sexta-feira, 8 de maio de 2009

1019) Sofre, Brasil! (22.6.2006)



Nossas vitórias pouco convincentes nos primeiros jogos (1x0 na Croácia, 2x0 na Austrália) eram de se esperar, depois da badalação que cerca a Seleção desde o ano passado: “favoritismo”, “quadrado mágico”, etc. e tal. Nenhum grupo de jogadores, por mais profissionais e pés-no-chão que seja, fica imune a tanta adulação, tanto oba-oba. Paciência. Faz parte da nossa cultura contar com o ovo no cu da galinha, comemorar por antecipação vitórias ainda não obtidas, falar com intimidade de “canecos” e “estrelas” que estão sendo disputados com unhas e dentes por outros 31 times, dos quais uns cinco ou seis têm reais condições de derrotar o nosso (ou de serem derrotados por ele, porque isso quem decide é o momento do jogo).

Se esse time da Seleção Brasileira fosse um time de clube, que joga junto o ano inteiro, seria quase imbatível. Do modo como é arregimentado e treinado, depende de muitas variáveis. Uma delas é o estado emocional dos jogadores, que no campo têm que tomar decisões em frações de segundo, e às vezes estão com a cabeça tão cheia de expectativas, compromissos, conselhos, advertências, pedidos, etc., que perdem segundos preciosos tentando pensar na jogada certa. Nisso, o zagueiro adversário já se antecipou e levou a bola consigo.

Quando Ronaldo ou Parreira botam a culpa na imprensa, os coleguinhas jornalistas ficam ofendidos e cheios de não-me-toques. Calma, amigos. Não é a imprensa inteira. Mas eu vejo repórter de TV perguntando: “Ronaldinho, qual vai ser o pagode para comemorar o título?” Que título, amigo? “E aí, Adriano, vai dedicar o gol ao seu filho que nasceu?” E eu pergunto: que gol? O cara nem fez gol ainda, já estão pensando na comemoração? (Acabou fazendo na Austrália, mas minha objeção continua valendo). No dia em que Daiane dos Santos foi para a final de ginástica nas Olimpíadas de 2004, a TV anunciava: “E não perca hoje, às 14 horas, a transmissão da medalha de ouro de Daiane dos Santos!” Deu no que deu.

TV, rádio e jornal vivem de audiência. Em esporte, você só tem audiência se vender esperança. Já que nossos atletas são bons, não custa nada à imprensa criar esse clima de festa. Daí surge o excesso de cobertura, de informação irrelevante, de repórteres esbaforidos tentando tirar leite de pedras e descobrir notícias a todo custo. É a bolha no pé, é a perna depilada, é a dor de cabeça... O problema não são as críticas da imprensa, que qualquer profissional assimila ou ignora. O problema é que a imprensa gasta muito e investe pesado, numa Copa, e se vê forçada a dar uma atenção desmedida ao cotidiano do time, a noticiar qualquer bobagem (porque precisa noticiar coisas o dia inteiro), e a criar tempestades em copo dágua. Uma bolha no pé vira um problema de Estado, um gol no treino vira motivo para comemoração. Vamos torcer para que, mais uma vez, não derrotemos a nós mesmos, principalmente com essa empáfia antecipada dos que acham que ganharam o jogo antes da bola rolar.

1018) Bussunda (21.6.2006)




Copa do Mundo é uma epocazinha danada pra morrer gente. Acho que nosso sistema imunológico fica fragilizado, pelo estresse da responsabilidade, da expectativa, da obrigação de ganhar sempre e de humilhar todos os adversários. Em 90, João Saldanha morreu em Roma, onde, mesmo com a saúde abalada, estava cobrindo a Seleção Brasileira. Em 2002, foi o romancista e cronista esportivo Roberto Drummond, algumas horas antes da nossa vitória sobre a Inglaterra. Parece que os deuses do futebol não nos cobram apenas sangue, suor e lágrimas. Exigem sacrifícios humanos em seu altar.

