terça-feira, 27 de maio de 2008

0407) 80 anos de Osman Lins (9.7.2004)



Neste julho comemoram-se os 80 anos de Osman Lins, que faleceu em 1978. Fiquei sabendo, através de uma matéria recente de André de Sena aqui no JPb, que dois livros estão sendo lançados em Pernambuco, ambos reunindo ensaios sobre sua obra: Osman Lins: o sopro na argila, organizado por Hugo Almeida, e Vitral ao sol, reunindo ensaios surgidos no Departamento de Letras da UFPe. Estes títulos vêm se juntar a A garganta das coisas de Regina Dalcastagnè, Osman Lins: uma biografia literária de Regina Igel, Osman Lins: crítica e criação de Ana Luiza Andrade, e certamente outros que ignoro.

Não conheço muita gente, no Brasil ou fora dele, que tenha escrito uma prosa no mesmo nível de tensão poética da prosa de Osman. Chamo de tensão poética àquela sensação que nos produz uma frase carregada de significado e de linguagem alusiva, diferente destas frases discursivas e lineares que estou enfileirando aqui. A prosa de Osman Lins é o que poderíamos chamar de “prosa poética”, se bem que esse estilo tende a ser uma prosa maneirista, rebuscada. Osman projeta tensão poética em tudo que escreve. Tem um grau extremado de riqueza vocabular e rigor sintático; sua imaginação visual é sem limites; sua competência como contador de histórias está fora de questão. E, por cima de tudo isto, a melhor expressão para descrever seu texto é: um arrebatamento verbal.

“Não viverei sequer mil anos, minha vida é rápida, risco no tempo, tal como um peixe salta um dia acima da vastidão do mar e vê o Sol e um arquipélago onde se movem cabras entre as rochas, assim eu salto da eternidade, como todos, eis-me no ar, vejo o mundo dos homens, logo voltarei aos abismos marinhos.” (Avalovara) Uma das mais consistentes contribuições de Osman a nossa prosa foi ter corporificado como ninguém o conceito do tempo espacializado. Suas histórias acontecem numa espécie de “eterno presente”, onde passado e futuro coexistem, lado a lado, e são avistados simultaneamente pelo narrador que faz passear sobre o Tempo o seu olhar implacável, e nos descreve o que vê acontecendo.

Osman cometeu três pecados graves no cenário literário brasileiro. O primeiro foi escrever tão bem; os prosadores pedestres não perdoam. O segundo foi fazer sucesso: Avalovara teve uma tremenda campanha publicitária da editora Melhoramentos, até out-door saiu. Seus livros foram traduzidos e elogiados na Europa, outra coisa que deixa muitos coleguinhas desconfortáveis. E o terceiro erro foi ter sido um sujeito combativo, sem papas na língua, que detestava hipocrisias. Em Guerra sem testemunhas e Evangelho na taba: problemas inculturais brasileiros, ele “passou o rodo” nas editoras, nos críticos, nas universidades, nos livros didáticos, na feira-das-vaidades... Para muita gente é mais cômodo fazer de conta que ele nunca existiu. Mas existiu, sim. Subiu o nível da literatura brasileira, e embelezou como ninguém a tapeçaria do Tempo.

0406) O bilhete 500.000 (8.7.2004)




Você compraria um bilhete de loteria com o número 500.000?. Eu mesmo não. Por quê? Ao ver um número assim, tão redondo, a primeira coisa que imagino é que dificilmente um número como este vai ser sorteado. É certinho demais. Muito mais provável me parece um número como por exemplo 472.648. Este sim, tem cara de número sorteado aleatoriamente; mas eu pensaria duas vezes antes de comprar um bilhete como 333.333 ou então 123.456.

O sorteio destes números é feito através de gaiolas gradeadas que giram, cheias de bolinhas numeradas, todas do mesmo tamanho, formato e peso. As bolinhas se entrechocam no interior das gaiolas, e quando estas se imobilizam é praticamente impossível (num sorteio honesto, é claro) que a bolinha a ser extraída pela abertura inferior tenha sido influenciada por algum fator externo. 

Ou seja: existe uma probabilidade rigorosamente igual de que qualquer uma das bolinhas venha a ser extraída. Cada algarismo do número do bilhete é sorteado desta forma.

Existe um velho princípio no estudo das probabilidades, contudo, que diz: “Moeda não tem memória”. Quando jogamos uma moeda ao ar para tirar cara-ou-coroa este fenômeno físico é independente de todos que já tenham acontecido antes. A probabilidade de dar cara ou coroa num lance isolado é de 50%. 

Se jogarmos a moeda mil vezes e obtivermos mil vezes o resultado “cara”, isto não quer dizer que na próxima vez é mais provável que ocorra cara (“porque está ocorrendo muito”) ou coroa (“porque faz tempo que não ocorre”). A moeda não sabe o que saiu antes; cada lance recomeça tudo do zero. E o mesmo se aplica ao sorteio das bolinhas.

Então, por que desconfiamos de um número redondo? Por que o achamos tão improvável, se em tese ele é tão provável quanto qualquer outro? Acho que é porque desconfiamos da possibilidade de que o Caos gere a Ordem. Números escolhidos aleatoriamente devem refletir essa “aleatoriedade” através de uma mistura confusa e sem padrões discerníveis. Se uma série de seis sorteios mecânicos, independentes entre si, gera um número como 444.555, achamos que alguma coisa deve estar errada.

A verdade é que toda as vezes que alguém compra um bilhete de loteria, ou aposta na Mega-Sena, quem está em jogo não é o pensamento lógico, e sim o pensamento mágico. O pensamento lógico nos aconselharia a usar aquele dinheiro para comprar um sorvete ou um gibi. Alguma coisa que nos desse um resultado imediato, um fim mais concreto. 

Quando apostamos, temos a crença de que uma combinação cósmica de circunstâncias favoráveis fará com que as bolinhas certas saiam na ordem certa, trazendo-nos a fortuna. É bem verdade que a cada semana esta expectativa é desfeita, mas assim como um cientista faz mil experiências mal sucedidas até obter o resultado que procura, um indivíduo que se rege pelo pensamento mágico acredita que o alinhamento-dos-planetas ou coisa parecida irá ocorrer da próxima vez. E compra um bilhete com as datas de nascimento dele, da mulher e dos filhos.






0405) Os bandidos regenerados (7.7.2004)




("Tiradentes esquartejado" de Pedro Américo)

D. João VI ficaria muito surpreso se pegasse uma máquina do tempo, visitasse o século 21, e descobrisse que o Brasil está cheio de estátuas em homenagem a Tiradentes, e nenhuma em homenagem a ele (se existir me avisem, porque desconheço). Pensaria o bom soberano: “Varei! O sujeito é imperador e não ganha uma estátua; quem ganha estátua são os marginais, os subversivos”. Teria razão em pensar assim. A Roda da História é como a Roda da Fortuna do Tarot, onde há sempre alguém subindo e alguém descendo, de acordo com o ir e vir das marés da política. O herói de hoje é o tirano de amanhã, e vice- versa. Tiradentes foi esquartejado, e teve seus despojos pregados ao longo das estradas de Minas para servir de advertência. Esse corpo despedaçado aparece hoje simbolicamente restaurado: refundido em chumbo, recomposto em mármore.

O mesmo vale para Lampião, que ainda hoje desperta no Nordeste reações extremadas de veneração e ódio. O mito de Lampião encarna virtudes de que o nordestino se envaidece: coragem, obstinação, esperteza, brabeza de macho, etc. Depois que o indivíduo é reduzido a pó e história, o Mito se limpa de suas imperfeições humanas, e se cristaliza muitas vezes como um conjunto de qualidades que talvez surpreendesse até o próprio objeto desse culto.

As estátuas de Tiradentes são hoje uma unanimidade no Brasil: ninguém questiona seu merecimento. Se alguém decidisse erigir uma estátua a Carlos Lamarca ou a Marighella, terroristas mortos pela ditadura militar, certamente haveria protestos aqui e acolá, mas sem dúvida grande parte da imprensa (e do Congresso Nacional) seria a favor. Depois que a ditadura se desmanchou em sua própria incompetência e corrupção, a opinião pública ficou liberada para achar que esses indivíduos não são criminosos, são heróis. Talvez heróis que tenham escolhido uma linha equivocada de ação política, mas heróis pela coragem de lutar uma luta desigual e suicida.

Fico me perguntando que caminhos percorrerá a evolução da consciência social brasileira. Quem serão os heróis do nosso tempo que merecerão estátuas em praça pública, nome nas praças, efígie em selos ou moedas? Claro que certos figurões (Brizola, Lula, Fernando Henrique, etc.) têm grandes chances de ganhar homenagens assim. Mas, quem serão as zebras? Quem serão os bandidos regenerados do futuro, quem serão os ex-marginais a terem sua imagem redimida? Não creio que gangsters como Fernandinho Beira-Mar ou Escadinha venham a ganhar tais honrarias, mas lembrem-se, tem gente que defende uma estátua para Lampião, que as elites brasileiras viam com os mesmos olhos com que vêem hoje os alcapones do tráfico. Os caminhos da História são surpreendentes. Ah, eu trocaria 24 horas de minha vida atual pela chance de viver essas 24 horas no ano 2104, andar pelas praças, olhar os mapas de nossas cidades, recensear as homenagens, e refletir um pouco sobre as crueldades e as ironias que o futuro nos reserva.


