quarta-feira, 25 de junho de 2014

3534) Terra Oca (25.6.2014)




Era uma vez um planeta (o nosso) que era oco. Alguma coisa nas suas convulsões geológicas o deixara assim, e a velocidade com que girava tornava possível haver oceanos, continentes e mares não apenas no exterior da sua crosta sólida, mas na face interior dela também.  O oco interno era iluminado por um sol central de intensidade, tamanho, massa e variação cromática ideais.

Foram os homens de dentro, que em sua expansão, povoaram pela primeira vez o mundo de fora, até então entregue a feras descomunais. Brotaram do Polo Norte e desceram rumo a terras mais quentes. Alguns morriam com facilidade ao se aproximarem delas, mas outros pareciam despertar, redobrar de vigor. Ali se fincaram, ali esqueceram o trajeto dos seus ancestrais remotos. Pensavam mais na sobrevivência do que em ficar recitando as crônicas históricas de um mundo que não conheciam e de cuja existência não faziam questão.

Acostumados ao sol unânime e central do mundo de dentro, eles estranharam o mundo de fora. O sol girava sem parar, erguendo-se no primeiro abismo e pondo-se no último. Um sol rodopiante, descontrolado, num mundo sem paredes.  E nas horas em que o sol sumia, vinham horas espantosas cheias de terrores e constelações. E a tentativa de justificar a presença daqueles pontos de luz através de esferas, dentro de esferas, dentro de esferas, cada qual girando sobre si própria.

Existem pessoas que preferem um sol único, fixo, inalterável em si mesmo, podendo apenas ser oculto por invernos inteiros, mas confiadamente ali, onde sempre esteve e onde sempre deveria estar.  Um mundo em forma de esfera fechada. O que dizer das crises filosóficas de gerações de escribas teologais da Terra de Dentro, no século em que emergiram do outro lado do Poço, e descobriram que estavam pisando a superfície de uma esfera aberta?

Guerras por dissensão quanto a um axioma qualquer de teologia topológica. Impérios se ergueram, impérios tombaram.  Podemos descrever essa fase apenas em termos coletivos. Não há como saber se algum daquele filósofos (inteligentes, mas sem o instrumental de que se dispõe hoje) chegou a intuir mentalmente uma física, astronomia, geometria, etc. que pudesse se aplicar àqueles dois universos, a Terra de Dentro e a Terra de Fora.  Porque o mundo é binário, bipolar, contrário-complementar, oposto-simétrico.  O mundo não é apenas circular, esférico, concêntrico, harmonioso e uno.  Existe em nós a consciência atávica da existência de um mítico Aqui-Lá, um mundo com sinal invertido ao nosso, um mundo-do-espelho, um mundo de uma esfera fechada por paredes de matéria, que é o mundo primordial de onde viemos, e para onde tudo voltará um dia.