Agora foi Bussunda. Mas logo o Bussunda?! Pense num cara que parece que não vai morrer nunca. Eu jamais tinha parado para pensar nisso, mas provavelmente achava que quando estivesse com 100 anos de idade lá estaria Bussunda com 90, comandando um talk-show cheio de trocadilhos e irreverências. Era um hipopótamo extrovertido e gozador, e fez parte de uma das aventuras empresariais mais bem sucedidas do Rio de Janeiro recente: a criação da griffe milionária intitulada “Casseta & Planeta”.

Nos anos 1980 a turma de Bussunda, Marcelo Madureira, Hélio de la Peña, etc., tinha um jornalzinho satírico chamado Casseta Popular, que nunca cheguei a ler, mas era famoso no Posto 9 de Ipanema e adjacências. Algum tempo depois, três jornalistas saíram do Pasquim (Cláudio Paiva, Reinaldo e Hubert) e fundaram o Planeta Diário, cuja fórmula era parecidíssima com a da Casseta Popular. Começou nos bares e no Posto 9 um papo bobo sobre plágio, imitação, apropriação de idéia. Enquanto isto, o que fizeram nossos bravos humoristas? Correram às barras dos tribunais, brigando por indenizações mirabolantes, processando-se uns aos outros na tentativa de ficarem ricos? Não, apenas isto: associaram-se, uniram os dois grupos, mudaram a razão social para Casseta & Planeta e... ficaram ricos. Sábia lição de vida.

Não conheci Bussunda pessoalmente, mas acho que não foi preciso. Sou capaz de apostar que ele era daquele jeito 24 horas por dia, com a mulher, os filhos, os pais, os motoristas de táxi. Imitando Lula ou Ronaldinho, vestido de sílfide ou de metaleiro, era sempre o carro-chefe histriônico do grupo, o que se avistava primeiro. Seu humor era o humor relaxado e gozador do carioca de calçada de botequim, que tem olho de lince para a pomposidade e a empáfia alheia, e não perdoa. Gordo, meio dentuço, desajeitado, talvez não fosse o genro ideal para as mães de família brasileiras (quantos de nós somos?), mas tinha uma empatia imediata com crianças e adolescentes. Houve uma época em que fez um programa com jovens, numa TV educativa, e eu ficava matutando: Como é que ninguém se toca que um sujeito escrachado e espontâneo como esse tem mais credibilidade do que uma dúzia de professores?

Ave, Bussunda! A esta altura, já sabes quem ganhou a Copa do Mundo. Que sejas bem recebido nos braços da deusa Gréia, a padroeira da galhofa, da sátira e da diversão.

1017) Os gols da Copa (20.6.2006)



Ganhe quem ganhar, perca quem perder, um dos grandes prazeres de uma Copa do Mundo é admirar os gols inesquecíveis que se desenham em segundos mágicos diante dos nossos olhos. Vai longe o tempo em que a gente escutava as Copas no rádio e tinha que esperar meses até passar no Capitólio o “Canal 100” mostrando como tinha sido o gol! Hoje, vemos a História se traçando em tempo real, e isto não tem preço.

O que faz um gol ser mais bonito do que outros? Depende muito. No dia em que escrevo estas linhas, vi um gol memorável do brasileiro Deco (Portugal) contra o Irã. Figo avançou pela quina esquerda da área, rolou a bola para Deco, que estava desmarcado e poderia ter invadido a área, mas preferiu descair o corpo para a esquerda e mandar um petardo de pé direito no ângulo direito do coitado do goleiro. Sabe aqueles chutes em linha reta? Pois é. Em termos de potência lembrou um gol que o Koné, da Costa do Marfim, fez ontem contra a Holanda: avançou pelo miolo, ao receber combate derivou para a direita, depois derivou de novo, clareou, e de fora da área mandou um foguete lá em cima.

Já o gol bem trabalhado é uma obra de natureza diversa. Até agora, vi dois que foram perfeitos: o último gol da Espanha (Fernando Torres) na goleada de 4x0 sobre a Ucrânia, e o segundo da Argentina (Cambiasso) no 6x0 que impôs à Sérvia-Montenegro. Gols onde a bola rolou de pé em pé, com o time todo avançando, rodando, tocando de primeira, deixando o adversário tonto até o chute final, indefensável, à queima-roupa. É o tipo do gol que depende de oito ou dez toques, e se tivesse havido o menor erro ou a menor hesitação em cada um deles o gol não teria acontecido. É um prêmio à rapidez de raciocínio, e à mistura perfeita entre a jogada bem ensaiada e a exatidão no improviso.

