quinta-feira, 24 de novembro de 2022

4886) "Em tradução livre" (24.11.2022)




Volta e meia eu me deparo, na imprensa, com essa expressão. Que eu entendo, e posso até usar; mas acho que tem gente usando sem necessidade.
 
Vi uma matéria sobre o lançamento do novo livro de Bob Dylan, um ensaio onde ele comenta canções clássicas (e algumas obscuras) da música norte-americana. Às folhas tantas, a matéria diz: 
 
Tudo aconteceu quando Bob Dylan mencionou Joe Satriani em uma fala de seu novo livro, "Philosophy of the Modern Song" ("Filosofia da Canção Moderna", em tradução livre).
 
Sinceramente, não me ocorre nenhuma outra tradução possível, livre ou não-livre, para esse título. E olha que eu sempre defendo a teoria de que “toda” frase pode ser traduzida de muitas maneiras diferentes.
 
Quando a pessoa usa esse álibi, está se precavendo contra uma possível crítica dos leitores. Está avisando: “Olha, eu não sou tradutor profissional, não sou especialista em tradução. Estou só dando essa versão livre, em português, para dar uma idéia ao leitor que não conhece inglês. Desculpe qualquer coisa.”
 
Uma escusa perfeitamente legítima.
 
Me acontece muitas vezes, principalmente ao escrever aqui no blog, que preciso citar e traduzir uma frase, um título, uma expressão qualquer. É uma frase complicadinha e eu fico hesitando entre duas ou três soluções possíveis. Mas... ora que diabos, estou só dando um exemplo, isto aqui é uma conversa. (Eu vejo blog como uma conversa, que pode ser mais formal ou menos, conforme o dia e a veneta.) O que faço? Mando a versão que no momento me parece mais passável, e sigo adiante.
 
Esse tipo de tradução é provisório, não-definitivo, não é preso a um atestado de legitimidade absoluta. Quem usa essa expressão o faz de maneira modesta, discreta, quase que pedindo desculpas por se meter a traduzir sem ser tradutor. Uma posição até elogiável, numa época de muita gente cheia-de-razão, como se diz na Paraíba.
 
Pouco tempo atrás estava rolando uma discussão sobre a série de TV Sandman, baseada na série de quadrinhos de Neil Gaiman. É um título que já havia sido usado por E. T. A. Hoffmann num conto famoso (“Der Sandmann”, 1817), sobre uma figura de pesadelo do folclore europeu.



Quando incluí o conto de Hoffmann numa antologia (Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007), ele foi traduzido como “O Homem de Areia”. Tempos depois me ocorreu que uma tradução igualmente válida seria “O Homem da Areia” – porque esse personagem derrama areia nos olhos das crianças que não dormem, fazendo-os arder.
 
“O Homem de Areia”, título geralmente usado no Brasil, sugere um homem feito de areia; “O Homem da Areia” pode sugerir um homem que usa a areia para um fim específico, e a traz consigo num saquinho (como faz o personagem Morpheus, de Gaiman).
 
Sempre é possível encontrar uma tradução melhor que outra. Por isso os livros importantes são periodicamente traduzidos, para adequá-los à linguagem de cada época, à dicção de cada época, às nuances de vocabulário – que mudam o tempo todo.
 
O epíteto se aplica quando o livre-tradutor admite a probabilidade de outras soluções tradutórias  para aquela frase mas, por variadas razões, não quer se deter no exame dessas alternativas, até mesmo para não se desviar do assunto principal.
 
Muitas coisas que eu traduzo “en passant” (“de passagem”, em tradução livre) têm esta justificativa: “Olha, pessoal, esta frase aqui mereceria um exame mais aprofundado, mas vou botar esta versão quebra-galho, só pra dar uma idéia do que se trata”.



Se eu fosse me referir à canção mais famosa de Bob Dylan, “Blowin’ in the Wind”, diria: “Soprando no vento”. É a tradução mais imediata, mais ao pé da letra. Porque o sentido mesmo do verbo pediria algo como “Sendo soprada no vento”, ou “pelo vento”. The answer is blowin’ in the wind. A resposta está flutuando no vento, está pairando no vento, está sendo levada pelo vento...
 
Enfim: em diferentes momentos, eu optaria por diferentes soluções. Qualquer escolha deixaria uma inquietude de coisa-faltando. E eu acabaria apelando para a fórmula: “em tradução livre”.