quarta-feira, 4 de abril de 2018

4332) Lembranças de Guimarães Rosa (4.4.2018)




(foto: David Zingg)

João Guimarães Rosa tornou-se um dos maiores autores da literatura brasileira com uma obra pequena, de apenas cinco livros: Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia (1967). Sim, vieram outros depois, e pelo menos um destes cinco acabou sendo desmembrado em vários títulos, mas no edifício-base da obra rosiana as pilastras são essas aí.

“Poderia ter escrito mais,” é uma lamentação reiterada entre o admiradores, ainda mais quando pensamos na sua morte certamente prematura, aos 59 anos. O que esquecemos, às vezes, é que todo escritor trabalha para viver. Rosa era funcionário do Itamaraty, e muitos episódios importantes da sua vida demonstram sua dedicação ao trabalho, às missões de que era encarregado. Tão grande quanto sua dedicação obsessiva à literatura.

Ele faria 110 anos em junho próximo, e se estivesse ainda por aqui descobriria alguma alusão cabalística nesse número. Perguntado numa entrevista famosa se escrevia realismo mágico (na época em que na Europa só se falava em Borges, Astúrias, Garcia Márquez, Cortázar etc.) ele sugeriu que “álgebra mágica” seria uma descrição mais acurada do que fazia em suas estórias.

Acho que foi Fábio Lucas que eu vi pela primeira vez elogiar esse lado duplo de obras com a escala do Grande Sertão: a ousadia arquitetônica do gigantesco conjunto narrativo e a atenção obsessiva a cada detalhe, cada sílaba, à formatação gráfica de cada palavra. Um narrador capaz de imaginar do nada um império, e de limpar a poeira de cada centímetro quadrado dele.

Rosa é sempre considerado um xamã e pajé da palavra, da palavra em si, mas suas narrativas são tão inquietantes, tão estranhas e aparentemente familiares quanto seu vocabulário.

A melhor extensão de texto para Guimarães Rosa era a noveleta, o conto longo a que ele recorreu com galhardia em Sagarana. Ele ampliou esse formato ao máximo em Corpo de Baile, contraiu-o e chegou talvez ao seu melhor ponto de síntese em Primeiras Estórias, passou desse ponto e produziu Tutaméia, que é concentrado a ponto de ser espesso. E que nem por isso é um mau livro, muito ao contrário.

Rosa recorria fartamente à própria memória, que era prodigiosa, uma vez que ele nunca cessa de louvar as experiências de infância que teve. Mas recorria também à memória alheia, como mostram suas numerosas cartas para o pai Florduardo, sempre pedindo uma descrição detalhada de como era a festa tal no ano não sei quanto, ou que contasse de novo a história do primo Fulano, ou lembrasse aquela cantiguinha.

Memória alheia significa que é preciso ter um arquivo, anotações, cadernos, “borrões”, fichários. Rosa fala, aqui e ali, que grande parte de suas anotações sobre o assunto A ou B foi quase toda derramada no conto tal. “São Marcos” é virtualmente um tratadinho de feitiçaria popular. “Conversa de Bois” é o contrário: dá mesmo a impressão de ter sido (ele mesmo conta, num dos prefácios de Tutaméia) primeiro pensado realisticamente, depois sonhado em versão final.

Memória, arquivos, isso todo escritor tem. O que mais tinha Rosa? Ele é visto por muita gente como um escritor exigente, hermético, pedante, mas a primeira exigência era consigo mesmo. E no que diz respeito ao mero vocabulário, ele tinha, sim, a busca preciosista não só pela palavra certa, mas pela versão mais profunda dessa palavra. Muitos grandes prosadores e poetas tem isso, mas nem todos o fazem com a leveza, o humor contemplativo, a falta de azedume de sua prosa.

Comparam tanta coisa de Rosa com James Joyce, acho que se pode comparar também que nos dois havia uma biblioteca vaticana e uma feira popular ao ar livre. As entidades que falam através de Joyce em Ulisses e os jagunços do Grande Sertão têm acesso a um banco-de-dados erudito, mas se exprimem também com as dicções milenares e plebéias produzidas por pessoas em qualquer esquina do Curvelo ou de Montes Claros. Coloquialidade, tratamento sem-cerimonioso do idioma, arteirice de menino com o álibi da velhice, nos dois.