0404) Abaixo o prazer (6.7.2004)




("El Hedonismo" de Ana Roldán)

Em artigos recentes meti o porrete em vacas sagradas como a Liberdade e a Amizade. Apertem os cintos, porque hoje vou desancar o Prazer, este conceito que, usado de uma maneira distorcida e maléfica, está estragando o mundo. Não pensem que sou masoquista ou que quero transformar a vida num vale de lágrimas ou num muro das lamentações. O prazer é importantíssimo na minha vida. É tão fundamental quanto, digamos, o café recém-passado. Mas minha mãe sempre disse, sabiamente, que “tudo demais é veneno”. E prazer demais é o que está envenenando nossos conceitos, nossa sociedade, nossa vida em comum. Erigiu-se o prazer como um Bem em si, como a finalidade principal da vida, como um direito de todos. Até aí tudo bem, mas parece que a primeira consequência que todo mundo tira disto é que o Prazer é um fim que justifica quaisquer meios. O que vemos, então, é uma busca frenética e desenfreada do prazer a todo custo.

É a busca do Prazer, por exemplo, que alimenta toda a indústria da corrupção, que faz do Brasil um dos países onde mais se rouba no mundo. Cada máfia administrativa que é desmascarada pela imprensa e pelo Ministério Público tem à frente uma dúzia de indivíduos que à primeira vista parecem sequiosos de fortuna, de poder. Mas se a gente observar bem, eles são apenas a ponta de um iceberg de parentes, amigos e apaniguados que prosperam às suas custas. O dinheiro acumulado nos golpes e nas falcatruas tem como destino final viagens para Miami, noitadas em Las Vegas, cruzeiros pelo Caribe, ou sei lá como é que esse povo se diverte. O fraudador ou o desviador de verbas é um dos grandes acionistas da indústria do lazer, da boa-vida, da ostentação, do gasto supérfluo. (Sim, eu sei – gente honesta também gosta disso, mas tenho a impressão de que gente trambiqueira gosta muito mais.)

E o que dizer da indústria da droga? Algumas pessoas usam drogas por modismo, outras por status; mas a esmagadora maioria usa por prazer. A droga proporciona um prazer intenso, instantâneo, sem compromisso, e facilmente repetível – desde que você tenha grana para comprá-la indefinidamente. É este último quesito que transforma a droga num problema social, porque se o sujeito quisesse apenas entupir-se dela até cair duro era problema só dele.

Criamos uma civilização baseada no prazer, e não há nada mais egoísta do que o prazer, ou pelo menos, o tipo de prazer instantâneo que nossa civilização estabeleceu como modelo – na publicidade, e na indústria do lazer e do entretenimento. Criamos uma civilização suicida. Em 1958, o psicólogo James Ochs prendeu um eletrodo aos centros de prazer do cérebro de um rato, os quais eram estimulados quando o rato apertava uma barrinha metálica na jaula. Houve o caso de um rato que apertou a barra numa média de 2 mil vezes por hora, durante mais de 24 horas, sem parar para comer ou beber, até cair de exaustão. Guardadas as devidas proporções, é o que as elites brasileiras estão fazendo.




terça-feira, 20 de maio de 2008

0403) Treze x Campinense (4.7.2004)










De passagem por Campina Grande dias atrás, acabei indo ao Amigão no domingo para ver a decisão do campeonato paraibano entre Treze e Campinense. Eu não pisava no estádio há uns quinze anos. Como moro longe, minhas idas a Campina nem sempre coincidem com algum jogo que valha a pena ver. Quando eu tinha 15 anos ia ver até Treze x Red Cross, ou Treze x Vovozinhas, mas a passagem das décadas nos torna mais exigentes. O jogo foi bom, o resultado (2x2) foi justo, e o Treze, que precisava vencer por 2 gols de vantagem, poderia ter sido campeão se tivesse forçado mais depois que abriu o placar. Bobeou, e deixou a Raposa empatar com um pênalte duvidoso. No segundo tempo o goleiro deu sua segunda saída em falso e levou um gol por cobertura (que me lembrou um gol que o rubronegro Nogueira fêz em 1964 no Treze, em outro 2x2, no Estádio Municipal). Quando o Galo voltou a empatar, já não adiantava muita coisa.

Disseram-me que há muitos anos Treze e Campinense não decidiam um título estadual, e vejo na decisão deste ano um prenúncio de que o futebol da Serra vai viver dias melhores. Existe no futebol brasileiro uma corrente de pessoas que quer acabar com os campeonatos estaduais, dando ênfase às disputas das séries B e C do campeonato brasileiro. Nada tenho contra estas séries, mas sou contra o fim dos estaduais. Tirem pelo exemplo do campeonato carioca, que acompanho religiosamente todos os anos. As rivalidades locais ainda são um poderoso fator de mobilização da torcida e dos times, o que resulta em estádios cheios e jogos bem disputados. Aqui no Rio, quantas vezes vi o Flamengo estropiado, deficitário, caindo pelas tabelas, reerguer-se durante o campeonato carioca e ganhar uma sobrevida que, bem ou mal, o mantém respirando até o final do Brasileiro. Como diz um flamenguista amigo meu, ganhar do Real Madrid pode ser “a glória”, mas ganhar do Vasco não tem preço.

Treze x Campinense é o grande clássico do futebol paraibano, que me desculpem os torcedores do Botafogo, do Auto Sport e das demais equipes. É um jogo que faz a cidade inteira ficar na ponta dos cascos, e produz uma corrente elétrica que faz a atmosfera da Serra crepitar de excitação. É o nosso Fla-Flu, o nosso Ba-Vi, o nosso Gre-Nal. Quando voltei a ver estes dois times em campo, num estádio cheio de bandeiras ao vento e com os gritos de guerra entrecruzando-se no ar, senti um nó na garganta, e não foi um nó de saudosismo. Pra falar a verdade, eu nem me lembrei que já tinha passado por tudo aquilo antes, mais de cem vezes. Era como se fosse a primeira. Achei a torcida do Treze meio contida, talvez com pouca confiança na “missão impossível” da equipe. A do Campinense estava previsivelmente eufórica, bradando seus slogans ensaiados, parecendo um bloco de axé-music, com seus abadás e suas mamãe-sacode. É bonita a nossa festa, pá. A Raposa estragou o final, mas quem tem com que me pague não me deve nada.

0402) Valei-me meu São João (3.7.2004)



Forró", gravura de Paulo Brabo,

http://www.baciadasalmas.com/

Será que o forró vai se acabar? Acho que a única resposta para isto é a fórmula zen de Mestre Fuba: “Penso que sim, mas acho que não”. É cedo para dizer. Têm surgido cantores e compositores que enriquecem a música cultivada por Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Marinês, Luiz Gonzaga. Tenho aqui do lado, sobre a mesa, CDs que trouxe de minhas recentes viagens ao Nordeste: instrumentistas como Edmilson do Pífano e Silveirinha lançando seus primeiros discos, cantores como Santana e Maciel Melo reafirmando trabalhos anteriores. Por falta de talentos é que não vai ser.

Por outro lado, toda vez que eu boto o pé no Nordeste a primeira coisa que faço é ficar olhando os out-doors que anunciam os shows juninos. Aí começa a praga. É Banda Isso, Banda Aquilo... Quando alguém chama um grupo musical de “banda” você pode apostar sua carteira, com documentos e tudo, como aquilo não tem nada a ver com forró. A programação junina do Nordeste virou uma espécie de Praça da Apoteose da axé-music e dos sertanejos paulistas. Se um turista vier ao Nordeste neste período do ano, vai voltar para a Escandinávia dizendo que os maiores ídolos do forró nordestino são Leonardo e a dupla Zezé de Camargo & Luciano.

Vejam bem: não sou inimigo desse pessoal. São meus colegas. São cantores e compositores profissionais, que ganham a vida honestamente. Não gosto da música que eles fazem, mas gosto é gosto. Minha crítica não tem a ver com qualidade, e sim com adequação ao período junino. Por mim eles poderiam cantar na Paraíba todo mês, de janeiro a maio, e de julho a dezembro. Por que não? Têm seus fãs, têm seu público, que é numeroso e tem todo o direito de se divertir cantando as canções com que se identifica. Por mim tudo bem. Mas a presença desses artistas numa programação junina é um erro. Não é um erro deles, porque seu trabalho é oferecer seus shows a quem quiser contratá-los. O erro é de quem os contrata. É o mesmo que promover um baile de carnaval e contratar a Filarmônica de Berlim para tocar Beethoven.

