sábado, 8 de agosto de 2020

4608) Entrevistas Transcendentais: Philip K. Dick (8.8.2020)

 

O carro, um Cadillac rabo-de-peixe, veio devagar ao longo da rua longuíssima e larga, sem prédios, sem muros. Fiquei olhando os gramados em diferentes tons de verde, casas largas de um ou dois andares, espalhando-se sem culpa por um terreno amplo. Árvores aqui e ali, céu brilhante, bem californiano. No horizonte erguiam-se colinas azuladas, pintalgadas pelas fachadas das mansões.

 

Paramos mansamente junto à calçada rebaixada, em frente ao endereço que eu trazia de cor. Desci, e quando me virei na direção da casa, ele já vinha devagar em minha direção. Calçava chinelos, e trajava uma calça preta, folgada, uma camisa de estampa colorida com as mangas arregaçadas, aberta na frente, deixando ver a camiseta branca que cobria o tórax possante e a barriga de cervejista. “Hail Brazil!”, ele exclamou, com a mão estendida. Apertamos as mãos, ele me abraçou como se eu fosse um amigo que não via há anos, e me conduziu para dentro de casa, com o braço paternalmente sobre os meus ombros.

 

BT – Obrigado por me receber, não sabe o trabalho que tive com a burocracia.

 

DICK – O prazer é meu. Sabe, há sempre uma fila de pessoas querendo ter a chance de uma conversa assim. Por mim receberia todos. Não é mais a mesma coisa. O mundo mudou, e a gente tem que aproveitar o que pode, dentro dos limites que tem. Mas quando vi suas recomendações separei logo seu nome, porque fiquei curioso. Seus ex-professores, suas atividades... Vamos entrando.


A casa ampla era na verdade um conjunto de apartamentos, com dois andares, virados para um pátio interno, onde subimos uma escada. A sala tinha a mobília previsível: posters de rock e de cinema nas paredes, uma estante de prateleiras simples atulhadas de livros, outra estante de madeira, fechada, com vidraças, onde pareciam estar obras de tamanho maior. Poltronas simples, tapete simples, uma ótima vitrola estéreo modelo 1980 e uma prateleira de vinis com uns dois metros de extensão.

 

Ele se inclinou sobre uma mesinha, onde havia uma bandeja com xícaras, etc., e uma garrafa térmica.

 

DICK – Como você é brasileiro, sei que não recusará um café. Se bem que muitas pessoas de fora se queixam do café daqui da América. (Serviu as xícaras, pus açúcar, bebi; o café estava ótimo.)  Dizem que nosso café é fraco, mas esses espressos atuais me dão dor de cabeça. Isto é arriscado – para quem tem um histórico médico como o meu, não acha?

 

BT – Meu café é exatamente como o seu. Faço um pouco mais fraco para poder ficar bebendo, em maior quantidade, ao longo do tempo.

 

DICK – Exatamente! Criou-se em torno do meu nome uma mística das drogas, mas deixe-me ser honesto, se criássemos uma escala de avaliação das drogas tendo num extremo um máximo de efeito positivo sobre a mente e no extremo oposto um mínimo de efeitos nocivos sobre a saúde, tenho certeza de que o café estaria situado num ponto ótimo entre os dois. Todas as outras drogas perdem pontos numa direção ou na outra, e acredite-me, já experimentei muitas.

 

BT – Mr. Dick, sem dúvida contam-se muitas histórias suas a esse respeito. Li em alguma parte, talvez num artigo de Paul Williams, que o senhor teve uma experiência com LSD mas tudo que escreveu saiu em latim ou em sânscrito...

 

DICK (erguendo um dedo em advertência) – Phil. Me chame de Phil. E sim, Paul está correto, aconteceu algo desse tipo, e o mais interessante é que eu compreendia tudo que estava ouvindo, mas tentava transcrever foneticamente, o que não faz sentido. Além do mais, eu olhava para o teclado da minha máquina, era uma Remington, e não achava as letras que estava procurando, mas não podia perder tempo, porque não só ouvia as vozes, o que os meus personagens estavam dizendo, eu tinha que transcrever os diálogos completos, e também dizer o que eles estavam fazendo, mostrar o ambiente... e eu não reconhecia as palavras, mas sabia o que significavam. Era um pouco como o fenômeno místico do “falar em línguas desconhecidas”. Você deve ter familiaridade com certos conceitos da psicologia e da linguística contemporânea, em que se determinadas áreas do cérebro forem estimuladas elas poderão produzir idéias não-verbais semelhantes às que temos às vezes nos sonhos. Sonhamos com algo e ao acordar, mesmo lembrando de tudo com clareza, percebemos que não há palavras associadas àquela impressão tão vívida, tão forte, que nosso cérebro retém.