O que os torna parecidos não é apenas a tendência ao neologismo e às palavras portemanteau, a riqueza dos nomes próprios, mas a mistura de uma enorme informação livresca e uma enorme coloquialidade na expressão. Doutores ou gente rústica falam todos a língua do autor sem deixar de falar como esperaríamos deles. Até os bois falantes, todos falam como deveriam falar. Ulisses e GS:V são dois livros com bibliotecas inteiras por trás, mas a língua que usam é uma síntese perfeita entre a palavra falada e a palavra escrita.

Já o Finnegans Wake foi muito mais longe do que Tutaméia, em todos os sentidos.

No mais, não podiam ser mais diferentes. Joyce me parece um boêmio sagaz e meio neurastênico, vivendo de país em país, ricocheteando entre os abrigos que encontra, uma espécie de Orson Welles sem um centavo. E Rosa um diplomata, um cosmopolita, um homem – como direi? – “um homem do Primeiro Mundo”.  Quem o arranhasse, no entanto, não encontraria o boêmio, encontraria o cientista, encontraria o médico do corpo estudando o balé-xadrez entre as nações, entre os grandes agentes econômicos e políticos.

Numa matéria na Folha de São Paulo (05-05-2013), o diplomata Luiz Filipe de Macedo Soares, trinta anos mais jovem que Rosa, e que foi seu contemporâneo no Itamaraty, recorda momentos dessa convivência profissional e amistosa.

Desde 1956, Rosa chefiava a Divisão de Fronteiras no Ministério das Relações Exteriores, cargo que ocupou por 11 anos até morrer, em 1967. Não é comum, no Itamaraty, tão longa permanência em uma função. Não voltou a servir no exterior desde que regressou de seu último posto, na Embaixada em Paris, em 1951. Desejava certamente concentrar-se em sua obra, embora a parte principal já estivesse feita. Em princípio, em 1956 restariam-lhe 17 anos de carreira até a aposentadoria compulsória, aos 65, e bem mais de vida, em vez de meros 11 anos.

Os últimos onze anos de vida de Rosa foram divididos entre seu projeto literário pessoal e a demarcação das fronteiras do Brasil, uma tarefa simbolicamente interessante para quem faz literatura. A parte mais espinhosa das fronteiras parece ter sido resolvida pelo Barão do Rio Branco, mas Macedo Soares refere questões específicas como a que Rosa administrou, com o Paraguai.

Ele cita o livro de Heloisa Vilhena de Araújo, Guimarães Rosa: Diplomata (Fundação Alexandre de Gusmão, 1987). Em 1941, já em plena II Guerra, Rosa estava lotado em Hamburgo mas emprestado à Embaixada em Berlim, e viajou a serviço para Madri e Lisboa. E cita daquele livro um trecho de um relatório em que Rosa avalia o clima ideológico dos países por que passou, Portugal e Espanha:

A circunstância de estarem os dois países mais ou menos comprometidos, quando mais não seja teoricamente --Portugal pela sua plurissecular aliança com a Inglaterra, a Espanha pelos vínculos com as Potências do Eixo-- ajuda-nos a compreender o inteligente afã com que os seus governantes se apertam as destras, uma vez que cada um deles dá a mão esquerda a um dos dois grupos beligerantes.

Praticam uma política de recíproca ajuda, e cultivam uma amizade compensadora, realizando, sem atritos, a osmose adaptativa, entre dois regimes, autoritários mas de diferente colorido totalitário conforme a pitoresca disposição, no mapa, das ditaduras europeias, que se escalonam, de leste para oeste, numa seriação decrescente de radicalismo.

Vê-se aí um indivíduo ajustando a riqueza expressiva de que dispõe a um repertório de discursos meio ritualístico como é o da diplomacia. O relatorista se sai bem, porque descreve uma situação complexa com uma linguagem de palavras fortes e específicas, num discurso claro, consequente, sem experimentações.

Tem interesse isso? O mesmo interesse dos relatórios de prefeito de Graciliano Ramos, ou do balanço geopolítico de José Américo de Almeida sobre a Paraíba; mas tudo isso só ganha sentido se iluminado pela literatura, sem a qual não brilhariam. Mostram que muitos escritores são capazes de escrever, longe da literatura.