Sou contra a presença dessas Banda Não Sei O Quê no São João como seria contra a presença de artistas que admiro: Milton Nascimento, Chico Buarque, João Gilberto. Não têm nada a ver com forró, então o que diabo iriam fazer numa programação junina? Se Bob Dylan fosse escalado para cantar no Parque do Povo em junho, eu diria: “Sou contra. Pra cantar no São João, eu prefiro Flávio José.”

O mês de junho deveria ser, em todo o Nordeste, uma reserva de mercado para a música regional. Nisto não entra nenhum chauvinismo, nenhuma xenofobia: que se usem os outros onze meses do ano para mostrar de tudo, de rock americano a vocalistas búlgaros, de sertanejos paulistas a reggae da Jamaica. Mas não custa nada reservar o mês de junho para lembrar aos nordestinos o que eles são de verdade, por baixo das roupas de butique, dos modismos de TV e das gírias de shopping center.

0401) Sob o domínio do medo (2.7.2004)





Quando eu tinha dez anos, lia muitas revistas de terror em quadrinhos. Houve uma história que me impressionou muito: um explorador voltava da África meio adoentado, por ter sido picado por uma aranha venenosa. Tempos depois, suas unhas das mãos começaram a inchar e a doer muito. Manchas negras apareceram embaixo delas; as unhas incharam até despregar-se parcialmente dos dedos, e dali de baixo emergiram aranhas negras, vivas, iguais à que tinha picado o explorador. Esse ciclo monstruoso de reprodução durou até que ele suicidou-se. Tempos depois, levei uma pancada num dedo que criou o famoso calo-de-sangue. Não descreverei aqui as noites de horror que passei em claro, olhando para aquilo, esperando a primeira aranha brotar.

Cresci. Leituras imoderadas dos folhetins franceses de Ponson du Terrail e Michel Zevaco me conscientizaram dos perigos de ser enterrado vivo devido a um ataque cataléptico. Como o personagem de “O enterramento prematuro”, de Edgar Allan Poe, passei anos tentando planejar táticas para entrar em contato com a superfície, caso um belo dia despertasse no interior escuro e abafado de um ataúde. Num dos dicionários do meu pai descobri nome desse meu medo: tafofobia. Não melhorei nada após ler um conto (“Crime no túmulo”, de Edmond Hamilton) em que um cara trabalha num parque de diversões como enterrado vivo (num ataúde metros abaixo do solo, com janela de vidro e respiradouro) e um inimigo acha um jeito de fazer uma cascavel descer lá pra baixo.

Aos 15 anos, lendo um daqueles livrinhos policiais da coleção “FBI” (eu sonhava em ser agente do FBI quando crescesse), fiquei sabendo de um golpe mortal, que é quando se atinge a vítima no “apêndice xifóide”, aquela pequena protuberância óssea na parte inferior do esterno, onde as costelas de juntam no meio do tórax. Dizia-se no livro que bastava quebrar aquela ossinho para o sujeito morrer instantaneamente, pois a ponta penetrava no coração. Perdi a conta dos gols que deixei de marcar nas minhas peladas subseqüentes: eu tinha dificuldade em matar a bola no peito, com medo que ela quebrasse meu apêndice xifóide.

Hoje, com mais de cinquenta anos, enfrento a velhice com destemor. Faço meu checape anual. Tenho pequenos problemas: o colesterol-bom está baixo (falta de exercício). Tenho uma calcificação na coluna, que às vezes incomoda pra caramba. Devido a fatores genéticos e alimentares, estou no grupo dos que correm o risco de morrer de câncer ou de enfarte. Se tenho medo de morrer? Morro de medo. Mas creiam-me, já superei problemas maiores. Qualquer indivíduo que já leu quantidades industriais de textos de Lovecraft, Kafka, Benoit Becker, Stephen King ou Bram Stoker fica – como direi? – meio realista para com os males da vida real. Existem, e são temíveis. Mas nada é mais temível do que o mal que só existe na nossa imaginação.




0400) Chico Buarque de Hollanda (1.7.2004)



Em minha recente passagem por João Pessoa, autografei meu livro Páginas de Sombra no Parahyba Café, numa noite em que, por misteriosa sincronicidade, estava marcado um recital de homenagem a Chico Buarque de Hollanda, que está completando 60 anos. Como eu também estou me aproximando dessa idade, achei por bem dar uma força ao novo sexagenário da praça, por solidariedade prévia, e cantei ao violão algumas das primeiras músicas de Chico que aprendi ao violão, numa adolescência que já me parece tão remota quanto a era dos assírios e caldeus.

O Globo fêz um caderno especial sobre Chico, onde há uma enquete sobre a música preferida de cada um dos entrevistados. Se eu tivesse de indicar uma, indicaria “Olê Olá”, uma canção que muita gente não deve conhecer. É do primeiro disco lançado por Chico, em 1966, e foi provavelmente a primeira música que o vi cantar, em algum programa de TV, na roupa e na pose obrigatória da época: black-tie, perna direita apoiada no banquinho, violão em punho. Era assim que ele entoava os primeiros versos da canção: “Não chore ainda não, que eu tenho um violão, e nós vamos cantar... Felicidade aqui pode passar, e ouvir, e se ela for de samba há de querer ficar...” É a melhor música de Chico? Não interessa. O conceito de “o melhor” é um dos mais desnecessários em arte. A música preferida é aquela com que a gente se identifica mais.

Um aspecto do Chico compositor que me parece pouco abordado é o que eu chamaria “as canções construções”, canções que fazem brincadeiras com a estrutura do conjunto letra-melodia. (Não sei se vocês já perceberam que fazer letra de música é muito mais difícil do que fazer poema de livro. Por isso que a esmagadora maioria das letras de música é tão ruim.) O exemplo mais óbvio é “Construção”, com sua estrutura de frases recorrentes, sua obrigatoriedade de conclusão com palavras proparoxítonas (que servem como um enriquecimento do conceito de rima) e depois o rodízio destas palavras, na repetição dos versos.

Um samba pouco conhecido mas brilhante é “Corrente”: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente / Dizendo realmente o que é que eu acho...” A letra é um conjunto de estrofes de 2 versos (1+2, 3+4, 5+6, etc.), e a partir da metade os versos são repetidos na mesma ordem, mas com outra conexão (2+3, 4+5, etc.), o que altera por completo o sentido da letra, sem que uma só palavra seja mudada. O que era uma letra de louvor ao samba torna-se uma letra crítica (a música é de 1976). Curiosa também é a estrutura de “Pelas tabelas”, em que ele usa a última sílaba do último verso como primeira sílaba do primeiro verso da estrofe seguinte (como ocorre naquela musiquinha, “Coelhinho, se eu fosse como tu...”). Chico fêz letra bilingüe (“Joana Francesa”), fêz duas letras para a mesma música (“O que será”)... ninguém na MPB fêz tantas experiências (e com tal qualidade) com as possibilidades da letra da canção popular.

0399) Mário Schenberg (30.6.2004)



Costuma-se dizer que alguns dos homens mais influentes na história da humanidade nunca escreveram um livro: Sócrates, Buda, Jesus Cristo. Para nossa civilização tão dependente da palavra escrita parece difícil ser um Mestre sem ter produzido um calhamaço de ensinamentos, mas os exemplos são numerosos. Um caso bem curioso e bem brasileiro é o do físico Mário Schenberg, um dos nossos cientistas mais anti-convencionais e mais influentes. O pensamento de Schenberg, generosamente distribuído com seus alunos ao longo de décadas de ensino e pesquisa, nunca foi posto no papel por ele próprio. Schenberg não escreveu livros, mas depois de sua morte em 1990 seus discípulos têm se dedicado à tarefa de organizar suas idéias, sua visão do mundo e do papel do cientista, em livros como Pensando a Física e Pensando a Arte (Nova Stella Editorial), e Voar Também é com os Homens, organizado por José Luiz Goldfarb (Edusp).

Apesar de ter se dedicado por décadas à vida acadêmica, Mário Schenberg nunca foi um intelectual fechado num gabinete, e é um dos poucos brasileiros de quem pode-se dizer que se dedicaram com a mesma intensidade à Ciência, à Política e à Arte. Foi eleito deputado pelo Partido Comunista; cassado, impedido de lecionar, passou anos ganhando a vida como crítico de arte. Nos três domínios em que atuou, Schenberg sempre foi um sujeito imprevisível, com idéias próprias que muitas vezes iam de encontro à ideologia dominante. Não são muitos os cientistas capazes de dizer, como ele: “Tenho experiências extremamente estranhas, sobretudo experiências de identificação com pedras, árvores e plantas. Essa experiência às vezes é muito intensa, muito violenta, especialmente com as árvores e as pedras. Acho que tenho uma capacidade de viver certas experiências sem recalques, experiências que talvez em outras pessoas estejam recalcadas.”