Falar em jogada bem ensaiada, o primeiro gol da República Tcheca nos EUA foi o tipo da jogada que o time traz no bolso desde o vestiário. A defesa recuperou a bola, o armador esticou um lançamento de 30 metros na ponta direita, o ponta correu, avançou, levantou a cabeça, e fez um cruzamento perfeito para o grandalhão Koller (2 metros e 2 cm, e sósia de Nalbert do vôlei) testar com violência para o fundo da rede. Parecia um clip feito em computação gráfica, para ensinar aos jogadores: “Tentem fazer assim”. E lembrou um pouco os gols da Copa de 58 em que Didi esticava para Garrincha, ele driblava, cruzava, e Vavá empurrava para dentro.

Falar em jogadas iguais, alguém reparou que o gol de Gerrard (Inglaterra), o segundo contra Trinidad-Tobago, foi um xerox do gol de Kaká contra a Croácia? Recebeu a bola da lateral direita, livrou-se do adversário girando para dentro, e da intermediária, quase na meia-lua, mandou a bola de chapa, de pé esquerdo, no canto superior do goleiro. O de Kaká foi um pouco mais para o meio e para a frente. Acho que ninguém percebeu a semelhança porque um foi no gol à direita e o outro no gol à esquerda das câmaras. Mas a Arte é uma só.

1016) A arte de lavar pratos (18.6.2006)




Um amigo meu, sertanejo por convicção e machista por conveniência, costuma afirmar: “No dia em que me virem lavando um prato, podem ir procurar meus “pussuídos” na lata de lixo, porque alguém cortou e jogou lá!” 

Eu não sou radical a este ponto, embora confesse que lavar pratos não é uma prioridade para meus momentos de lazer. Prefiro pagar a alguém para fazê-lo, mas também pago ao eletricista, ao encanador, ao pedreiro. Não é uma questão de sexo ou gênero; é uma questão de tarefa chata.

Os homens, que não são bestas, passaram séculos fazendo uma lista de tarefas chatas e combinando entre si que toda mulher que nascesse sofreria uma lavagem cerebral desde a época das fraldas até ficar convicta de que aquilo era obrigação sua. Funcionou. 

Funcionou com a arte de cozinhar, por exemplo, até que recentemente os homens resolveram vestir o avental e aparecer em programas culinários na TV-a-cabo, ensinando a fazer estraga-onofre e outros pratos sofisticados. (Acho que agora são as mulheres que estão promovendo uma lavagem cerebral às avessas, mas isto é assunto para outro dia)

Não acho que lavar pratos seja menos masculino do que escovar os dentes. É uma tarefa chata, mas aí eu digo como Clint Eastwood ou Charles Bronson: “It’s a dirty job, but someone has to do it”. 

Qualquer sujeito que teve que se virar sozinho na época de estudante aprendeu uma série de truques. Estudei um fenômeno chamado Ciclo de Cristalização dos Resíduos. E aprendi que prato, ou você lava logo depois de comer (quando os resíduos, ainda aquecidos, não se cristalizaram e aderiram à louça ou ao vidro), ou então bota na pia – de molho. Cobrir os pratos com água abundante dilui os resíduos, reduzindo em 93% o tempo de esfregação subseqüente para os pratos, e em até 48% o das panelas.

As panelas são um capítulo à parte, pois a comida submetida a temperaturas de cocção passa por transformações químicas intensas, as quais quase que soldam as substâncias à parede interna do receptáculo. Lavar uma panela horas depois, sem deixá-la de molho, significa escalavrar as unhas no bombril, e obter resultados que uma doméstica profissional desmoraliza com uma gargalhada. 

Lavar liquidificador também requer minúcias de neurocirurgião. (Naquele tempo eu simplesmente chacoalhava água lá dentro, enxugava, e guardava de volta) Lavar talheres é um saco. O cara pega a esponja, esfrega uma daquelas faquinhas serrilhadas para churrasco, e sai dali com um corte no dedo, sendo que de noite vai ter que tocar violão e contar lorotas num teatro. Não pode nem se desculpar: “Eu estou tocando mal porque cortei o dedo, lavando pratos...”