 

BT – Achei interessante esse aspecto de que você parecia estar “vendo” a cena, e precisando descrevê-la.

 

DICK – Pelo que vi, você também é escritor, certo? Então você deve ter tido experiências similares, em algum momento. É como se estivesse acontecendo algo num palco, ou numa tela de TV, mais precisamente. É algo meio independente de nossa vontade. Não são visões no sentido religioso da palavra, eu diria antes que se trata de um processo imaginativo tão sofisticado que adquire um sistema operacional próprio, não necessita de decisões da nossa consciência para elaborar cada detalhe.

 

BT – Robert Louis Stevenson dizia que com ele acontecia um processo semelhante. Bastava-lhe fechar os olhos, às vezes, para presenciar pequenas cenas, onde aconteciam coisas que o deixavam totalmente surpreso.

 

DICK – Acho que acontece com muitos de nós. Como se tivéssemos duas mentes rodando em paralelo, uma delas imaginando situações e projetando nessa “telinha” que vemos com os olhos fechados, e a outra sendo capaz de olhar e de anotar o que está vendo. Porque para mim todos eles são reais, ou pelo menos tão reais quanto eu. Joe Chip é real. Ragle Gumm é real. Eu vejo o que acontece com eles mas não tenho poder de influir naquilo, assim como não tenho poder de influir num filme que passa na TV.

BT – Sempre fiquei admirado com a sua capacidade de escrever sem parar durante 15 ou 20 horas, de terminar um romance de três ou quatro dias.

 

DICK – Justamente por isso: porque não posso parar. Aquilo não para de acontecer, e eu tenho que ficar anotando. Se parar para fazer uma refeição e dormir, quando conseguir ligar aquilo de novo tudo já acabou, tudo já aconteceu. Se tiver sorte, está acontecendo uma história diferente, com outras pessoas, e então lá vou eu de novo. Mas a primeira história se perdeu.

 

BT – Você deixa muitas histórias inacabadas? Eu deixo centenas.

 

DICK – Ah, mas talvez você não dependa tanto da venda essas histórias, para sobreviver! Quando a gente vive disso, tem que terminar as histórias. Assim, há histórias que me arrebatam de início, seja um conto, seja um romance, e eu vou correndo atrás dela, horas seguidas, dias seguidos, mas aí acontece qualquer coisa, porque a vida da gente está sujeita a interferências, e preciso interromper. Depois, tudo acabou, não existe mais a visão inicial mas eu preciso me obrigar a terminar aquela história que não entendo mais, não sei mais o que os personagens queriam fazer... Às vezes a história se interrompe sozinha.

 

BT – Tenho essa impressão com Time Out of Joint, a história simplesmente se detém.

 

DICK – Pode ser. Tive algo parecido com Flow My Tears. Posso lhe oferecer um uísque?

 

Aceito; não é minha bebida preferida, mas não posso perder uma chance como esta. Dick continua falando enquanto serve duas doses otimistas de Laphroaig, gelo e soda, entrega-me uma. Começa a passear pela sala, de copo em punho, desafiador, altivo, baronial; passa os dedos pela barba alvinegra, com os olhos brilhando, parece a ponto de levantar voo.

 

DICK – Uma das minhas teorias a respeito das drogas, da maioria delas, é que elas não trazem inspiração, no sentido de que não fornecem idéia nenhuma. As idéias, pelo menos as idéias literárias, que são do reino da minha experiência pessoal, decorrem de um processo intelectual desencadeado por fatores emocionais. Veja o caso do álcool, por exemplo. Podemos passar o resto da tarde bebendo aqui, conversando, e iremos nos entusiasmando, porque a bebida nos provoca essa inebriação, essa euforia. Ela não dá idéias nem a mim nem a você. Acontece que – vamos fazer uma comparação com dirigir automóveis – as idéias intelectuais, para fluírem, requerem que o automóvel esteja na terceira ou quarta marcha, esteja avançando com bastante rapidez. Elas não ocorrem num carro parado. Quem põe o “carro” da nossa mente em movimento? As emoções. Um indivíduo deprimido, e olha que eu sei o que é depressão, não produz idéias, ele é incapaz de desenvolver uma história equivalente a “boy meets girl”, está além de sua capacidade. É a emoção que esquenta nossa mente e nos faz produzir idéias, quando vamos trocando de marcha e entramos na velocidade necessária. Nesse momento, nosso cérebro está excitado pelas emoções, o que acontece nele (Já sentado novamente, PKD ilustra pequenas “explosões” prendendo as pontas dos dedos com os polegares e soltando-as bruscamente) são girândolas de pensamentos. É o enthusiasmus, uma palavra latina que vem do grego, indicando que estamos possuídos por um espírito. Que espírito? Ora, o nosso.