Suas aulas eram muitas vezes conferências improvisadas, sobre um assunto escolhido de antemão. Em vez da costumeira aula previamente preparada na “ficha”, ele costumava anunciar um tema e começar a discorrer sobre ele, em voz pausada, com os olhos semicerrados, como se estivesse visualizando a extensão inteira do assunto que abordava e escolhendo, meio de improviso, os aspectos que naquele momento lhe interessava destacar, para aquele grupo específico de alunos. Dizia ele: “Sou uma pessoa de tendências intuitivas, não sou de muito raciocínio. Comporto-me como a minha intuição me sugere, desde a maneira de dar uma aula. Posso ter preparado a aula e, ao chegar à sala, mudar completamente, porque na hora surgiu outra idéia, e vou atrás daquela do momento, que me fascina mais.” É um tipo de aula que, decerto, só funciona com um grupo de alunos capacitados para acompanhar o professor nesses vôos de imaginação em busca da solução de um problema. Schenberg não era, certamente, o professor indicado para aqueles alunos que erguem o dedo e perguntam: “Vai cair na prova?...”

0398) O telefone de Gilberto Braga (29.6.2004)



(A Arca Russa, de Alexander Sokurov, Rússia, 2002)


Numa entrevista de semanas atrás, Gilberto Braga, o autor de “Celebridades”, comentou: “Recentemente eu fui criticado porque alguns personagens procuram outros pessoalmente quando na vida real se telefonariam. Respeito a crítica, mas não me acho errado. Se a gente escrever realisticamente, cada personagem vai passar metade de seu tempo ao telefone.” GB está coberto de razão. Discute-se muito o que é ou não realista na arte da narrativa, mas raras vezes se desce a este nível de detalhe quase imperceptível. E é justamente daí que brota grande parte da impressão de realismo passada ao leitor ou espectador.

O Realismo é uma otimização do que acontece na vida real, e não uma transposição passiva. É uma otimização no sentido de ganhar tempo, de simplificar ações a bem da fluência narrativa, ou de omitir os momentos em que nada acontece. Esta otimização também implica em abrir mão de situações verossímeis, mas entediantes, e substituí-las por situações que não são bem o que aconteceriam na vida real, mas rendem mais em termos dramatúrgicos. O próprio GB justifica sua escolha dizendo que faz assim “para que a cena saia mais agradável de se ver.”

A Arte da Narrativa (cinema, teatro, romance, etc.) está para a vida real assim como os “Melhores Momentos” estão para os 90 minutos de um jogo de futebol. A Narrativa é sempre um encadeamento do que teria acontecido de relevante naquela história, entremeado com alguns momentos banais para dar efeito de ritmo e de contraste. Nunca é uma transcrição ao pé da letra da vida real. Claro que já se fizeram muitas tentativas de “realismo ao pé da letra”. Há filmes em tempo real, ou seja, filmes que duram na tela o mesmo tempo dos acontecimentos narrados; mas mesmo isto só é conseguido subindo-se a um degrau mais alto de artificialismo. Matar ou Morrer, o faroeste clássico de Fred Zinemann, é um filme minuciosamente escrito e montado de propósito para durar uma hora e meia, o tempo exato de duração da história. O recente A Arca Russa mostra um plano-seqüência de uma hora e meia ao longo do Museu Hermitage, mas tudo que acontece ali mostra uma orquestração de esforços de complexidade quase inimaginável. Ou seja: aquilo não é a-vida-como-ela-é. É tudo muito menos realista do que “Celebridades”.

Um dos paradoxos mais curiosos da Narrativa é esta necessidade de artificializar as coisas para que elas pareçam naturais. Vemos um filme com olhos diferentes dos que usamos para ver a rua por onde caminhamos todos os dias. Se os personagens da novela ficassem falando ao telefone o tempo todo as cenas não seriam apenas menos agradáveis de ver: elas nos passaram a impressão de uma realidade diluída, frouxa, sem dinamismo. Esperamos de uma Narrativa, mesmo a de um novelão de TV, uma certa compactação de ações, de tempos e de espaços. Narrar é cortar 90% e encadear os 10% que nos dêem a ilusão de ter visto o total.

0397) O projeto “Gato infinito” (27.6.2004)



A Internet tem coisas que ninguém mais duvida. Mike Stanfill, um ilustrador e designer residente em Dallas (Texas), criou o projeto “The Infinite Cat”, uma dessas simpáticas excentricidades que não poderiam existir num mundo desprovido da rede eletrônica. Mike descreve a si mesmo como um cara competente em “qualquer coisa que envolva um computador e uma imaginação ativa”. Em seu saite pessoal, ele fornece amostras de seu trabalho gráfico, e um link para o Projeto do Gato Infinito.

A fórmula do projeto, pelo que pude ver, é bem simples. Um cara mandou para Mike uma foto digital de seu gato, “Frankie”, ao lado de uma flor. Outro amigo fotografou seu próprio gato olhando essa foto de “Frankie” no monitor. Outro fêz a mesma coisa com a foto deste segundo gato, e aí começou a corrente. Cada pessoa recebe a foto do gato anterior, coloca-a em seu próprio monitor, e fotografa seu próprio gato olhando para ela. Mike define o projeto de uma maneira simples: “Gatos olhando gatos olhando gatos”. Em algumas das fotos que vi dá para ver até seis gatos olhando-se em série, cada qual menor do que o anterior, desaparecendo num infinito de caixas dentro de caixas. Pode haver fotos com maior alcance, mas confesso que não vi tudo. No dia em que escrevo estas linhas, o Projeto está no Gato 158, e não tenho tempo para conferir.

O saite fica em: http://www.infinitecat.com/ . Cada foto de um gato está numa página individual, com links que você pode clicar para ver o “Gato Anterior” e o “Próximo Gato”. Direis agora: “E pra que diabo isso tudo?” E eu responderei: não faço a menor idéia, até porque detesto gatos (ver “Gatos e cachorros”, 8.4.2004). Acho uma bobagem e uma perda de tempo, mas a minha mente racionalista e pragmática me adverte que não é bem assim. É uma atividade lúdica – algo que se faz por prazer, por diversão, e pela sensação de estar produzindo algo que tem uma dimensão, embora mínima, de interesse humano, de beleza, e de habilidade técnica. E uma criação que preencha estes três requisitos não pode nunca ser totalmente inútil.

Isso me lembra a Matemática. A Matemática é uma linguagem abstrata que vale apenas pela beleza e pela eficiência técnica dos resultados que atinge, e dos raciocínios que desenvolve. Para que vai servir um teorema, uma fórmula de solucionar um trinômio? O matemático não sabe. Mas um dia acaba servindo. A história da Física, por exemplo, está repleta de casos em que um conjunto de fórmulas matemáticas existentes há anos, e para as quais ninguém descobrira uma utilidade prática, revela-se crucial para descrever e interpretar fenômenos do mundo sub-atômico ou da formação das estrelas. O projeto de Mike Stanfill coloca lado a lado o gato (graça felina, animalidade intensa, mistério, imprevisibilidade, crueldade, beleza) e o computador (frieza tecnológica, precisão, aura futurista, poder de manipulação do Real). Podem ser o Yin e o Yang da síntese final do Universo.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

0396) A palavra escrita (26.6.2004)


(cartaz de "O milagre de Anne Sullivan")

O Brasil está passando direto da cultura oral tradicional para a cultura eletrônica, sem passar pelo estágio da cultura escrita. Muita gente foi analfabeta a vida inteira. Toda a sua troca de informações se deu de forma oral, através de contatos diretos: falando, e ouvindo. (Estou deixando de lado, para simplificar, outras formas de transmissão de informação – também importantes, mas minoritárias em relação à palavra falada: a linguagem gestual, visual, etc.). Aí surgem o rádio, o disco, a televisão. Estes meios parecem uma extensão natural desse mundo anterior onde a gente vê, ouve e fala, mas para chegar a ele as pessoas estão pulando um estágio: o da palavra lida e escrita. Fica um buraco. E sabe Deus o tamanho do problema que isso vai causar mais na frente.

Ler é um negócio danado de difícil, e danado de enriquecedor. No livro “Tarzan” de Edgar Rice Burroughs, há um capítulo em que Tarzan, adolescente, encontra na floresta uma cabana onde descobre alguns livros ilustrados, que chamam sua atenção por causa das figuras de animais. Ele vê embaixo de cada ilustração um grupo de formiguinhas enfileiradas. Depois nota que, quando a figura se repete, repetem-se também as mesmas formiguinhas, na mesma ordem. Ele acaba decorando as formiguinhas, a tal ponto que, quando as vê, ele lembra qual a figura a que elas se referem: e começa a associar as formiguinhas “b-o-y” à imagem de um menino. É uma descrição ingênua, mas, pelo menos para o menino que eu era, reconstituía o “flash” mental da cognição linguística, de quando um mero agregado de sinais passa a significar, passa a ser uma coisa-em-si e ao mesmo tempo a evocar uma outra coisa.