Lavar pratos, companheiros, é como escovar os dentes. Já que tem que fazer, que se faça de maneira vigorosa, eficaz, definitiva. Acabou de almoçar? Não esquente: bote o prato de molho e vá ver um jogo na TV, enquanto a água desmancha as cadeias peptídicas (ou sei lá o que acontece quando um prato está de molho).




1015) Posfecias (17.6.2006)




Profecia todo mundo sabe o que é, não é mesmo? Mas a posfecia, meus camaradinhas, está sendo inventada agora mesmo, neste dia histórico, nas páginas deste jornal que farfalha em vossas mãos. Com a ressalva óbvia de que não estou inventando o fenômeno, e sim a palavra para descrevê-lo.

Se fazer uma profecia significa anunciar um fato antecipadamente, a posfecia significa dizer algo incompreensível, mas que parece ter a ver com o fato depois dele ocorrido, ou “a posteriori” como dizem nossos amigos advogados.

O exemplo mais óbvio de posfecia são as interpretações dos versos de Nostradamus. Como todo mundo sabe, este médico francês produziu entre 1555 e 1568 um livro de poemas intitulado As Profecias, também chamado de Centúrias por estar organizado em grupos de cem estrofes.

O vocabulário dele é mais abstruso do que o de Augusto dos Anjos; as imagens, mais surrealistas do que as de Jorge de Lima; o tom, mais apocalíptico do que o de Zé Ramalho. (O conteúdo, diriam alguns, mais sem pé nem cabeça do que o de Zé Limeira)

Os versos têm sido extensamente analisados e interpretados como previsões de tudo no mundo: o Nazismo, o afundamento do Titanic, a Queda da Bastilha, a morte de Kennedy, o atentado ao World Trade Center. Em 1985, aqui no Rio, houve uma comoção geral quando um espertalhão botou na imprensa uma tradução fajuta de Nostradamus avisando que o Rock in Rio ia resultar numa catástrofe gigantesca. Não só não resultou, como o Rock in Rio continua a acontecer (semanas atrás realizou-se em Lisboa, com a presença de Ivete Sangalo e Shakira – será que era essa a catástrofe?)

Posfecia é qualquer previsão que só faz sentido em retrospecto, depois que os fatos acontecem e podem ser comparados com ela. A técnica favorita dos videntes que freqüentam as revistas “pop” é a imprecisão. “Um casal da TV vai se divorciar!” “Um pagodeiro vai sofrer um acidente de carro!” “Uma socialite vai fazer plástica!” – e assim por diante.

Quando é um ano depois, não vão faltar notícias “confirmando a previsão”. No futebol existe algo semelhante, que pode ser sintetizado naquela famosa fórmula dos comentaristas, antes do início da partida: “O Brasil tem tudo para ganhar este jogo, mas se não tiver cuidado pode empatar, ou até mesmo perder”.

Uma posfecia pode se transformar naquilo que em inglês se chama “self-fulfilling prophecy”, uma profecia que mobiliza as pessoas para que ela se cumpra.

Há um magnífico romance policial de Maurice Leblanc, A Ilha dos Trinta Ataúdes, em que um poema apocalíptico e nostradâmico de um monge meio louco acaba servindo de roteiro para uma série de crimes sanguinolentos, simplesmente porque um bandido meio psicopata cismou que aquilo era uma profecia e precisava acontecer.

Em nenhum desses casos alguém “vê” o futuro. É um texto de inspiração gratuita ou aleatória, cuja relação com os fatos futuros é de uma natureza totalmente diferente.





1014) O paranóico (16.6.2006)



Conheci um cara que não perdia um evento na Academia Brasileira de Letras: conferência, lançamento de livros, etc. Todo coquetel lá estava ele, no seu terno puído mas impecável. Era um senhor cordato, de razoável leitura, sempre com a testa franzida para indicar (creio eu) profundidade de pensamento. A princípio, imaginei que era amigo dos acadêmicos, porque sempre se referia a eles com certa intimidade. “Olha ali o Ledo Ivo... Ontem mesmo falei pra ele: seu último livro é o melhor de todos”. “Tá vendo ali a Lygia? Puxa, como ela está elegante... Tá vendo? Acenou pra mim!” Claro. Se a gente olha três vezes para alguém num coquetel e a pessoa está sorrindo na nossa direção, qualquer um acena.

