25.9.2014)





Cities in Flight é o nome geral de uma série de histórias de ficção científica publicadas por James Blish entre 1955 e 1962. Mediante a descoberta de uma energia antigravitacional, chamada “spindizzy”, é possível isolar cidades inteiras da Terra, cobri-las com um cúpula pressurizada, transformá-las em verdadeiras ilhas celestes, e fazê-las levantar voo pelo Sistema Solar e além.  Espaçonaves não apenas do tamanho de Manhattan, mas levando a própria Manhattan inteira dentro de si, universo afora.



A FC estava explorando o conceito de naves cada vez maiores, mais complexas, com milhares de tripulantes, “naves-geração” viajando séculos afora pelo espaço. Naves cada vez mais parecidas com uma cidade. Blish pulou ousadamente para a extremidade oposta da idéia. Ao invés de transformar a nave numa cidade, transformou as cidades em naves.



É a mesma mentalidade por trás dos grandes transatlânticos de cruzeiros marítimos, cuja publicidade insiste o tempo inteiro em descrever como algo do tamanho de uma cidade, com todas as opções e todos os serviços de uma cidade, só que despregadas do continente, da continuidade das obrigações do trabalho.  Um paraíso de lazer que cortou o cordão umbilical que o prende ao princípio da realidade, das obrigações, dos deveres.



Cidades realizando a utopia urbana de não se verem presas a um país, a um ambiente rural. A cidade inventiva, tecnológica, aventureira, decolando espaço afora com a única missão de enfrentar aventuras e desafios. A cidade vira uma metáfora da mente, da inovação, da invenção, do progresso, do fervilhar de idéias; é ela quem se lança no espaço aventuresco.  Quem fica para trás é o mundo rural, o corpo físico, aquela coisa conservadora, materialista, cuja necessidade de comida e de descanso atrapalha a criatividade da mente. 



Claro que as aventuras e a necessidade de sobrevivência no espaço acabam mostrando a esses aventureiros o lado mais espinhoso da aventura, mas o ciclo de romances de Blish se baseia numa daquelas imagens que só uma certa arte pode proporcionar. A justaposição inesperada de duas coisas, reveladora de uma realidade inquietante; como os relógios moles de Dali, a bicicleta voadora do “E.T.”, a Gioconda bigoduda de Duchamp, a ceia dos mendigos de Buñuel, os rostos-perfis de Picasso, a Estátua da Liberdade na praia do Planeta dos Macacos.


A idéia ponto-de-partida da Cidade Voadora de Blish é um pouco como a flor que se sustentasse no ar sozinha, sem haste, descrita num poema por Paulo Mendes Campos – a flor sem contato com o chão, a flor que não come estrume, a lírica não contaminada pelas sujeiras da vida real.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

3612) Meus 25 irmãos (24.9.2014)





Meu nome é Paraíba, e tenho 25 irmãos. 

Sabemos quem é nossa mãe, mas não temos certeza sobre quem é o pai de cada um, porque somos legião. O mal da nossa mãe foi ser tão fecunda, bastava que lhe plantassem algo ali onde ela tudo dava. Seu destino era traçado a milhares de léguas da cama onde vivia sendo possuída.   

Mas tem uma velha oração, ou será uma canção antiga, que diz que não há tragédia que não produza uma nova forma de viver, e, se é uma nova forma de viver, é algo, em princípio, bom.

A terra dos nossos pais é grande e se estende por montes, campinas, matas e rios.  Vivemos quase todos ao alcance da vista uns dos outros. Quem vive perto se observa, se vigia, se controla, se mantém a uma distância respeitosa, conserva os outros a uma distância confortável.  

Por uma questão meio de poder aquisitivo, meio de hábito tradicional, vivo cercado pelos meus irmãos mais próximos – Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará – cujas terras limitam com as minhas e com quem, metaforicamente, troco empréstimos de xícaras de açúcar, vagas na garagem, senhas de wi-fi.

Numa família de muitos irmãos, é normal que alguns não se conheçam, que outros inventem formas de convivência e apoio.  Eu mesmo desde muito cedo saí da casa dos meus país e fui morar na casa do meu irmão Rio de Janeiro, que mora longe mas é super bem sucedido, ou pelo menos assim apregoa.  

Morei com São Paulo também, que não é o mais velho mas é sem dúvida o mais rico de todos os irmãos e acha que basta isso para lhe dar direito a uma primogenitura. Enfim, uma discussão que já é antiga.

Irmãos demais dá nisso. Uma bela noite a gente está de volta à cidade natal, vai a um bar com a antiga turma e de repente um cara de bigode se aproxima de uma mesa próxima. “Você é Paraíba?”  “Sim, sou eu mesmo.”  “Eu sou teu irmão, então. Me chamo Amazonas.” (Roraima, Amapá, Acre...)  Bom, só me resta apertar sua mão e dizer: “Que legal, cara, somos irmãos, nossos pais já me falaram muito de você, não é lá que predomina a pesca do pirarucu?”.  Meu amigo, é família que haja mapa.

