terça-feira, 18 de janeiro de 2011

2456) "O Cavaleiro de Bronze" (18.1.2011)



As chuvas catastróficas no Estado do Rio neste começo do ano aconteceram, por sincronicidade, na mesma semana em que eu estava lendo, no livro de Marshall Berman Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, o capítulo dedicado à cidade de São Petersburgo, e à sua importância na consolidação dos projetos modernistas da Europa. Berman explica que Petersburgo foi uma cidade conquistada ao mar, um triunfo da engenharia e do urbanismo de sua época, uma espécie de apoteose do pensamento modernista de que a ciência, a tecnologia e a razão são capazes de vencer qualquer obstáculo, e que suas vitórias sempre representam a passagem para um estágio superior da vida humana.

Berman comenta o poema de Puchkin “O Cavaleiro de Bronze”, em que Petersburgo é destruída por uma enchente do rio: “O rio desabou com ódio e tumulto, inundou as ilhas, fez-se cada vez mais feroz, elevou-se e rugiu como uma máquina exalando vapor e, frenético, desabou finalmente sobre a cidade. (...) Um cerco! Um ataque! Ondas sobem até as janelas, como bestas selvagens. Barcos, numa massa desordenada, quebram os vidros com as popas. Pontes que o dilúvio rompeu, fragmentos de cabines, vigas, tetos, as mercadorias dos comerciantes precavidos, os pertences arruinados dos pobres, as rodas das carruagens da cidade, os caixões do cemitério, tudo flutua à deriva pela cidade”.

A criação da cidade pela engenharia e sua parcial destruição pelo rio/mar ganham dimensão simbólica pela força da poesia de Puchkin e da análise de Berman. Cada cidade é um pequeno triunfo modernista e tecnológico, uma modesta derrota imposta à Natureza (porque é em termos de conflito contra a Natureza que as cidades em geral são vistas). Cada vez que o império da Natureza contra-ataca, conquista, por sua vez, uma modesta vitória. O mundo moderno, conforme Berman o enxerga, perde cidades inteiras como uma cobra perde pele: como uma fase natural de seu próprio crescimento.

As obras da antiguidade sonhavam em permanecer de pé durante 40 séculos; as de hoje querem ser a apoteose do presente. Até quando desmoronam são um triunfo, porque o capitalismo/modernismo, insaciável, constrói outra por cima das ruínas da primeira. Nossas cidades são o avanço do descartável, do efêmero, bairros construídos sobre lixões, favelas espalhadas no mangue da beira-rio, efeitos colaterais da briga com a Natureza e primeiras vítimas dos seus contragolpes. Cada pirâmide precisa de 150 mil operários e consequentemente de 150 mil barracos; não existem pirâmides onde não existem barracos.

As enchentes de Teresópolis, Friburgo, São Paulo, bem como as de Palmares e de cidades alagoanas ano passado, são a pororoca entre civilização e natureza. Nossas cidades se desmancham no ar porque seu sentido se esgotou (para quem as construiu) no empreendimento da construção. É a civilização do presente, que constrói como se o futuro não viesse nunca, como se já tivéssemos atingido o fim da História.