É crucial para uma mente humana ser capaz de manipular uma linguagem de sinais, um código à base de convenções. Outro momento emocionante na conquista da palavra é a cena do filme O milagre de Anne Sullivan, de Arthur Penn. Anne Sullivan foi a professora que cuidou de Helen Keller, garota surda, muda e cega de nascença. A menina era um verdadeiro capeta: ninguém conseguia se comunicar direito com ela, que vivia em casa quase como um bicho. Anne Sullivan passa o tempo todo tentando fazer com que Helen entenda a linguagem manual de sinais, em que os dedos, pressionados contra a mão da outra pessoa, formam “palavras”. A certa altura do filme, acontece a famosa cena da bomba dágua: as duas estão tirando água de um poço, num dia quente, e quando Helen molha a mão na água fria, Anne faz com os dedos os sinais que significam “água”. A menina entende, pela primeira vez, que aqueles movimentozinhos de encontro a sua mão estão associados àquela coisa fria e molhada que ela está tocando. E sai de casa afora, arrastando a professora pela mão, e perguntando o “nome” de tudo em que toca. É uma cena comovente, de dar lágrimas nos olhos. (Nunca vi esse filme, mas não preciso ter visto a cena: eu li num livro.)

0395) Eu não me lembro mais (25.6.2004)




(Salvador Dali, "A persistência da memória")

Um dos livros de memórias de Georges Perec chama-se Je me souviens (Eu me lembro). O de Daniel Filho, o conhecido diretor da TV-Globo, chama-se Antes que me esqueçam. O humorista Jaguar escreveu Ipanema: se não me falha a memória

Não duvido que, se saíssemos pesquisando por aí, seria possível enfileirar uma estante inteira de títulos semelhantes, todos eles nos dando a sensação de terem sido escritos numa corrida contra o relógio ou contra o calendário, uma corrida para evitar que as lembranças de seus autores sumissem num processo fatal e irreversível de evaporação.

Em seu filme Roma, Fellini nos mostra uma escavação de metrô no centro de Roma que desemboca casualmente numa galeria soterrada, do tempo dos Césares. Os operários e engenheiros penetram naquele túnel subterrâneo com suas lanternas, maravilhando-se diante das belas pinturas que enfeitam as paredes. Daí a algumas horas, no entanto, percebem com terror que a entrada do ar fresco e o calor das lâmpadas está fazendo desaparecer aquela tinta que se mantivera intacta durante séculos. 

Todos correm, gritando por fotógrafos e cinegrafistas, pedindo que venham logo para registrar o que resta; e enquanto ouvimos a balbúrdia dos gritos e chamados vemos que as pinturas esmaecem, desbotam, apagam-se lentamente.

Assim é a nossa memória, mesmo a dos fatos mais marcantes. No momento em que as coisas acontecem, tudo é tão vívido, tão real! Tudo nos dá a certeza absoluta de que jamais esqueceremos. 

Lembro-me de uma noite, uns dez anos atrás, no Circo Voador, quando houve uma coletiva musical de artistas nordestinos (Alceu Valença, Fagner, Lenine, inúmeros outros) em benefício da Feira de São Cristóvão. Eu também cantei nessa noite, e houve um momento, no camarim, em que eu estava ao lado de Zé Calixto, o gênio do fole-de-8-baixos, quando entrou Hermeto Paschoal, que se dirigiu a ele: “Você é Zé Calixto? Muito prazer, eu sou Hermeto Paschoal, e sou o seu maior fã.” 

Os dois conversaram durante meia-hora na minha frente, e eu decorei bem direitinho todos os assuntos deste encontro histórico. Conversa vai, cerveja vem, a noite acabou, eu voltei para casa e... o que foi que falaram? Não lembro mais. Não anotei. Evaporou.

Uma vez perguntaram a Hermínio Bello de Carvalho alguma coisa a respeito da vida de Pixinguinha, de quem ele foi grande amigo. E Hermínio comentou, com uma ponta de melancolia: “Pois é, rapaz... eu passei uns 20 anos pensando em fazer essa pergunta a Pixinguinha, mas nunca tive a chance. Agora é tarde.” 

É assim que passam os momentos da nossa vida. Contemplamos encontros inéditos, presenciamos fatos históricos, vivemos momentos que um dia teríamos orgulho de contar para os nossos netos... mas às vezes nada fica desses momentos. 

Nossa memória são painéis imensos feitos de fumaça, à espera de uma câmara polaróide que os registre. Por isso eu aconselho: anotem, rapaziada. Lápis e papel na mão. O tempo não pára.







0394) Os fãs escritores (24.6.2004)


No começo diziam que o uso de computadores e o hábito de viajar na Internet iriam tornar os nossos jovens ainda mais iletrados do que são. Essa infundada lenda parece ter origem no fato curioso de que as pessoas que nunca chegaram perto de um computador pensam que um computador é movido a matemática. Para eles, um computador é uma calculadora eletrônica onde também é possível jogar joguinhos como come-come, batalha-naval e paciência. O que estes bem-intencionados leigos ignoram é que os computadores de hoje são máquinas movidas a texto, e que nunca, jamais, em tempo algum, os nossos jovens (não falo os da Paraíba, falo os do Planeta Terra) produziram tanta quantidade de texto. Escreve-se hoje, graças aos computadores e à Internet, muito mais do que se escrevia há poucas décadas.

Um subproduto interessante dessa frenética atividade é o que se chama de “fan fiction”, a ficção produzida pelos fãs de heróis ou séries da cultura de massas. Talvez tenha começado com as revistas de pulp fiction dos anos 30-40, onde os fãs de ficção cienífica sempre foram um tantinho-de-nada mais espertos e mais diligentes do que os demais. Foi se propagando para séries específicas, como Star Trek e Star Wars, e hoje abarca tudo que faz parte da cultura de massas: livros, cinema, TV, quadrinhos, jogos.

É tudo muito simples. Existe no mercado um número de limitado de histórias de, digamos, Sherlock Holmes. Depois de ler tudo que há para ler, os fãs do velho Sherlock começam a escrever suas próprias histórias tendo o detetive como protagonista. Neste caso não há problema porque a obra de Conan Doyle já caiu em domínio público. Mas no caso de heróis cuja imagem é protegida por direitos autorais, isto significa que os fãs não podem publicar profisionalmente suas histórias. Durante anos eles se resignaram a mimeografar e xerocar seus textos, passando-os de mão em mão, usando o Correio. Aí de repente surgiu a Internet. Saites e homepages começaram a pipocar por toda parte.

Uma pequena mas eficaz porta de entrada, para quem quiser arriscar um olho nesse universo, é o saite Fan Fiction (http://www.fanfiction.net/). São milhares de historinhas, curtas, longas, bobas, espertas, mal-feitas, razoáveis, tendo como protagonistas os heróis de universos como Senhor dos Anéis, Indiana Jones, o Mochileiro das Galáxias, Bridget Jones, e muito mais. É curioso observar que neste saite há 464 colaborações na rubrica “Shakespeare”, 102 em “Jane Austen”, 35 em “H. G. Wells”, 64 em “Charles Dickens”, 1.269 em “a Bíblia”, 106 para “Homero”. Claro que não se compara às 131.376 colaborações sobre “Harry Potter”, mas vocês queriam o quê? Não se exija dessa ficção amadorística a qualidade dos artistas que a inspiram. É fundo de quintal. É futebol de pelada. A grande literatura não brota do nada. Brota de um caldo literário espesso, temperado, variado, e que ferva na panela de pressão de uma sociedade cheia de opções.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

0393) Em defesa do faroeste italiano (23.6.2004)



A Editora Rocco está lançando uma coleção sobre faroeste, com romances de Elmore Leonard, competente escritor de livros policiais que também já escreveu algumas histórias de “western” já filmadas, como Hombre e Valdez vem aí. Um livro que aconselho aos fãs do gênero é Publique-se a lenda: a história do Western, do pesquisador A. C. Gomes de Mattos, que lançou recentemente, também pela Rocco, livros sobre o filme “noir” e sobre o chamado “filme B”. Neste volume sobre o western, Mattos nos dá um resumo histórico de 100 páginas, seguido de outras 100 com dados sobre mais de duzentos títulos. Foi um prazer encontrar breves sinopses de alguns filmes vistos na infância: A última carroça, O homem dos olhos frios, O irresistível forasteiro, À borda da morte, O último bravo, Um certo capitão Lockhart... Estou cheio de trunfos para meu próximo encontro com Ivan Cineminha.

Isto me trouxe à mente um dos mais ferrenhos debates sobre cinema que já presenciei. Assunto hoje morto e enterrado, mas cujo espírito não custa nada invocar aqui, para que nos traga ensinamentos do Além. Foi a polêmica sobre o faroeste italiano que nos anos 1960 invadiu nosso mercado. Até então, só quem fazia western eram os americanos. Nada mais natural: era a história deles, os heróis deles, as paisagens deles. Quem se metia a imitá-los dava não só com os burros nágua, mas também os cavalos, os carroções, a caravana inteira. Eram os criadores, mestres e proprietários de um gênero de filme – coisa rara.