Todos nos avaliamos a meia distância, como convém a quem concorre.  Todos trocamos pequenas gentilezas, como acontece com quem sabe que um dia morre. Saber que somos irmãos nos dá a idéia de que jogamos do mesmo time, estamos botando a bola pro mesmo lado, mesmo que discordemos de todo o resto.  

Uns são mais histriônicos e necessitados de holofotes. Outros são mais carregadores de piano. Tem uns que sonham em viver no estrangeiro com os pais, tem outros que se orgulham da vida aqui na mãe.  Enfim: igual ao que acontece com toda família, desde que o mundo é mundo.









terça-feira, 23 de setembro de 2014

3611) Fala, Nabokov (23.9.2014)





(ilustração: Huxley King)


Em 1975, Vladimir Nabokov, então morando em Montreux (Suíça), cidade que já nessa época devia viver infestada de músicos brasileiros, foi a Paris para ser entrevistado no programa de TV Apostrophe, respondendo a perguntas e a comentários de Bernard Pivot e Gilles Lapouge. (Aqui, com legendas em português: http://tinyurl.com/ozxtunu

O autor de Fogo Pálido fala num francês saboroso, com torneados de voz muito bem humorados. Recitando Verlaine, ao lembrar da adolescência, ele observa que rimas como “atonne / détonne” são rimas incestuosas, porque são a mera repetição de um sufixo ou elemento comum a ambas. Certo-incerto, cansar-descansar, são rimas incestuosas, estão acasalando coisas etimologicamente consanguíneas.

Nabokov nasceu em 1899, numa família rica e aristocrata que fugiu com os baús na cabeça diante dos bolcheviques. Ficou famoso nos EUA, o russo é sua língua preferida e o inglês o seu instrumento de trabalho, mas talvez por ser um programa francês ele fez questão de se exprimir em francês.  Acontece que ele parece estar lendo o que diz, e daí a pouco percebe-se que está mesmo, está com texto à frente e entremeia isso com algumas frases trocadas com os franceses.

Ele fala da espécie fictícia (“espécie, não gênero”, adverte ele) de borboletas que criou para Ada, ou O Ardor (1965) – segundo ele, a primeira vez que isso ocorre na literatura. 

Nabokov demora a assumir que gosta de trocadilhos (“calembours”), mas logo adiante admite que a cidade russa de Tomsk lhe sugeriu as cidades fictícias de Atomsk e Bombsk.  Ele concorda que seus professores se queixavam, antigamente, de que ele não era suficientemente russo.  Diz que gosta de histórias bem contadas, sim, e que seus livros são justamente uma teia completa de histórias que se entrelaçam.

Sua conversa lembra uma daquelas entrevistas de Cortázar ou Borges em francês; evoca aquela fase da História em que o francês foi o latim dos intelectuais. Ele claramente se diverte em comentar as capas terríveis de Lolita no mundo árabe, onde os desenhistas colocavam na capa “mulheres de formas opulentas”.  Elogia o sistema postal suíço.  Diz que não dá autógrafos, acha um desperdício de tempo.  Faz longos comentários sobre as tramas de Lolita e de Ada, o livro cuja tradução francesa estava sendo lançada naquele momento.

Essas aulas que Nabokov redigia e depois lia em sala de aula estão publicadas, e começam a ser traduzidas no Brasil: as Notas sobre Literatura e as Notas sobre a Literatura Russa.  Ele responde em francês lendo em fichas, mas de forma coloquial, e se fosse meu professor eu faria o possível para ver a aula desde o começo.  






domingo, 21 de setembro de 2014

3610) Crônicas de Bradbury (21.9.2014)





(ilustração: Marte, de Michael Whelan)


De vez em quando me perguntam os meus “dez melhores contos de FC”, por exemplo. Eu sou um pré-nerd. Gosto mais de fazer listas do que vocês todos, juntos e ranqueados. Algumas listas de melhores valem pelo que têm de insólito e quando é uma lista comentada e justificada.  E por que dez? Por nada, por “furor simétrico”, e aliás as listas da web e das capas de revistas já quebraram esse cartesianismo. E tome-lhe: As 21 Melhores Histórias de Império Submarino High-Tech Que Acaba Destruído Por Catástrofe Tectônica.  Onde houver muitas coisas, sempre haverá dez melhores. Ou 21.



Uma lista dos Dez Mais Óbvios Melhores da FC talvez incluísse quase por unanimidade “Um Som de Trovão” de Bradbury, “Os 9 bilhões de nomes de Deus” de Arthur C. Clarke, algo obrigatório de Harlan Ellison, P. K. Dick, Theodore Sturgeon, todos grandes contistas de obra extensa. Eu incluiria Fritz Leiber, Ballard, Wells, mas duvido que a maioria o faça. Não importa, e não adianta, o oceano dos livros é grande demais para qualquer leitor.