Descobri que ele era um escritor inédito aos 65 anos, e um paranóico inofensivo. A idéia fixa dele era que todos os acadêmicos viviam insistindo para que ele se candidatasse, e ele não o fazia “porque ainda não era o momento”. Qualquer frase, qualquer olhar, qualquer cumprimento servia-lhe de confirmação, com carimbo e firma-reconhecida, sacramentando sua teoria. Estávamos bebericando vinho branco, aí o acadêmico Fulano se aproximava: “Boa noite, vamos passar para o outro salão, a conferência vai começar, obrigado” Quando se afastava meu amigo me confidenciava: “Veio falar na candidatura, mas você estava aqui e ele deve ter achado que não pegava bem”.

Muita gente pensa que o paranóico é o sujeito que acha que está sendo perseguido e ameaçado por alguém (a CIA, o PCC, os marcianos). Este é o paranóico negativo. Existe também o paranóico do pensamento positivo, o que interpreta erradamente, e em em seu favor, tudo que vê. Serve-se disto para compensar uma auto-estima deformada e para acalentar uma ilusão natimorta. Artistas pop, que vivem da super-exposição, vivem sendo assediados por fãs que julgam ler mensagens pessoais ocultas nas letras das músicas. Obscuros vereadores do interior apertam um dia a mão do Presidente da República e daí em diante passam a ver em cada pronunciamento de Sua Excelência uma referência velada às duas ou três frases que trocaram num aeroporto.

O paranóico positivo deixa-se arrebatar por leituras (Dom Quixote, Madame Bovary), ou deixa-se seduzir pela glória alheia e cria uma fantasia onde faz parte dela. Familiares e amigos têm às vezes uma parcela de culpa, porque movidos pelo afeto dão asas ao delírio: “É isso mesmo! Vá lá! Siga sua lenda pessoal!” A lenda pessoal de uns os leva a desfechar cinco tiros no peito de John Lennon; a de outros, a tirar a roupa e correr nu na festa do Oscar. A grande maioria dos paranóicos, felizmente, é “do-bem”, como o meu amigo quase-acadêmico. Eu só queria saber, no entanto, como é que onze paranóicos com ilusão de grandeza conseguem agrupar-se num mesmo clube de futebol (no caso, o Flamengo), todos eles achando (por influência da família e da imprensa) que sabem jogar futebol, quando, visivelmente, não sabem.

1013) O horizonte de expectativas (15.6.2006)



Já referi nesta coluna (“O ambicioso”, 22.4.2005) uma entrevista em que Gilberto Gil aconselhava os artistas a quererem muito, ousarem muito: “O artista tem que lançar seu verso lá no alto, como o alpinista lança sua corda. Se o verso for longe, ele vai conseguir ir longe também”. Algo assim. Este é um dos pontos em que acho que o Espírito do Tempo, o Zeitgeist de nossa época, tem algo de positivo. Como todos sabem, estamos num tempo que cultua a ambição, a ousadia, a eficiência, a busca de resultados, a demonstração de força, o espetáculo da competição e da competência. Para os jovens, que já nasceram no interior dessa bolha febril da busca do sucesso, parece muito normal. Mas, creiam-me, houve época em que o quente não era fazer sucesso, era ter uma visão-do-mundo (ver “Weltanschauung”, 4.2.2006).

É por causa disto que causa-me espécie um tipo peculiar de desambição que acomete nossos jovens em idade escolar. Por exemplo: tem certos colégios secundários (estou falando em “colégios bons”, na faixa de 700 paus por mês) onde se exige média 6 para passar de ano. O aluno tem três provas trimestrais, e se fizer 18 pontos na soma das notas, tá passado. Maravilha! Só não digo que é mamata porque mamata melhor ainda era no meu tempo. O sujeito passava com 50 pontos: tinha seis provas mensais (valendo 10, claro) e mais a nota da prova final, que era multiplicada por quatro. Vamos e venhamos, o “caba” que não faz 50 pontos num sistema como esse merece sela e cabresto.