Aí de repente chegam uns italianos e começam a fazer uns westerns que a nossos olhos pareciam verdadeiras blasfêmias, verdadeiros sacrilégios. Em vez dos caubóis elegantes do cinema americano, víamos sujeito esmolambados, sujos, com dentes estragados, cuspindo no chão, e provavelmente com o corpo coberto de chatos e piolhos. Em vez de alegorias nobres entre o Bem e o Mal, víamos disputas entre cafajestes e assassinos, ou entre xerifes desonestos e bandidos sanguinários. No faroeste italiano, ninguém era limpo, ninguém era bonzinho, ninguém era nobre. As cidades eram enlameadas. Uma prostituta do saloon não parecia com uma atriz de Hollywood: parecia uma rapariga mesmo.

O faroeste italiano, com todos os seus defeitos, teve uma qualidade: quebrou a máscara de cera do faroeste americano. Injetou vida real num gênero que – só percebemos então – ainda estava coberto por um verniz de heroísmo oficial, de bom-mocismo. Depois dos westerns de Cinecittà, acabou-se a ditadura do caubói limpinho e engomado, do enredo certinho, do saloon cheirando a Bom Ar. O faroeste italiano nos fêz lembrar que a História é suja e cruel, que o mundo rural da América do século 19 não se parecia com um show de Beto Carrero. O gênero redundou em filmes respeitáveis como Era uma Vez no Oeste e O Bom, o Mau e o Feio. E abriu caminho para o western realista de Sam Peckinpah e Clint Eastwood.

terça-feira, 13 de maio de 2008

0392) Os almanaques de Julio Cortazar (22.6.2004)





Este ano de 2004 está sendo considerado um “ano Cortázar” para os admiradores do escritor argentino, que eu por mim considero um dos mais originais, mais profundos e mais divertidos de nossa época. 

Cortázar nasceu em 1914 e morreu em 1984, de modo que nós, seus leitores fiéis, estamos celebrando os 90 anos de seu nascimento e 20 de sua morte. 

Tem uma obra vasta, quase toda já traduzida no Brasil. 

Seus romances (O jogo da amarelinha, Os prêmios, O livro de Manuel, 62: modelo para armar) são em princípio realistas, cheios de personagens marcantes e pitorescos, e pontilhados por discussões políticas e filosóficas. 

Sua fama como escritor foi feita através de seus contos fantásticos, imaginativos, burilados numa linguagem rica e precisa, e reunidos em numerosos livros dos quais meus preferidos são Final do Jogo, Histórias de Cronópios e de Famas, As armas secretas, Bestiário e Todos os Fogos o Fogo (em todos os demais, contudo, há contos magníficos).

Uma parte importante da obra de Cortázar, no entanto, está nos livros que ele chamava carinhosamente de “meus almanaques”. São livros onde se misturam textos curtos (poemas, contos, pequenos ensaios, anedotas, frases soltas) e ilustrações (fotos, desenhos, reproduções de quadros ou esculturas, quadrinhos, cartuns, gravuras antigas, colagens). 

Estes livros apontam para o que, na minha opinião, poderá ser um gênero literário a mais no futuro, abrindo um território livre para uma combinação entre texto, imagem e design gráfico. 

Dos almanaques cortazarianos, acho que só saíram no Brasil Os autonautas da cosmopista, relato de uma viagem de carro que escritor fez com sua terceira mulher, Carol Dunlop, pelas estradas da França, cheio de fotos e curiosidades; e Prosa do Observatório, onde ele mistura fotos que fêz das ruínas de um observatório astronômico hindu e um texto densamente poético onde fala dos ciclos de morte e reprodução das criaturas vivas.

Os almanaques mais interessantes de Cortázar, porém, não foram publicados no Brasil. A volta ao dia em 80 mundos (um trocadilho com o romance do seu xará, Julio Verne) e Último Round são livros com brilhantes textos curtos, principalmente de análise da literatura e da arte em geral; boa parte destes textos saiu no Brasil no volume Valise de Cronópio (Ed. Objetiva), organizado por Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr. 

O mais interessante nestes livros (afora o brilhantismo dos ensaios, principalmente aqueles sobre literatura e jazz) é a maneira sempre criativa como ilustrações que parecem não-ter-nada-a-ver dialogam criativamente com o texto, a tal ponto que quando reencontramos o artigo sem elas ele nos parece melancolicamente empobrecido. Cortázar era fã de cinema, de música e das artes plásticas; seu texto passeia de uma para outra com a fluidez de quem conseguiu atingir o canal subterrâneo em que todas as formas de pensamento criador estão em comunicação total.


[ Nota: "A Volta ao Dia em Oitenta Mundos" foi publicado no Brasil em 2008 pela Editora Civilização Brasileira (2 vols.) ]



0391) Os que perguntam, os que procuram (20.6.2004)



(desenho de Saul Steinberg)

Já se tornou um clichê no cinema, nos livros, na televisão. Um casal de turistas vai por uma cidade estranha, tendo nas mãos um mapa, e tentando achar a Praça ou a Rua Fulano de Tal. Entram numa rua, saem noutra, e nada de chegarem onde querem. 

A mulher puxa o braço do marido: “Zé, vamos perguntar.” E ele, carrancudo: “Não, não precisa, a gente está quase achando.” Ela, à beira das lágrimas: “Amor, vamos perguntar, não custa nada.” E ele: “Tá maluca? E meu amor próprio?” 

Nunca vi um cartum ou uma cena de filme que mostrasse o contrário disto, ou seja, o homem querendo perguntar e a mulher querendo achar por conta própria. É um desses clichês entranhados em nossa cultura, para nos fazer acreditar que os homens agem sempre da forma A e as mulheres automaticamente agem da forma B.

Para mim não é isto que acontece. Essa divisão da Humanidade em “homens” e “mulheres”, na minha opinião, só tem relevância quando se trata do que chamamos eufemisticamente de “os folguedos do amor”. 

No mais, as pessoas se dividem em dois tipos: as que acham a coisa mais simples pedir ajuda a alguém quando estão em dificuldade (e aí entram tanto homens quanto mulheres) e as que acham que a coisa mais natural é continuar tentando por conta própria até encontrar uma solução (idem idem).

Tudo isto pode depender de mais fatores do que conseguirei enumerar neste espaço. 

Certos casais tendem, instintivamente, a assumir polos opostos em qualquer situação; outros tendem a um rápido consenso. 

Pessoas que crêem estar em seu ambiente tendem a querer resolver tudo por conta própria, pois acham que é isto que se espera delas (uma parisiense, em Paris, tentará achar o endereço por si mesma, ainda que seu companheiro brasileiro implore para que peçam informações). 

Homens e mulheres de índole prática querem uma solução rápida para tudo, e não hesitam em perguntar. 

Homens e mulheres de índole mais contemplativa ou aventureira não se importam de bater pernas durante horas à procura de algo, pois às vezes o trajeto é mais interessante do que o ponto de chegada.

Vou logo avisando que pertenço ao segundo grupo, o grupo dos que não perguntam nem que a vaca tussa. Gosto de descobrir sozinho, a menos que esteja indo para o Pronto Socorro, ou para assistir um espetáculo, ocasiões em que de fato é preciso resolver o problema bem depressinha. Não sendo assim, nada feito. 

Já passei uma tarde inteira procurando uma catedral que por todos os indícios devia estar bem diante do meu nariz, e só depois entendi que estava na extremidade oposta da avenida. Não importa; não foi tempo perdido. No dia seguinte, quando precisei, já sabia a avenida de cor e salteado. 

E tudo é, também, uma questão de filosofia de vida. É como diz o Budista Tibetano: "Prestai atenção, irmãos: perguntando o Caminho a alguém, chega-se mais depressa. Procurando até achar, descobre-se o Caminho."







0390) A loteria da literatura (19.6.2004)



Conheço gente que fêz poupança quinze anos, até comprar uma casa com duas garagens, quintal, piscina e quatro quartos (duas suites). Conheço gente que trabalhou dezesseis horas por dia a partir dos 18 anos, e aos 30 tinha um apartamento de cobertura e dinheiro suficiente no Banco para viver de rendas até morrer de vodka ou de tédio. Conheço gente que todos os meses, chova ou faça sol, separa 10% do que ganha e investe em fundos de renda fixa. O que têm em comum essas pessoas? Eu diria que elas têm em comum o fato de que não acreditam em Loteria. Todas acreditam na lei do lento acúmulo de recursos, que faz o sujeito, um belo dia, parecer ter ficado rico de uma hora para outra.