Tem também “A terceira expedição”, uma das Crônicas Marcianas de Bradbury.  Astronautas descem em Marte, encontram vilarejo do Oeste, e nele seus entes queridos, em suas casas originais. Estavam todos vivos, então, preservados em alguma ultradimensão?  Os pais, os avós, os brinquedos da casa, o quarto em que tinham morado até os dezoito anos. Tudo intacto. Todos vivos.



E então alguma coisa acontece. O cristal do final feliz e impossível se parte.  O véu do mundo se rasga e revela um lobo faminto. Bradbury, quando se torna macabro, consegue um efeito diferente do de Lovecraft, que é macabro por ideologia, é o que sempre se espera dele.  As crônicas de Bradbury são situações semi-fantásticas que ele propõe e depois desconstrói. “Encontro Noturno”, outra delas, não é um conto macabro, é de sense-of-wonder: mostra um terrestre e um marciano, no alto de uma colina, e cada um descreve para o outro o Marte que vê, e onde está.



Macabras ou maravilhosas, as projeções mentais dos marcianos de Bradbury prefiguram todos esses universos “simulacron” ou “matrix”, projeções na mente de alguém, que as experimentam como reais.


Bradbury foi chamado o Norman Rockwell da FC (ou Rockwell foi chamado o Bradbury da ilustração). Representam uma América jovial, interiorana, democrática, e com seus defeitos, seus demônios, como é a sina do ser humano. Era sentimental, mas não mais do que Dickens, e macabro, mas num grau menos grave que o de Poe. Na verdade, ele mistura o macabro, o romântico e o cômico. Seu universo é mais próximo ao de Tim Burton, Neil Gaiman ou Charles Adams do que aos universos de Clarke e Asimov.


sábado, 20 de setembro de 2014

3609) Tempos interessantes (20.9.2014)




(livraria em Londres durante a II Guerra)


Os chineses têm uma expressão para rogar praga a alguém: “Tomara que você viva em tempos interessantes”. É o contrário de desejar a alguém paz e tranquilidade, não é mesmo?  

Doris Lessing dizia que os bombardeios nazistas sobre Londres trouxeram morte e terror para muita gente, mas também trouxeram um pouco de animação para suas vidas. Uma senhora londrina bem idosa lhe disse uma vez: “It was a nice change.” (“Foi uma mudança agradável”). 

Pode ter sido. Para pessoas que levavam uma vida tediosa, reprimida, asfixiante, a guerra pode ter representado uma liberação, uma instabilidade onde era possível meter os pés, arregaçar as mangas, tomar decisões, viver intensamente, em suma. Tempos interessantes.



Algo parecido é dito por Colin Wilson em vários livros: que durante os bombardeios da II Guerra Mundial os londrinos se divertiam a valer nos bares instalados nos porões. O chão tremia, as bombas caíam a algumas dezenas de metros, mas a música não parava, a bebida rolava solta, todo mundo namorava e dançava pra valer. 

A proximidade e a possibilidade da morte (bem como a impossibilidade de fazer algo a respeito) pareciam tornar cada minuto mais carregado de significado.



F. Scott Fitzgerald (Echoes of the Jazz Age, 1931) dizia que a palavra jazz estava associada “a um estado de estimulação nervosa não muito diferente daquele das grandes cidades logo aquém do front de batalha. Para muitos ingleses, a guerra ainda continua, porque todas as forças que os ameaçavam ainda estão em atividade. Portanto, vamos comer, vamos beber e nos divertir, porque amanhã a gente morre.” 

Note-se o quanto Fitzgerald tinha razão: a guerra a que ele se refere era a Primeira, e os ingleses tinham uma percepção muito sensata do que lhes vinha pela frente.


Quem gosta de tempos interessantes são as pessoas que gostam de desafios, de aventuras, as que não temem a incerteza, que sabem conviver permanentemente com os próprios medos. 

Pessoas pacatas são sabem conviver com o medo. Quando estão numa situação mediana e satisfatória de estabilidade, querem que tudo permaneça assim. Têm moradia, comida, trabalho, o básico da vida; e a última coisa que desejam é que essa estabilidade precária seja ameaçada.  Diante do novo e do desconhecido, esperneiam e vociferam. São capazes de tudo para manter as coisas do jeito que estão. 

Entre a aventura de querer melhorar e a segurança de se agarrar ao que já têm, preferirão sempre esta última. Temem as próprias limitações, acham sempre “que não vai dar”, agarram com desespero o pássaro-na-mão que o destino lhes concedeu até agora. Não querem viver em tempos interessantes.









sexta-feira, 19 de setembro de 2014

3608) O Apocalipse do Metano (19.9.2014)



Anos atrás lançaram um livro de divulgação científica (acho que era de Isaac Asimov) intitulado Escolha a Catástrofe. Cada capítulo tratava de uma forma possível para o fim do mundo: guerra nuclear, choque com asteróides, elevação dos oceanos, etc.  Ando curioso para saber se o tal livro previa uma possibilidade que agora reencontro a todo instante na imprensa: o Apocalipse do Metano. 

