quarta-feira, 13 de setembro de 2017

4268) As aventuras de João Furiba (13.9.2017)





Eu estava no meio de uma viagem com um grupo de cantadores, e tivemos que pernoitar no Recife para prosseguir no dia seguinte. Estava todo mundo exausto depois de horas de ônibus na estrada. Eles estavam fazendo cantorias e eu acompanhando, assessorando, peruando, compartilhando a embriaguez do verso.

Fomos pernoitar em Olinda, nos alojamentos da Casa das Crianças, a fundação de Giuseppe Baccaro, que fornecia quartos gratuitos para violeiros de passagem.

Chegamos lá por volta das onze da noite. Não era tão cedo que permitisse descansar um pouco e depois ir pra farra, nem era tão tarde que a farra ficasse inviável. Decidimos deixar ali as malas e as violas, e sair para beber.

Não lembro exatamente quem eram os outros do grupo; talvez Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, Bandeira Sobrinho... E o protagonista da história, João Furiba, um dos cantadores mais queridos e mais engraçados de sua geração. Está hoje com 90-e-bote-força.

Baixinho, magrinho, meio feioso, cheio de dentes de ouro, Furiba tinha a fama de conquistador inveterado por onde passava. Nas cantorias apregoava riquezas babilônicas:

Sofri um pequeno atraso
porque tive de emprestar
para o presidente Reagan
minha Ferrari sem par,
só fiquei com o Rolls Royce
que anda mais devagar.

Nessa noite, Furiba estava mais cansado do que os outros e resolveu não sair.

– Não, Deus me livre. Estou morto. Vão vocês se divertir, eu vou é dormir um sono.

Como estávamos chegando ali meio de supetão, foi preciso combinar com o poeta Palito, que era meio administrador das coisas, o local de dormida para todo mundo. Ele indicou nossos quartos, e foi mostrar o de Furiba.

– Furiba, quem estava nesse quarto era Zé Gaspar, mas ele foi pra uma cantoria e só deve voltar amanhã. Afaste as coisas dele, e durma.

Os quartos da Casa das Crianças eram pequenos, simples. Furiba levou para lá sua maleta, a viola e uma melancia que tinha comprado para levar pra casa. Despediu-se de nós e foi dormir. Deixamos nossas bagagens nos outros quartos e fomos em busca de algum lugar com comida quente e cerveja gelada.

Fomos parar num daqueles botequins de calçada, de frente pro mar. Bebemos um monte de cervejas e comemos uma carne de sol que pra cortar foi preciso pedir uma serra de pão. Lá pelas duas da manhã voltamos para a Casa das Crianças.

Assim que passamos do portão vimos no escuro uns vultos que tinham chegado pouco antes de nós. Iam mais à frente nas alamedas, rodeando os gramados e subindo a encosta rumo aos quartos. Pelas vozes, e pelos vultos, quando chegamos mais perto, reconheci alguns deles.

No meio vinha Zé Gaspar. Que àquela altura já estava batendo com força na porta do quarto.

– Ei, caba safado, esse quarto é meu! Sai daí, misera!

Fomos chegando e tentando explicar que quem estava ali era Furiba. Foi pior.

– Esse mentiroso safado? Ele tá pensando o que? – Zé Gaspar, visivelmente, tinha tomado umas-e-outras e devia estar ansioso para desabar no colchão. – Bora, nojento! – E tome murro na porta – Abre essa porra aí, seu corno, esse quarto é meu!

Com a minha vocação para Itamaraty-de-cantador, eu me interpus:

– Calma, Zé, vamos chamar ele e a gente resolve isso sem problema.

Zé Gaspar é um caboclo entroncado, musculoso, daquele tipo que desatola sozinho um carro de boi. Ele me encarou furioso:

– Isso é BT? O que diabo você tá fazendo em Olinda?

– O mesmo que você. – Bati na porta. – Furiba véio, abra aí pra gente conversar.

– Eu não dialogo com trogloditas – veio a voz lá de dentro, magrinha de medo.

– Furiba, o quarto é dele, ele quer as coisas dele. Qualquer coisa você passa pro meu, e eu vou embora. Eu tenho amigos que moram aqui perto.

– Sai logo, seu corno! – bradou Zé Gaspar em nova investida, me arremessando de encontro à porta. Bandeira Sobrinho e Oliveira tiveram dificuldade para contê-lo. – Eu tenho dinheiro guardado aí! Se tiver faltando um cruzeiro, o diabo vai se soltar.

A essa altura nem sei se era cruzeiro naquele tempo, mas tanto faz. Furiba retrucou, na segurança da porta fechada:

– Já me chamou de corno e de ladrão. Desse jeito eu vou acabar me aborrecendo.

Zé Gaspar tinha se soltado dos outros e bufava, olhando para os lados, como quem está reunindo forças para invadir Tróia. Bandeira Sobrinho tirou os óculos, soprou neles, botou de novo, alisou o bigode e disse:

– Eu sabia que isso não ia dar certo.

Nesse momento a luz do quarto se acendeu, a porta se abriu, e no umbral apareceu João Furiba, no pleno vigor do seu metro-e-sessenta e de seus 50 quilos, nu com exceção de uma Zorba verde-limão e meio frouxa, empunhando um canivete em riste e proclamando:

– A honra se lava com sangue.

Zé Gaspar partiu pra cima dele como um miúra, e nós todos nos engalfinhamos, rodamos levantando poeira e de repente alguém deu uma rasteira em alguém e o bolo de gente rolou pelo chão por entre sopapos e impropérios. Eu senti uma dor no cotovelo, me despreguei da confusão e fiquei de pé.

Eles foram se soltando e se levantando. Ergui a mão: era sangue. A queda tinha arrancado um samboque do meu cotovelo. Bandeira me estendeu um lenço:

– Tome, poeta, pra estancar.

– Vou estragar teu lenço – disse eu.

– Deixa pra lá. Já tá cheio de catarro mesmo...

Apliquei o lenço no ferimento, mas a essa altura Palito já havia chegado providencialmente com uma solução, e até Zé Gaspar estava rindo, enquanto Furiba permanecia na porta em plena Zorba e de canivete em punho, e dizendo:

– Não mexa comigo não, que eu sou perigoso.

A noite acabou nos levando de volta aos bares, para baixar a adrenalina da briga.  Paramos nos Quatro Cantos, onde tinha numa calçada uma turma conhecida tocando violão, era Don Tronxo, Romero Mamata, aquele pessoal que vivia por ali. Emendamos as mesas e mais tarde eu já estava bebo, com o lenço amarrado no cotovelo, fazendo sextilhas com Zé Gaspar, e desta noite me sobrou essa pérola:

Tem certos dias na vida
que nada-nada dá certo
a cisterna do desastre
ficou de registro aberto
quando alguém me dá bom dia
eu digo: saia de perto.