Por outro lado, todos os dias milhões de brasileiros se enfileiram nas casas lotéricas para apostar na Mega-Sena, na Loto, na Loteca e em todas as variantes dessa curiosa religião randômica que faz uma população inteira apostar um centavo na esperança de ganhar um milhão. À primeira vista, essa sede de enriquecimento fácil não tem nada a ver com a rapaziada descrita mais acima – os que rezam na Bíblia do trabalho duro, e crêem no lento acumular de centavos até que o milhão se complete, décadas depois.

Vendo esses dois grupos tão diferentes eu percebo o quanto o trabalho literário (o trabalho artístico em geral) se parece com ambos. Um paradoxo danado, mas é verdade. O sujeito que escreve livros deposita todos os dias, na ranhura de algum porquinho-de-barro da opinião pública, seus centavozinhos de auto-investimento. O livro não vende nem metade da edição? A imprensa faz um silêncio sepulcral? Os amigos agradecem, fazem elogios vagos, e desconversam? E daí? O escritor parte para o próximo, ciente de que na maioria das vezes não é uma obra-prima isolada que faz a fama literária, e sim a lenta sedimentação de título após título, percutindo na memória do público e dos resenhadores. Muitas águas vão ter que rolar, mas aos poucos cresce uma estalactite de notoriedade cercando o nome do poeta que, bem ou mal, publicou vinte títulos em vinte e cinco anos. Não é uma Mega-Sena, concordo. Mas dá para o sujeito fruir uma fama simbólica à beira de uma piscinazinha metafórica.

Não é diferente do sujeito que quer ser Paulo Coelho ou J. K. Rowling. O livro não vendeu? O palpite não cravou uma dezena sequer? Não importa. Os milhões virão com o próximo. Cada vez que ele despacha um novo original pelo Sedex, é como se dissesse: “Desta vez fico rico.” Ele sabe que depois de dez retumbantes fracassos pode vir um sucesso mais retumbante ainda, conforme leu em dezenas de biografias dos-que-chegaram-lá. (É engraçado – ninguém escreve biografias dos que-não-chegam-lá.) Ele sabe que a Loteria da Literatura é a única em que o valor das apostas semanais vai se acumulando numa Caderneta de Poupança em nosso benefício, caso a sorte grande não chegue. E pra que coisa mais melhor?


0389) Um som estrangeiro (18.6.2004)



O CD novo de Caetano Veloso, A foreign sound, inaugurou uma nova polêmica na imprensa brasileira. Não vou discutir as qualidades do CD, porque não o escutei ainda. Aliás, ninguém discute se as canções são boas, se os arranjos são originais, se o cantor está cantando bem; discute-se o fato, que para muita gente é humilhante, de um cantor brasileiro gravar um disco só de canções norte-americanas. Neste aspecto, os críticos estão interpretando corretamente as intenções do artista, porque mais do que exibir seus dotes como cantor Caetano está querendo fazer uma afirmação ideológica, está declarando publicamente seu afeto, sua dívida e sua solidariedade à canção norte-americana.

Nada excepcional, para quem há poucos anos gravou Fina estampa, onde declarava seu afeto, etc. e tal, pela canção hispano-americana. E para quem, ao longo da carreira, não tem feito outra coisa senão homenagear, e apresentar aos brasileiros desinformados, a canção brasileira. Um dos talentos de Caetano como cantor é ser um grande ouvinte de rádio – uma categoria em extinção, substituída por “espectadores da MTV”. É difícil explicar, para os nascidos depois de 1970, a imensa democracia musical que imperava no rádio brasileiro até então. Ouvia-se música mexicana, francesa, italiana, espanhola. Boleros, canções de amor americanas, fandangos, guarânias, baladas. Aí veio o rock e passou-o-rodo nisso tudo – o que de certa forma explica a imensa rejeição que algumas pessoas sentem pela música dos EUA. Havia um pomar com mil árvores frutíferas. De repente, surgiu ali um canavial, uma monocultura devoradora. O que Caetano faz, para mim, é tentar recuperar o que há de bom na memória que temos da música americana, que sempre tocou em nossos rádios. Para mim, é um manifesto político e estético: existe Arte de boa qualidade em qualquer lugar, até mesmo no país que nos invadiu.

Há 30 anos, o país-invadido mais famoso do mundo não era o Iraque, era o Vietnã. O líder guerrilheiro do Vietnã, Ho Chi Minh, costumava afirmar que estava em guerra com as tropas norte-americanas, não com o povo norte-americano. “O povo dos Estados Unidos e o povo do Vietnã são irmãos, e são muito parecidos,” dizia ele; “querem existir em paz, trabalhar, criar suas famílias, viver a vida.” E dizia que seu guia ideológico era a Constituição dos EUA. Acho que mesmo hoje, num momento em que os EUA deixaram de vez de ser os defensores da democracia para ser a principal potência terrorista do mundo, é possível ver o quanto esse país é contraditório, heterogêneo. É possível rejeitar a invasão da indústria cultural norte-americana, do lixo cultural norte-americano, sem rejeitar a imensa contribuição positiva que a cultura norte-americana tem a dar. Os aliados da música brasileira são os músicos americanos, não as megacorporações. O problema não é importarmos canções, é importarmos relações de produção econômicas. Puxa vida, que pólvora que eu acabo de descobrir!

quinta-feira, 8 de maio de 2008

0388) “Páginas de Sombra” (17.6.2004)



Fico meio constrangido em usar este espaço, que me parece de interesse público, para fazer propaganda dos meus próprios produtos. Mas como é por uma causa nobre, a da Literatura Brasileira, resolvo engolir os escrúpulos e seguir em frente. Comunico aos meus pacientes leitores que hoje, a partir das 20 horas, estarei em João Pessoa, no Parahyba Café (Usina Cultural da Saelpa, fone 222-4198), autografando meu livro Páginas de Sombra, uma antologia do conto fantástico brasileiro, publicada pela editora Casa da Palavra, do Rio. Antologias são livros com um conceito autoral meio impreciso. Tenho aqui em casa algumas onde o antologista aparece como autor mesmo sem ter escrito uma linha sequer. Admito que ele, tendo escolhido os textos do livro, tenha direito à autoria: pela idéia, pela compilação. É sua a responsabilidade por aquele cardápio de textos que provavelmente nunca tinham sido agrupados antes.

Isto talvez já bastasse, mas por via das dúvidas escrevi apresentações individuais para todos os 16 contos do livro (de autores como Machado de Assis, Rubens Figueiredo, Murilo Rubião, Carlos Drummond, Lygia Fagundes Telles, etc.); e um prefácio de 12 páginas onde examino aspectos da literatura fantástica. Em entrevista recente a “O Norte”, argumentei que essa literatura possibilita ao autor uma riqueza maior de temas do que o repertório do Realismo. O Realismo vai até um certo ponto; o Fantástico vai mais além. Foi preciso, talvez, surgir o chamado Realismo Mágico latino-americano para muita gente perceber que o Fantástico não é um cancelamento do Realismo, e sim uma expansão deste. O Fantástico inclui tudo que existe no Realismo... e muito mais.

Já falei sobre Páginas de Sombra nesta coluna (“O fantástico”, 1.7.2003). Tentei com este livro repetir o esforço feito em 1959 por Jeronymo Monteiro, que organizou para a Editora Civilização Brasileira a antologia O conto fantástico. Tentei fugir ao repertório escolhido pelo mestre Jeronymo, mas não resisti e incluí dois contos selecionados por ele: “Os olhos que comiam carne” de Humberto de Campos e “A gargalhada” de Orígenes Lessa. Aliás, acho que um bom complemento à leitura do meu livro será Contos fantásticos do século XIX, de Ítalo Calvino, antologia lançada há pouco pela Companhia das Letras. (Pronto – fiz uma propagandazinha do meu principal concorrente, para apaziguar a minha angústia ética).

Em todo caso, creio que o meu livro tem um aspecto que falta a todos os outros: as impressionantes ilustrações de Romero Cavalcanti. Romero (paraibano radicado no Rio, como eu) fêz no computador um trabalho semelhante ao que Max Ernst fêz com tesoura e cola, na década de 1930. Recolheu aquelas antigas gravuras em metal e madeira que ilustravam os livros do século 19, recortou-as, recombinou-as em colagens surrealistas e inquietantes que, tão bem quanto os textos, nos comunicam o “sentimento do fantástico”.

0387) O dia de Joyce (16.6.2004)




(foto de James Joyce, por Man Ray)

O dia 16 de junho é conhecido no mundo inteiro como o “Bloomsday” (ver “O Bloomsday”, 15.6.2003). É o dia, na vida de Leopold Bloom, em que transcorre toda a ação do romance Ulisses de James Joyce, e foi escolhido pelo escritor por ser o dia do seu primeiro encontro amoroso com Nora Barnacle, que viria a ser sua esposa. 

É comemorado no mundo inteiro, e este ano terá celebrações especiais por seu centenário, pois o encontro original entre Joyce e Nora foi em 1904.