Meu conhecimento de química é zero. Se eu falar alguma barbaridade não me execrem, mas como parte da opinião pública tenho o direito de compartilhar as razões da minha insônia. O metano é uma delas. Quantidades absurdamente grandes desse gás estão acumuladas no subsolo e nas águas. Em muitas regiões, principalmente em volta do Ártico, o gás está confortavelmente represado abaixo de uma espessa camada de gelo, que não o deixa escapar.  O problema é que com o aquecimento global o gelo (ou, mais tecnicamente, a camada de permafrost, “solo permanentemente congelado”) está se adelgaçando. Quanto mais fina fica, mais sujeita fica a uma quebra, que deixaria escapar uma grande quantidade de gás, numa explosão de baixo para cima.

Não é outra (li por aí) a origem daqueles misteriosos buracos que estão aparecendo na Sibéria, com dezenas de metros de diâmetro e uma fundura a perder de vista. O metano está comprimido, querendo escapar, e em qualquer ponto onde a barreira enfraqueça ele pipoca com gosto de gás. Há poucos anos vi um documentário sobre isto no The History Channel (OK, concordo que é um canal meio sensacionalista). A catástrofe me pareceu tão iminente que me desencadeou uma crise aguda de ternura pela humanidade e amor à existência. Abracei todo mundo da minha família, telefonei para amigos que não via há anos, comecei a me despedir da vida.

O metano me poupou, mas não sei até quando, principalmente depois de ver essa entrevista de uma cientista, que me pareceu bastante pessimista, até que comecei a escutar os apartes de um colega dela na platéia, que a achava otimista demais. (Veja aqui: http://tinyurl.com/n6ds54b). “Poucas décadas” é o tempo de vida que resta à humanidade, segundo eles, se for liberado apenas 1% (um por cento) do metano represado embaixo da terra.

De qualquer modo, foi bonito.  Tivemos momentos como a Grécia de Péricles, o impulso civilizatório do Império Romano, tivemos a Renascença, tivemos as Revoluções Científicas... Criamos e destruímos impérios.  Fomos à Lua e voltamos. Tivemos as artes e as ciências. Experimentamos todas as possibilidades da existência humana, uma coisa tão frágil, num planeta mais frágil ainda.  Valeu a pena? Tudo vale a pena, enquanto o ator ainda está em cena.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

3607) Mensagens subliminares (18.9.2014)





A arte de criar logotipos exige a concentração do máximo de significado no mínimo de signos. Num signo, em todo caso, capaz de ser visto de um só golpe, de um só lance de olhos, mesmo que depois resista a uma dissecação visual (e apresente seus documentos). Este saite (“30 Logos Famosos que Trazem uma Mensagem Oculta”) faz um apanhado às vezes surpreendente. (Aqui: http://tinyurl.com/nn6tzbs).

O cara diz: “Já reparou como o logo do Google tem quatro cores primárias em sequência, e isso é quebrado por uma cor secundária?”  Rapaz, se não me dissessem eu jamais perceberia.  Até me lembro desse conceito de cores primárias e secundárias, e até recordo do meu tempo de lápis de cor, quando eu superpunha um colorido de amarelo a um de azul, mas daí a perceber que é por isso que aquele “L” é verde, pense num cara que nasceu para ser o Dr. Watson. Isso pode ser boas e más notícias para mim.  A boa é que não sou muito vulnerável à propaganda subliminar, a ruim é que sou assim porque sou burro.

Eu não tinha percebido (e agora que vi não consigo mais desperceber) que as linhas do logo da Toyota são capazes de reproduzir as letras do nome da marca. Também não vi a bandeira da Dinamarca disfarçada no logo da Coca-Cola, logo este, o mais conhecido do mundo (a vírgula é opcional). O símbolo da igreja presbiteriana é um composto de oito símbolos gráficos religiosos diferentes, todos indiscutíveis, depois de explicados. Por outro lado, eu jamais iria supor que no logo da companhia (ou o que seja) “Eighty 20” apareçam duas fileiras de quadrados, cujas cores em código reproduzem em numeração binária os números 80 e 20.

As pessoas percebem essas coisas?  Duvido.  Se eu, que sou meio chegado a uma criptografia, inocentei-me todo diante do acima exposto, o que dizer de um ser humano normal?  “Ninguém percebe que percebe”, dizem-me os teóricos do ramo.  Passa tudo direto pro subconsciente, por uma porta especial. No meio das letras do nome do FedEx tem uma seta apontando para a frente; no logo da Vaio uma parte representa o sistema analógico e a outra o digital; o logo da Mitsubishi reproduz visualmente o que o nome quer dizer; o chocolate Toblerone reproduz uma montanha e um urso. 

Tiro meu chapéu para o logo do Spartan Golf Club, onde é possível enxergar tanto um guerreiro espartano quanto um golfista.  Douglas Hofstadter ficaria orgulhoso. Mas não sei. As pessoas têm paranóias com chips implantados, com ondas de rádio mentais. Eu não. Eu me preocupo com memes viróticos, com imagens multi-estáveis onde imaginamos ver um produto à venda e nossa mente, sem nos dizer nada, lê um comando para dinamitar alguém.



