domingo, 12 de fevereiro de 2023

4912) O detetive Fernando Pessoa (12.2.2023)

 

("Fernando Pessoa", por Almada Negreiros)


Fernando Pessoa era um grafomaníaco, pessoa com a mania de escrever compulsivamente. Alguns o fazem de forma caótica, e não produzem senão coisas sem criatividade, sem propósito e sem método. Não era o caso do poeta português. Dele, pode-se dizer que qualquer rabisco rende alguma idéia. 
 
Conta-se que à sua morte, em 1935, descobriu-se em sua residência o famoso “baú” que teria mais de 25 mil páginas com todos os tipos de texto: poemas, peças teatrais, correspondência, anotações, ficção... 
 
Nesta última categoria pode-se incluir talvez o famoso e notável Livro do Desassossego, compilado postumamente e atribuído ao heterônimo “Bernardo Soares”. É uma espécie de diário ficcional cheio de reflexões curiosas e melancólicas sobre a vida, a literatura e tudo o mais. 
 
Fernando Pessoa é um caso à parte na literatura, pelo talento exuberante, pelo rigor do pensamento, pelas idiossincrasias psicológicas que dão a tudo que escreve uma posição única na observação e análise dos fatos. Muitos o consideram, com razão, um dos maiores poetas da nossa língua, e um dos maiores poetas do século 20 em qualquer idioma. Mas me atrevo a dizer que não se tem a medida exata de seu talento se não se der atenção igual à sua obra em prosa, que é mais de reflexão e análise do que de ficção.
 
Do meio dessa jângal de manuscritos, os pesquisadores separaram uma boa quantidade de contos (completos ou em fragmento), dos mais diversos tipos. Alguns são contos policiais deixados incompletos. 
 
Nos seus depoimentos Pessoa reafirma o seu gosto pela literatura policial, citando nominalmente autores como Conan Doyle, Arthur Morrison (o criador do detetive Martin Hewitt) e Edgar Wallace.
 
Há diferentes edições dos textos considerados policiais de Pessoa, mas vou me limitar a duas, que tenho há anos.



As Obras em Prosa (Ed. Nova Aguilar, Petrópolis, 1986, 734 págs., “Biblioteca Luso-Brasileira”), se dividem nas seguintes partes: “O Eu Profundo”, “Os Outros Eus”, “Idéias Estéticas”, “Idéias Filosóficas”, “Idéias Políticas”, “Teoria e Prática do Comércio” e “Ficção”.
 
Esta última, a que ora nos interessa, está assim composta:
 
CONTOS DE RACIOCÍNIO:
“O banqueiro anarquista”, “A janela estreita” (fragmento), “O roubo da Quinta das Vinhas”, “A carta mágica”, “A arte de raciocinar”, “Um paranóico com juízo”.
 
CONTO FILOSÓFICO DE PERO BOTELHO:
“O vencedor do tempo”
 
Note-se que termos como “conto policial” ou “detetve” não aparecem. Nesta mesma compilação, vê-se uma lista de títulos (contos completos e fragmentos) sob esta última rubrica, assim:
 
CONTOS DE PERO BOTELHO:
O Vencedor do Tempo (Prof. Serzedas)
A Morte do Dr. Cerdeira (Dr. Cerdeira)
A Experiência do Dr. Lacroix (Dr. Lacroix)
O Prior de Buarcos (Pe. João (José) Maria)
Quaresma, Decifrador (Dr. Abílio Quaresma), (Vários)
O Eremita da Serra Negra (O Eremita)
?No Hotel Cecil, em dia de chuva (O pessimista)
?Uma Tarde Cristã (O jesuíta Eusébio Vareiro)
?O Profeta da Rua da Glória (O judeu Salomão, Barjara)
 
Copio do jeito que está no livro. Como a obra de Pessoa (me parece) está toda em domínio público, talvez uma busca paciente por esses títulos e nomes resulte em alguma coisa. Boa sorte!
 
Para mim, o mais importante de tudo é a menção ao “Dr. Abílio Quaresma”, ou “Quaresma, Decifrador”, nome que influenciou Ariano Suassuna na criação de seu personagem “Quaderna, o Decifrador”, o protagonista do Romance da Pedra do Reino


O Dr. Quaresma aparece com maior destaque no outro título que possuo: A Alma do Assassino – segundo o Dr. Quaresma, Horizonte Editora, São Paulo, 1988(?).
 
O livro tem uma ótima introdução, “A Novela Policial”, de Luiz Roberto Benati. E inclui quatro contos, visivelmente fragmentários, em que Quaresma aparece. São estes que irei comentar a seguir. 
 
A Alma do Assassino reúne quatro fragmentos de contos. É interessante notar que Fernando Pessoa se interessava mais pelo processo de raciocínio do que pela narração das história em si. Suas anotações para contos constam principalmente das explicações de alguém sobre um crime, e das explicações de Quaresma de como o crime foi cometido e quem é o culpado. 
 
Não se vê muita coisa da trama, a não ser o que é comentado na mecânica dedutiva. Pessoa escrevia isso e talvez se desse por satisfeito. 



“A Janela Estreita” narra somente uma reunião, entre o Dr. Abílio Quaresma, o chefe de polícia Guedes e o Tio Porco, discutindo processos dedutivos e fazendo menções muito superficiais ao crime que estão investigando, e que envolve um ourives e o seu filho desonesto. 
 
“O Roubo na Quinta das Vinhas” é mais detalhado, tem algumas cenas, descrições de ambientes, diálogos. Um cofre foi arrombado à meia-noite, numa casa onde várias pessoas estavam hospedadas. As suspeitas recaem sobre o jardineiro. Conversando com o engenheiro Augusto Claro, para quem o homem é inocente, Quaresma explica como deve ter se dado a mecânica do crime, e quem é o verdadeiro ladrão. 
 
“A Carta Mágica” é um enigma de “quarto fechado” ou de “crime impossível”. No caso, o desaparecimento de uma carta comprometedora, num aposento hermeticamente fechado. Ouvindo o relato do chefe de polícia Guedes, Quaresma rapidamente indica como o roubo deve ter se produzido, e quem provavelmente o executou. 
 
“O Caso Vargas” não dá indicação do enredo. Consta de várias páginas de monólogo explicativo do Dr. Quaresma, onde ele, com o raciocínio analítico bem característico de Fernando Pessoa, discorre sobre os “três tipos de raciocínio abstrato”, as “três espécies de crimes”, os “quatro tipos mórbidos do homem”, e assim por diante. 
 
Todos estes fragmentos recebem notas e comentários dos editores da obra de Pessoa, explicando o contexto de cada um, sem o quê não seria possível acompanhar as narrativas. 
 
Num texto de 1914 (Obras em Prosa, pág. 69) ele afirma:
 
Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. 
 
Um volume de um desses autores, um cigarro de 45 ao pacote, a idéia de uma chávena de café – trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim – resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu atual. 
 
Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores prediletos – e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho. 


("Fernando Pessoa", por João Beja)