Mas os garotos de hoje vivem uma situação interessante. “Eu preciso de 6 pra passar”, dizem eles. E o objetivo deles é o que? Tirar 6. Dão de ombros para a possibilidade de tirar 7 ou 8. “Não precisa,” esclarecem eles, com rara paciência; “se tirar 6, passa”. A nota 6 vira, portanto, o objetivo final de todos os seus esforços. Um garoto já se saiu com esta pérola: “Eu preciso de 6, então não preciso estudar a matéria toda: basta estudar a metade e mais um pouquinho”. Não é uma maravilha, a futura elite deste país?

É claro que pais, mães, professores, fazem o que podem para tirar os garotos dessa roubada. “Você precisa é de 10,” dizem uns. “Tem que tentar tirar 10, mesmo sabendo que um 9, um 8 ou um 7 são notas também boas”. Não adianta: eles se agarram ao 6 como a uma tábua de salvação. Não adianta explicar-lhes que 6 não é o objetivo, e sim o pior resultado aceitável. Seis, para eles, é a nota do alívio, a garantia das férias e do presente prometido “por passar de ano”. É a lei do menor esforço possível para conseguir o mínimo resultado necessário: a Lei da Má Vontade.

É devido a essa mentalidade que quando eles crescem vão jogar futebol, o time entra no mata-mata na Copa do Brasil, aí no primeiro jogo vence por 2x0. Na véspera do segundo jogo os jogadores se saem com esta pérola: “Estamos tranquilos, porque nosso time precisa perder de 1x0 para ser campeão”. E eles entram em campo tentando perder de 1x0. Adivinha no que dá!

1012) Noite de autógrafos (14.6.2006)


(foto: Inês Tavares)

O saudoso José Carlos Oliveira escreveu uma crônica saborosa sobre noites de autógrafos, que infelizmente não guardei. Ele enumerava os desastres mais freqüentes (e eu diria: inevitáveis) dessas ocasiões traiçoeiras, fervilhantes de armadilhas. Fazer noite de autógrafos é como ir para o Faustão para concorrer ao quadro “Se Vira nos 30” com dez façanhas diferentes, uma atrás da outra. Tem chance de dar certo?

Os desastres são geralmente os mesmos. O amigo de adolescência que a gente não vê há quinze anos e acaba esquecendo o nome. O autógrafo conjunto para o casal, e a gente erra o nome da esposa do amigo (ou pior ainda, bota o nome da esposa de quinze anos atrás). A fã anônima que sussurra: “Quero uma dedicatória bem íntima...” Os conhecidos que, na hora de pagar e pegar o livro, recusam o papelucho com o nome anotado: “Pode deixar, ele me conhece!” O leitor exigente que acha sua dedicatória muito formal. A dupla de pessoas que a certa altura vêm juntas à mesa reclamando: “Você fez a mesma dedicatória pra nós dois!” O bêbado que empanca a fila, contando uma história ininteligível e interminável. E por aí vai.

Às vezes um amigo me liga no dia seguinte: “Não fui porque estou liso, não podia comprar e não queria passar vergonha”. Ledo engano, meu camarada. Quem vai a um lançamento não é obrigado a comprar o livro. Muita gente deixa para comprar no fim do mês, quando os caraminguás tilintam. Em ocasiões assim eu vou, converso com os conhecidos, tomo umas biritas, e quando o autor (sendo conhecido) está disponível vou lá, dou um abraço. Comprar o livro a gente pode comprar a qualquer momento. Ir lá só para participar da festa é talvez mais meritório ainda.

Mas há uma catástrofe que é a pior de todas. Num artigo de revista, o escritor Al Martinez sintetiza este tormento: “Existe uma estranha melancolia no ato de ficar sentado numa mesa, tendo diante de si apenas o seu Ego e o trabalho de um ano inteiro, e ninguém lhe dar a mínima atenção”. Isso é ainda mais arrepiante no mercado dos EUA, onde um cara lança um livro e em dois meses percorre 50 cidades, lendo trechos e dando autógrafos em livrarias – que tanto podem estar repletas de fãs como entregues às baratas.