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

3606) O verdadeiro céu (17.9.2014)



Quando o odor de óleo queimado retornou, Ektor e o Blue Duo aproveitaram o intervalo entre a lavagem dos dutos e seu reenchimento e os escalaram ao longo de uma tarde. Eram os vinte metros que os separavam do Chão.  Os pais deles tinham nascido dendicasa, no Abrigo. Já os avós eram crianças quando o ar do Chão ficou venenoso e todos desceram para sempre para o Subchão. One Blue tinha um mapa. Imagina, dizia ela, linda, mostrando a Ektor, um pé-direito altíssimo todo preto, como o das câmaras de estoragem.  E essas punctiluzes chamadas estrelas.  Hubs de energia.

Vinham subindo há quase duas semanas, de andar em andar, de poço em poço, de um mecanismo de tração para outro, sempre olhando a temperatura e pressão nos reloginhos. Two Blue era técnico.  Desenroscava parafusos com a ponta dos dedos, tinha um extrator de senhas, dava nó em cordas.  Ektor tinha apenas um mapa, mas o sabia de cor.  As Constelações, explicava ele. Elas têm formato, cada uma tem toda uma história por trás. Heróis, animais, seres mitológicos.  Não são meros pontos. One Blue bocejava, esperando a próxima janela de passagem.  Ele recitava o mnemo: “Mamãe, vendi telescópio, mas já surgiu uma Nova”. E cantarolava: Orion, Cisne, Hércules, Ursa Maior, Via Láctea...

Se fossem pegos durante a fugida (o plano era voltarem antes do fim das férias, sem a Guarda perceber) seriam presos. Mas era um roteiro de evasão nunca tentado, era concepção e execução deles dois.  Ektor era mais novo e foi junto porque era amigo, e porque insistiu. Tirava da mochila o largo mapa quebradiço e olhava. Uma balança gigante, uma mulher de cabelos longos derramando no chão as águas de uma concha, um lacrau maior que uma trirreme, uma cruz de verdade erguida na abóbada do céu.

Chegaram. Pelo horário deles, era hora de estarem na Academia dormindo.  Na hora da superfície (bastava uma conta) era perto de meia-noite. One: “Nosso país é um altiplanalto límpido e deserto.  Não há mais as fáctores, os fogos pararam há de-muito, o céu deve estar cristalclaro.”  Nisso Two os chamou; tinha liberado o acesso.

Subiram um poço de tijolos pegando-se em ganchos enferrujados, até uma borda final que os expeliu.  O vento noturno era áspero, mas menos frio do que lá embaixo. O que os entonteceu foram os cheiros, muitos e conflitantes. Deitaram-se olhando para cima.  Aí estão, iguaizinhas, disse One depois de muito tempo.  Mas onde estão? perguntou Ektor. Pela primeira vez ela, a linda, dignou-se a relancear o olho pelo mapa que ele tinha voltado a desdobrar.  Rebatou a página negra com as figuras azuis cravadas de pontos amarelos, e riu.  Two, pia só o que o lek pensava que ia ver.



terça-feira, 16 de setembro de 2014

3605) Quando Deus não olha (16.9.2014)



Quando se fala em literatura jovem, em prosa de ficção escrita por jovens (autores com menos de 30 anos), parece haver (já vi isso ser dito entre editores, críticos, autores) um pressuposto de que serão livros falando em sexo, drogas e rock-and-roll.  Eu nada tenho contra estes importantes fatores, mas, vamos e venhamos, nada disso é privilégio jovem. Esqueçam o clichê. Cada jovem tem seus problemas e seus horizontes, no que diz respeito à literatura.  Literatura não é ilustração de uma tese sociológica. Literatura é seiva da vida espremida até se tinturar de sangue.

O maior problema do jovem, diria eu, é tornar-se adulto: jogar o jogo adulto. O romance de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando (Record, 2014, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura) é a história de uma moça de vinte e poucos anos e seu difícil ajuste de contas com a vida: com a perda do pai, com a possível perda do namorado, com um trabalho onde se sente enjaulada e encolhida, com a opção de ser artista plástica (coisa que a família estranha e não assimila) e assim por diante. É um livro de ação constante, de idas e voltas, procuras, derrotas, desencontros, aquela agitação que todos conhecemos: no fim do dia se tem a sensação de que vinte coisas foram resolvidas e não se avançou um passo.

O livro transcorre numa João Pessoa jamais nomeada, e só reconhecível por sabermos que é lá que a autora mora. Cenas como a do reveillon na praia, por mais que a reconheçamos, não devem ser muito diferentes em outras cidades. Não há nomes de ruas, de praças, mas é uma João Pessoa palpável e familiar, tal como a Campina Grande que José Nêumanne descreve, também sem nomear, no seu O Silêncio do Delator.