James Joyce é um dos grandes equívocos do mundo da literatura, mesmo tendo sido um escritor de gênio. Não uso o termo “gênio” para dizer que ele era mais inteligente ou que escrevia melhor do que os demais, mas no sentido de que era um desses caras que parecem possessos, parecem possuídos por um espírito, por um gênio ou “djinn” oriental, por um orixá das letras. 

O gênio literário não é apenas o cara que escreve bem. É o que que sacrifica tudo – bem-estar, amor, família, dinheiro, saúde física, sanidade mental – para criar uma obra literária. O gênio, em geral, é aquele cara cuja obra gostaríamos de ter escrito, mas cuja vida não ousaríamos jamais viver.

Por que Joyce é um equívoco? Por muitas razões. 

Uma é a de se insistir nele como um modelo literário, um escritor a ser imitado, um sujeito que reinventou o romance e cujas descobertas precisam ser aprofundadas. Não é nada disso. Joyce foi um sujeito que afastou-se da avenida principal da literatura e abriu por conta própria um beco sem saída. Seu mérito foi criar um caminho só seu. Algumas de suas descobertas literárias podem ser usadas, com moderação. Usá-las em demasia resulta em pastiche, pelo caráter absolutamente pessoal que elas têm. 

A obra de Joyce é um retrato do microcosmo histórico, social e cultural de James Joyce, a um nível de profundidade como poucas vezes um escritor conseguiu. Tentar fazer o que ele fêz, do modo como o fêz, é não entender o espírito do seu gesto libertário. É desperdiçar o heroísmo suicida de seu exemplo: “seja você mesmo, até as últimas consequências”. Seja você. Não seja “James Joyce”.

O culto a Joyce é hoje quase uma religião literária. A editora Naxos Audiobooks acaba de lançar o Ulisses numa caixa com 22 CDs, lidos por Jim Norton e Marcella Riordan, com fotos e estudos. (O preço, para quem se dispuser, é de 149 dólares). 

Na esteira desta fama, surge outro equívoco: o marginal transformado em monstro sagrado; o rebelde erigido em modelo; o destruidor-de-regras que passa a servir de manual-de-instruções. 

Por outro lado, o excesso de interpretações eruditas de sua obra dá a impressão de ser ela uma arca-de-noé de erudição, quando é uma das obras mais intuitivas, menos cerebrais da literatura. Para visualizar quem foi Joyce, leiam os contos de Dublinenses e o romance Retrato do artista quando jovem. A leitura de Ulisses ou Finnegans Wake é um caminho-de-São-Tiago literário. Só vá se achar que a perna agüenta.




0386) Amigo é pressas coisas (15.6.2004)





(A Gang Selvagem com Sundance Kid (primeiro sentado, à esquerda) e Butch Cassidy (último sentado, à direita).



Dias atrás cometi uma blasfêmia, falando mal da Liberdade (“O fantasma da liberdade”, 27 de abril). Hoje, atacarei outra vaca sagrada: a Amizade. Tenho dezenas de amigos, gosto muito de todos, e espero não ofender nenhum deles ao afirmar que um dos maiores males do Brasil é a amizade. Este é um dos valores morais sobre os quais se alicerça a nossa cultura e esta maneira de ser que tanto encanta os estrangeiros, mas onde se apóia também toda a rede de corrupções, trambiques, maracutaias, negociatas, golpes, e todas as “tenebrosas transações” de que falava o poeta.

Vejam nos jornais, na TV. Está tudo lá, nos depoimentos, nos telefonemas grampeados, nos bilhetinhos, nos papos a meia-voz registrados pelas microcâmeras ocultas. “Aos amigos, tudo” – é o lema que impera nos corredores do Poder público e privado. 

Se aos políticos é vedada a nomeação de parentes para cargos públicos, este conceito deveria, talvez, ser ampliado para incluir também os amigos. Afinal, muitas vezes um político deixa de lado um irmão antipático ou um primo pouco confiável, e prefere instalar no ponto-chave da máquina estatal aquele companheirão dos velhos tempos, cuja amizade é à prova de fogo. 

(Se bem que nunca se sabe. Assim como se diz que a fidelidade feminina é solúvel no álcool, muitas lealdades masculinas não resistem ao peso dos zeros e dos cifrões.)

Os “vampiros” da Máfia do Sangue só fazem o que fazem porque estão cercados de amigos. Amigos às vezes honestos e bem intencionados, e são essas boas intenções que os perdem. “Ih, rapaz, o Lalau desta vez extrapolou... Mas não vou abandonar um amigo numa hora como essa! Vou destruir as provas e jurar na Bíblia que não sei de nada.”

Num ensaio de 1946 (“Nosso pobre individualismo”, em Outras inquisições), Jorge Luís Borges comenta o abismo ético existente entre a moral anglo-saxônica proposta pelo cinema americano e a ética do compadrismo cultivada pelos argentinos. Diz ele que o argentino só acredita em relações pessoais. Como o Estado é uma entidade abstrata, ele não crê em sua existência, e não acha que seja um crime roubar dinheiro público. E exemplifica: 

“Os filmes elaborados em Hollywood propõem repetidamente à nossa admiração o caso de um homem (geralmente um jornalista) que conquista a amizade de um criminoso para entregá-lo depois à Polícia. O argentino, para quem a amizade é uma paixão e a Polícia uma máfia, sente que este herói é um incompreensível canalha.”


Este exemplo cristalino comprova minha tese sobre a brasilidade dos argentinos, ou a nossa própria argentinidade. Achamo-nos devedores de favores e lealdade aos nossos amigos, não a essa abstração chamada Brasil. Nosso “contrato social” é no interior de um clã. De uma família ampliada; de uma tribo; de um clube de pessoas unidas por projetos coletivos de ascensão social e de desfrute das boas coisas da vida. O navio é este convés onde tomamos drinques ao sol; o resto pode afundar, tamos nem aí.





sábado, 3 de maio de 2008

0385) José Agrippino de Paula (13.6.2004)



Um artista fora-de-esquadro, para mim, é o que faz suas próprias regras, que começa suas obras partindo de premissas só suas. É um sujeito cujo zero-cartesiano está num lugar diferente do nosso. Assim é José Agrippino de Paula, de quem conheço apenas dois romances, uma peça teatral e um filme, que me produziram uma impressão inesquecível. Conheci seus livros em 1968, pelas mãos dos irmãos Lula & Chico Pereira, que me emprestaram Lugar Público (1965): um livro desconcertante, mosaico onde cada parágrafo não tinha nada a ver com o anterior, narrando o cotidiano sórdido de um grupo de intelectuais vagabundos, sem tostão. Sua rotina sem objetivo decorre entre pensões baratas, botequins e cinemas, num Rio de Janeiro cinzento, decadente, irreconhecível. Os personagens têm nomes pomposos (César, Bismarck, Pio XII, Napoleão, Moisés), e cada parágrafo é narrado por um “eu” que pode ser, aleatoriamente, qualquer um deles. Na orelha do livro, Carlos Heitor Cony comparava o jovem escritor com Robbe-Grillet e Campos de Carvalho, e via nele a mesma “visão espessa e irritada” de Henry Miller e do Sartre de Sursis.

Tão impactante quando este foi o segundo livro de JAP: PanAmérica (1967), com um prefácio elogioso do físico Mário Schenberg e na capa um belo quadro de Antonio Dias (“O espetacular contra-ataque da arraia voadora”, coleção Gilberto Chateaubriand). PanAmérica elevava ao quadrado a voz narrativa típica de JAP, um “eu” que descreve sem emoções o que vê e o que faz. É a voz monocórdia e inalterável de um drogado, ou de alguém que está sonhando e registra este sonho com a impessoalidade e a exatidão de uma câmara de filmar. Em PanAmérica, o narrador contracena com vultos da História e da cultura pop: Marilyn Monroe, Che Guevara, Joe DiMaggio, Harpo Marx, índios bolivianos, extras de Hollywood, guerrilheiros, soldados.

Em todos estes anos, a única pessoa que vi referir-se a JAP foi Caetano Veloso, que no livro Verdade Tropical conta de sua admiração pelo cineasta/escritor (ao qual dedicou seu filme Cinema Falado). Agrippino dirigiu um longa-metragem, Hitler 3o. Mundo. Quando eu trabalhava no Clube de Cinema da Bahia, por volta de 1979, fizemos uma sessão deste filme e o próprio diretor o levou. A cópia estava estragada; avisei que teríamos de cortar algumas pontas-de-rolo, que estavam imprestáveis, e Agrippino, com o rosto inescrutável de um índio peruano, disse: “Se quiser, pode remontar o filme todo, eu não ligo.” A tentação foi grande, mas não ousei.

Os dois livros acabam de ser reeditados pela editora paulista Papagaio (http://www.editorapapagaio.com.br/). Caetano diz de PanAmérica: “Talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea de seu PanAmérica que lhe possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera.” Ih... danou-se – agora vou ter que explicar a metade do público quem é Max Cavalera, e à outra o que é a Ilíada.