quinta-feira, 5 de junho de 2014

3517) As perseguições (5.6.2014)




(O Bode Gaiato)

Basta ser nordestino para ser, de alguma maneira, superior a quem o não é. Estou sendo preconceituoso ou arrogante ao dizer isto?  Espero que não, porque o digo com a consciência tranquila de que o que os nordestinos são, filosoficamente falando, é algo
que independe tanto da minha opinião quanto da do meu interlocutor. Mas eu tenho, sim, o direito de falar que os nordestinos são superiores a todos os demais, assim como o torcedor do Bambala ou do Arimatéia pode dizer o mesmo de seu time, e qualquer filho de Deus pode dizer o mesmo sobre o Deus de quem é filho.

Gozações regionalistas muitas vezes se dão em paz quando feitas entre iguais, de parte a parte, cada qual ironizando as pretensões do outro e afirmando a grandiosidade de sua própria pátria.  Vira uma forma brincalhona de convívio, uma troca amigável de alfinetadas.  O perigo existe quando se dá numa relação vertical de poder, quando o que está por cima não apenas explora o trabalho do outro, mas, para manter esse estado de coisas, esmaga o seu amor próprio, faz com que ele primeiro despreze e depois odeie suas origens. Já vi muitos casos de nordestinos exilados que assimilaram sotaque, hábitos, cultura, valores, e apagaram da memória tudo que houvera antes.  Alguns por um verdadeiro trauma, por tática de sobrevivência.

Você manda um projeto para um órgão público ou para um edital de empresa no Sudeste, o projeto não passa, aí você diz: “Claro, eles não vão deixar um nordestino passar na frente dos outros.” Como existe o precedente de mil pequenas situações de preconceito, o sujeito insatisfeito expande isso para qualquer situação. Recusa-se a admitir que podem ter aparecido projetos melhores que o dele, por motivos totalmente diversos.  Recusa-se a admitir que o projeto dele pode não ser tão interessante assim para a empresa ou o órgão a que foi submetido, independente da origem geográfica.

O preconceito existe, como existe contra qualquer grupo que pareça exótico e possa vir a ser um antagonista; mas ele não está em todo lugar.  Às vezes ocorre mais por desinformação do que por antipatia. Às vezes a pessoa preconceituosa nem está em posição de produzir grandes estragos (embora os produza quando está).  A paranóia persecutória do nordestino o faz achar que nunca estão vendo a pessoa dele, estão reduzindo sua individualidade a um clichê pejorativo. É o problema de todas as minorias. O mundo inteiro não está fazendo uma grande Conspiração para marginalizar, exterminar, deletar os nordestinos da História e da Geografia.  A não ser... a não ser... que nós sejamos mesmo superiores a todos eles, e é por isso que não nos aguentam.


3516) Lovecraft e a vanguarda (4.6.2014)



(ilustracao de Abigail Larson)

H. P. Lovecraft, mestre das histórias de horror, foi um sujeito de perfil conservador até quase a caricatura. Ele dizia que era um homem do século 18 perdido no século 20.  Suas opiniões literárias, contudo, são em geral bastante ajuizadas.  Numa carta de 2 de outubro de 1928 para sua amiga Zealia Brown-Reeed Bishop, ele comenta a moda do fluxo de consciência (“stream of consciousness”) que vinha tomando conta da literatura.

HPL reconhece o fato, uma relativa novidade na época, de que “nossas mentes estão cheias, o tempo todo, de milhares de linhas de imagens e de idéias irrelevantes e dissociadas; e nossos atos na verdade são determinados pela soma total desses farrapos heterogêneos e inconscientes, mais do que por uma única linha de idéias conectadas que nós, publicamente, reconhecemos em virtude de sua posição no nível superior da consciência.” Ele louva a maneira como a literatura tenta reproduzir no texto esse entrechoque de elementos quase aleatórios, e vê James Joyce (na prosa) e T. S. Eliot (na poesia) como os principais expoentes dessa tendência. (Mais adiante, ele a define melhor ao enumerar os nomes de E. E. Cummings, Hart Crane, Aldous Huxley, Wyndham Lewis, Dorothy Richardson, os Sitwells, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Kenneth Burke, Ezra Pound e Marcel Proust).

HPL levanta a questão: uma tal escrita pertence ao domínio da arte literária ou do mero registro psicológico de impressões? Ele dá generosamente o benefício da dúvida aos escritores, dizendo: “Os métodos extremos destes autores transcendem, sem dúvida, os limites da verdadeira arte, embora eu acredite que eles estão destinados a produzir uma poderosa influência sobre a arte propriamente dita. A arte literária, creio, deve continuar aderindo à prática de registrar fatos exteriores [à consciência], em ordem consecutiva; mas de agora em diante deve perceber as motivações complexas e irracionais desses acontecimentos, e deve se abster de atribuir-lhes causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas.”

Com uma razoável abertura, HPL diz que a decisão sobre o quanto de material inconsciente deve afetar a criação da obra “deve ser decidida independentemente em cada caso particular pelo julgamento do próprio autor, e pelo seu senso estético”. Lovecraft, o escritor, me parece pesado demais, preso demais ao próprio estilo; mas é bom ver que como leitor ele era capaz de avaliar com simpatia, num momento de transição (o ano é 1928) uma mudança gigantesca por que estava passando a literatura. E sua crítica às histórias com “causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas” me parece atualíssima.