Não sou grande leitor de livros longos, mas o fato é que tracei sem cansaço ou esforço as 366 páginas do livro.  São jovens que tomam cerveja, conversam sobre o futuro, queixam-se dos pais. A ausência de nomes próprios (seja de bares, de canções, de marcas, de lojas, de pessoas da cultura pop e da TV) dá ao livro um aspecto curiosamente realista, numa literatura que, anêmica de sentido, torna-se cada vez mais referencial, atulhada de marcas, nomes e citações. A realidade onde os personagens circulam em suas espirais intermináveis, que nunca avançam, é uma realidade feita de ações, pessoas, sentimentos; aquilo poderia ser o Irã ou a Bélgica.  Apesar disso, e na verdade por causa disso, é um livro essencialmente paraibano (sem regionalismo, mas é a Paraíba por onde caminho hoje em dia) e provavelmente brasileiro.  Nessa cidade transparente e neutra, os personagens são só eles mesmos, e é só com isto que podem contar.


domingo, 14 de setembro de 2014

3604) Lovecraft e fantasia (14.9.2014)



H. P. Lovecraft foi um dos escritores mais heterodoxos do seu tempo, uma figura fascinante. Um tímido de meia idade, escrevendo cartas quilométricas para jovens que em muitos casos nunca chegou a conhecer. Um cético materialista que escrevia sobre terror sobrenatural. Um aristocrata de espírito que passou toda a vida adulta na penúria. Seus contos que misturam terror e ficção científica, e seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, uma descrição comentada de dois séculos de narrativas de horror, são textos fundadores do gênero.

Como leitor, Lovecraft não economizava opiniões ao escrever para os amigos. Numa carta para Clark Ashton Smith (em 1926), ele diz: “A respeito de romantismo e de fantasia, eu, por mim, desdenho o primeiro, a não ser sob a forma do segundo.” [HPL se refere a “romantismo”, não como “histórias de amor”, mas como a literatura na linha de Byron, Shelley, Victor Hugo.]  “Para mim,” continua ele, existe algo de não-vital na supercolorida representação do que se pretende ser a vida real – o sentimentalismo de Dickens, os heróis bombásticos de Dumas, ou Victor Hugo no que tem de mais lamuriento. Para mim existe algo de pueril em delinear uma espécie de variante da vida, cheia de convenções, com pensamentos e sentimentos espúrios e artificiais, e depois ficar todo piegas e excitado e efusivo a respeito dela. Mas a fantasia é algo totalmente diferente. Aqui, temos uma arte baseada na vida imaginativa da mente humana, francamente reconhecida como tal; e, ao seu modo, tão natural e científica – tão relacionada aos processos psicológicos naturais (ainda que incomuns, delicados) quanto o mais nítido dos realismos fotográficos.”

Lovecraft não desdenha o realismo, apenas acha que a fantasia o expande e engrandece. Alimentada dos recursos do realismo, ela se torna grandiosa. Ele diz: “[Lord] Dunsany escreve – e você [C. A. Smith] tanto escreve quanto pinta – o épico autêntico de uma região etérea, tão bem fundamentada e bem descrita quanto o mundo real dos seres; e porque você não finge que aquilo é o mundo real, mas reconhece nele um mundo de fantasia, sua arte tem uma verdade e uma dignidade e um lugar mais elevado na estética, lugar que (na minha opinião) o romance sentimental terrestre não tem.” 

Lovecraft era consciente dos mil pequeninos truques e malabarismos técnicos que a estética realista usa para convencer o leitor de que aquilo “é como na vida real”. Aplicados à fantasia, tais recursos fazem deste gênero algo superior ao realismo, algo mais original, menos fingido. O realismo é uma fantasia que serve de dublê da verdade; a fantasia é uma verdade com suas próprias leis.


sábado, 13 de setembro de 2014

3603) "Another side of Dylan" (13.9.2014)



Mais um livro sobre Bob Dylan está nos balcões: Another Side of Bob Dylan de Victor & Jacob Maymudes.  Victor foi assistente pessoal de Dylan durante décadas, sempre considerado como um “faz-tudo” e uma pessoa do círculo mais próximo do artista. Antes de morrer em 2001, ele deixou várias fitas cassetes com depoimentos para um livro de memórias, finalmente compilado por seu filho Jacob. Maymudes é um desses coadjuvantes discretos que a gente se acostuma a ver em todo documentário, biografia ou série de fotos sobre o bardo. Onipresente, eficiente e invisível.        

Um trecho citado nas resenhas me chamou a atenção, quando ele fala sobre o álbum que deu o título do seu livro. Reza a lenda que Another Side of Bob Dylan foi gravado, por Dylan, sozinho, numa única sessão ao longo de uma única noite (9 de junho de 1964). Diz Maymudes: “Ele nunca tinha cantado aquelas canções para ninguém antes daquela noite. Apenas despejou tudo de uma vez. Era como um capacitor armazenando eletricidade e depois jogando pra fora. Estava com tudo aquilo guardado e deixou explodir. Eu estava zonzo.”  O disco tem pelos menos três clássicos: “My Back Pages”, “It ain’t me, babe” e “Chimes of Freedom”, além de canções menores de que gosto, como “To Ramona”, “Spanish Harlem incident”, “All I really want to do”, etc. 