Certa vez, numa Bienal do Livro em São Paulo, a editora colocou em duas mesas vizinhas eu e um respeitado ensaísta brasileiro, com 20 anos e 40 livros mais do que eu. Ficamos das duas da tarde às sete da noite. Um milhão de pessoas desfilaram diante do estande, olharam aqueles dois pacóvios sentados lado a lado, aproximaram-se, leram os nomes impressos nas plaquetas, fizeram uma cara de “nunca ouvi falar”, folhearam nossos livros, deram boa-tarde (ou nem isso) e sumiram para sempre. Quem estava com vontade de sumir para sempre era eu. Mas o esforço não foi em vão. Ele não vendeu nenhum livro a tarde inteira; eu vendi um – para a filha dele, que foi dar uma força ao pai e foi convencida por ele a prestigiar o colega de infortúnio.

1011) O lateral-esquerdo suspeitoso (13.6.2006)




Ariano Suassuna conta que na adolescência gostava de futebol mas era um verdadeiro perna-de-pau. Quando era estudante do Colégio Americano Batista, só jogava porque era amigo do capitão do time, Isaac Ribeiro. 

Isaac procurava mantê-lo longe das duas áreas, para não fazer muita besteira, e o escalava como lateral esquerdo, aconselhando: “Quando a bola chegar perto de você, chute pra fora. Se o jogador chegar perto, faça uma falta”. E ele obedecia.

Um dia, fez tantas faltas que o ponta-direita adversário se irritou, deu-lhe um murro e foi expulso. O time de Ariano ficou com um a mais e acabou ganhando. 

Noutra ocasião, a bola passou por perto e ele, apavorado, encheu o pé, mandando-a para a frente, o mais longe possível. Aí deu as costas, saiu andando, e quando viu o time todo pulou em cima dele, derrubando-o no chão, e o amigo Isaac berrava: “Arretado, tu fizesse um gol!” Foi o gol da vitória. E o artilheiro confessa, com candura: “Eu tive uma emoção tão grande que vomitei”.

Para sorte da Literatura Brasileira, isso se deu lá pelos anos 1940. Se fosse hoje, o jovem estudante teria grandes chances de fazer um teste no Sport, ser aprovado, e virar jogador profissional. Porque, vamos e venhamos, a maioria dos jogadores que vemos disputando o Campeonato Brasileiro parece ter recebido as mesmas instruções que Ariano recebia de Isaac, e tentam cumpri-las à risca.

Eu tenho uma verdadeira alergia mental a futebol mal jogado (há razões freudianas para isto: sou tão perna-de-pau quanto Ariano), e mesmo nas grandes equipes brasileiras e européias tem jogadores que eu fico matutando quem diabo colocou aquele cara ali. 

São brucutus, brutamontes, arranca-tocos, massas de ossos e músculos com duas chuteiras numa extremidade e uma careca na outra. Estão por toda parte, inclusive Barcelona, Real Madrid, Milan, Arsenal, Liverpool, qualquer time bom que a gente vê jogando.

Um lado maldoso que tenho em mim me explica que é a globalização do futebol, a busca permanente dos resultados. E a verdade é que, digam o que disserem os idealistas como eu, muitas vezes você garante um resultado chutando a bola para fora e fazendo falta no ponta. 

Às vezes cabe até a um sujeito assim fazer o gol que fica na história, como ocorreu como Ariano e também com Belletti, no Barcelona. São jogadores no diapasão “da garra, da determinação e da busca-do-objetivo”.

Existe, contudo, um lado poético que me diz o contrário. O futebol é algo tão belo e fascinante que desperta paixão até mesmo nos que a Natureza não aparelhou para praticá-lo. Esses jogadores amam o futebol com o amor bronco e troglodita de Zampanò por Gelsomina em La Strada de Fellini: amam-no por ser a promessa de uma beleza e uma inocência que lhes é para sempre vedada. 

Ergo um brinde à arte do futebol, uma arte tão bela que até mesmo nós, os pernas-de-pau, que não jogamos nada, enchemos os olhos de lágrimas quando o vemos ser bem jogado.