A façanha no caso não foi “compositorial”, mas de intérprete. A fórmula compacta de apresentação do cantor Dylan (voz + violão + gaita) lhe dera àquela altura (era seu quarto disco) domínio total sobre estes recursos. Na verdade, foram 14 as canções inéditas e recentes que ele gravou naquela noite (embora somente 11 fossem selecionadas para o disco). Era típico do seu estilo: Dylan passou mais de quinze anos sem permitir, em nenhum disco seu, que voz e violão fossem gravados em separado, como hoje se faz. (Alguns dizem que ele nem sequer conhecia essa possibilidade.) Para ele, o ganho em nitidez sonora (o Santo Graal dos técnicos de som) acarretava uma perda em jogo rítmico e em espontaneidade.

Dá pra pensar sobre isto, nesta indústria de hoje em que você usa dez músicos numa mesma faixa e eles nunca se cruzam no estúdio. Vão lá em dez datas diferentes, ouvem o que já foi gravado e gravam sua participação em cima. Não há diálogo, não há troca musical. O baixista gravou ouvindo a bateria, que já estava pronta, mas isso significa que o baterista gravou sem ter ouvido o baixo. Todo o “kardec” que rola entre músicos, toda a percepção intuitiva do que fazer diante do que o colega acabou de mostrar, todo o diálogo rítmico e harmônico... tudo isso se perde com essa frieza.


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

3602) Matemática e corpo (12.9.2014)




Se existe alguma coisa que justifica o surgimento do ser humano neste planeta é ele ter concebido a matemática, e digo aqui a matemática no seu sentido mais amplo, que inclui a geometria, a aritmética, a música, a zorra toda. Não quero dizer que ela seja mais importante do que tudo, e na verdade acho que está muito longe disso. A coisa mais importante da vida é a felicidade do corpo, o em-paz do corpo, o na-ponta-dos-cascos do corpo, o turbinas-a-toda-potência do corpo, a alegria-de-viver do corpo, o vou-tomar-todas-porque-sou-indestrutível do corpo.  O corpo, a gente joga a toalha: o corpo é a base do real. A matemática é simplesmente o vislumbre da perfeição.

A matemática nos sugere o possível mundo Trans-Humano do futuro, em que todos seremos mente pura, gravada em elétrons e silício, livres das dores, das carências e da decadência do corpo. Não sei o que sente o corpo alheio, mas os prazeres e os achaques do meu me bastam. Tenho dias sempre movimentados.  O corpo ocupa cada um de nós 24 horas por dia. É único e não se conecta em rede.  Talvez por isso nunca consegui ver o arco-íris que tantos outros viam, a estrela cadente que tantos apontavam, o fantasma que todo juravam trêmulos que estava ali, diante de nós. Pobre de mim, que vejo uma ciclóide e não vejo um fantasma.

Quando conseguirmos transformar em .gifs animados tudo que sabemos sobre o espaço e suas dimensões. Quando conseguirmos codificar isso numa tecnologia que qualquer raça, por mais física e quimicamente diferente de nós, consiga reproduzir e utilizar. Quando, enfim, pudermos revelar a uma raça alienígena qualquer o que descobrimos sobre a matemática pura do Universo, somente então teremos justificado nossa presença na Terra.  Talvez nossa aritmética e nossa geometria (nossos lados digital e analógico) não sejam perceptíveis por todas as espécies inteligentes que há. Faz sentido.  Mas também faz sentido supor que exista alguma semelhante à nossa, ou pelo menos capaz de ver como vemos e raciocinar como raciocinamos, pouco importa sua aparência anatômica ou sua composição química.

Imagino um mundo distante, um mundo submarino com uma civilização compartilhada entre cetáceos e cefalópodes, e onde um dia cheguem, sabe-se lá como, demonstrações cabais da existência de que existia, num passado remoto, um raciocínio abstrato em termos visuais, no terceiro planeta em volta de uma estrela periférica. Eles olharão aquilo e comentarão: “Vejam só, eram mamíferos antropóides de superfície, respiravam oxigênio, e mesmo assim conheciam o Yamigang do Kambalaôr.” (É assim que chamam o “Teorema de Pitágoras” na cultura deles.)


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

3601) Guy de Maupassant (11.9.2014)



Nossa formação literária se deve muito aos livros que nos caem nas mãos por acaso, no momento certo. Quem quiser diga que o maior contista do mundo é Tchecov ou Hemingway ou qualquer outro: para mim é Guy de Maupassant, que conheci aos dez anos através da antologia Histórias Eternas (Cultrix, 1959), cheia de contos realistas, fantásticos, satíricos, românticos, tenebrosos, sentimentais, maliciosos, cruéis.  Suas histórias mais famosas são Bola de Sebo (que inspirou desde a canção “Jenny e os Piratas” de Brecht até o filme No Tempo das Diligências de John Ford), “O Horla” (uma das mais arrepiantes histórias de monstros invisíveis) e o romance Bel-Ami (sobre o jornalismo e a vida mundana de Paris).

A mãe de Maupassant era amiga de infância de Flaubert. Os dois se adoravam, e o jovem escritor foi apadrinhado com entusiasmo pelo autor de Salambô.  Com o mestre, GdM aprendeu a ser o que Jessier Quirino chama “um prestador de atenção”. Tem uma finura notável para sugerir, com poucos elementos, tipos humanos vívidos: uma rápida descrição visual, um diálogo, um adjetivo, e a pessoa está inteira e plausível diante de nós. Sua narrativa é ágil e jornalística (diferente do estilo pintura-a-óleo-em-grandes-dimensões do seu mestre). Maupassant é o mestre do parágrafo curto. Em duas ou três linhas ele tanto resume uma ação inesperada e complexa quanto o transcurso de dezenas de anos com tudo que trouxeram dentro de si.

Ficou rico publicando contos em jornais (e depois compilando-os em livros), façanha assombrosa em qualquer época. Na antologia citada, diz Ondina Ferreira no prefácio: “Foi um trabalhador infatigável: produzia num ritmo de febre. Em dez anos, espaço de tempo em que Flaubert redigia dois livros, publicou vinte e sete.”  Uma máquina-escritora comparável a Robert Silverberg, a Lester Dent, a Edgar Wallace. Certamente um autor lido e meditado por Machado de Assis, com quem só não é comparado porque tinha um temperamento diametralmente oposto.

A biografia Maupassant: A Lion in the Path (1949) de Francis Steegmuller, traz fatos curiosos como as amizades conflituosas de GdM com autores como Émile Zola, Henry James, Turgueniev. Episódios pitorescos sobre a intensa vida boêmia do autor nos bordéis de Paris e depois nas alcovas elegantes, disputado pelas mulheres devido ao seu (digamos) dom de resposta instantânea e de permanecer impávido durante horas a fio, em benefício da parceira. A sífilis que o levou à desorientação mental e ao hospício, onde morreu aos 43 anos. Foi o maior contista do seu século, e ainda é capaz de disputar em pé de igualdade com qualquer outro dos dois séculos seguintes.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

3600) Filosofias populares (10.9.2014)



Serei eu o último cara que lembra dessas coisas? Não, porque a maioria dos que conheço são até mais novos do que eu.  Havia uma cachaça chamada Praianinha que tinha um ótimo jingle. Vejam o que é nossa civilização – eu não tinha idade para tomar cachaça, mas já era exposto a ouvir jingles.  Uma pequena obra-prima que vou transcrever: “Se meu time ganhar / Praianinha vou tomar, para comemorar; / mas se meu time perder / Praianinha vou beber, para esquecer... / Praianinha na tristeza, Praianinha na alegria / Praianinha toda hora, Praianinha todo dia... (E se meu time ganhar...)”

Em matéria de equilíbrio dá um Descartes, e em matéria de saber viver dá dez Omar Khayam.  Feliz é o povo que tem suas praianinhas, de todas as naturezas, para atiçar o prazer e amortizar a dor.  (Admito que a leitura conspiratório-marxista, de que o slogan evidencia a onipresença da subliminaridade comercial, nos momentos em que o consumidor está mais emotivo e fragilizado, tem lá seus argumentos.)  Não me surpreenderia que um jingle assim fosse de Rosil Cavalcanti, de Luiz Queiroga, de Lamartine Babo (a música é meio um sambinha), de Luiz Bandeira.

Beber para lembrar, beber para ajudar a perder... A bebida e a comida podem até ser qualquer uma, porque a fantasia de quem precisa beber e precisa comer é infinita. Baudelaire chamou as drogas de paraísos artificiais, mas hoje elas são muito mais “analgésicos hilariantes”. Elas apagam de mentira a dor, e nos obrigam a sorrir. Assim é a cerveja, para dar só um exemplo, e que Deus abençoe, em sua infinita capacidade diplomática, quem a traz até a nossa porta.

Praianinha deveria ter saído em duas embalagens. A da derrota, “batizada” com um estimulante. A da vitória, com um relaxativo. A sabedoria não está só na simetria, mas no equilíbrio dinâmico. Quando algo chega ao seu extremo, a tendência é voltar.  Lei da Natureza, ou sabedoria chinesa?  Tanto faz, assim como tanto faz saber quem foi o primeiro enunciador da frase “dois mais dois são quatro”.  Faz diferença o autor?  Basta ser verdade.

Para os escritores a bebida foi a pólvora do escândalo (Edgar Poe), foi o anestesiamento compulsório (Raymond Chandler), o combustível da fogueira (Bukowski, Faulkner, Dylan Thomas, Lima Barreto), uma maneira agradável de se impedir de pensar. Não bebiam porque eram infelizes. Se se fizer uma lista, alguns dos mais felizes eram os que bebiam mais. A bebida (e olha, estamos aqui nivelando o vinho, o uísque, a vodka, o chope e a cana de cabeça) desabrocha de maneira diferente em cada pessoa. Algumas vezes de maneira trágica, claro, mas qual é a vida que não roça na tragédia de vez em quando?