 

BT – E o LSD? Os alucinógenos em geral?

 

DICK – Boa questão. Neste caso, é diferente. As drogas psicodélicas produzem alterações químicas permanentes no cérebro, se não permanentes, pelo menos demoradas, que custam a se dissipar; portanto, são de outra natureza. Por isso tenho certa retração em relação a elas, porque como você deve saber tenho tendências paranóides às vezes, esquizofrênicas, não quero ultrapassar certos limites. Mas as anfetaminas, as coisas que compramos na farmácia não são psicodélicas. Elas mexem com nosso estado emocional, acelerando-o, retardando-o, produzindo energia... São mais seguras, mais fáceis de controlar, embora também tenham um custo para o organismo, disso tenho consciência. Pago um preço. Mas e daí? Os livros ficam. 

 

BT – Nessa direção, eu diria que seus livros mais poderosos são Palmer Eldritch e Scanner Darkly.

 

DICK – São dois dos meus preferidos, porque sinto que neles fui bastante longe em assuntos que me tocam muito de perto, têm a ver com minha história pessoal. Alguns críticos elogiam o que esses livros têm de visionário ou de fantástico, outros até se queixam deles por esse mesmo motivo, mas para mim é como se fossem pedaços de um diário que eu tivesse mantido em certas fases da minha vida. Não tenho diário, meu diário são meus romances. Aquelas pessoas são eu.

 

(Editora Aleph, São Paulo)


BT – Você é os seus vilões, também? Você é Howard Straw, é Palmer Eldritch?...

 

DICK – Num certo sentido. Eu não sou Eldritch, no sentido de que ele não parece com a imagem que tenho de mim mesmo; ele pode ser a encarnação da minha percepção do Mal. Palmer Eldritch é uma criatura infra-humana, ao invés de sobre-humana, por maiores que sejam os seus poderes artificialmente aumentados. Ele me desperta terror, como desperta também em muitos leitores, ou pelo menos é o que ouvi dizer. Vejo-o em minha mente – e foi daí que surgiu sua imagem – como aquelas casamatas de cimento da I Guerra, duas aberturas horizontais no lugar dos olhos, onde ficam ocultos os canhões. É essa imagem destrutiva que brotou na minha mente como representação do Mal. Dei-lhe um nome, um corpo, uma história, e ele foi arrastando tudo. Mas também sou Leo Bulero, o homem comum que vive à sua sombra.

 

BT – Há uma certa unanimidade, sobre o fato de seus protagonistas não serem heróis de inteligência superior, coragem superior, qualidades superiores. São o Zé da Silva que trabalha num supermercado, num escritório, no balcão de uma loja... sujeitos comuns que de repente enfrentam poderes cósmicos ou grandes catástrofes.

 

DICK – Sim, porque eu sou um desses. Tenho minha vaidade, talvez, mas nunca me considerei um indivíduo excepcional, pelo menos em relação aos meus colegas escritores, aos meus amigos, à rapaziada da rua que vinha fumar maconha da minha casa. Eu me acho um cara comum e sei o que os caras comuns pensam.

 

BT – O que não impede que você tenha também seus personagens “maiores que a vida”.

 

DICK – Sim, porque como todo sujeito comum eu também tenho uma admiração meio infantil por heróis. Eu admiro muitos desses líderes: Sadat, Kadhafi, Che Guevara... Uma admiração meio irracional em alguns pontos, talvez, mas é a admiração que nós, os Zés da Silva, sentimos pelos homens que enfrentam os desafios do Poder.



BT – Gino Molinari, o governante mundial em Now Wait For Last Year, é um grande personagem.

 

DICK – Sim! Ele é imprevisível, ele morre, ele ressuscita, ele trai, ele manipula, ele blefa e ganha, ele vai para a cama com uma adolescente... Ele é cheio de defeitos, é mentiroso, é covarde, é aproveitador, mas é uma figura vital, ele não é Palmer Eldritch, que tem a energia da morte.

 

BT (olhando o relógio) – Phil, eles dão muito pouco tempo à gente. Eu ficaria aqui um dia inteiro, ou mais.

 

DICK (levantando-se, olhando o relógio da parede) – Eu também. Não posso me queixar. Todo dia vem uma pessoa diferente, pena que não posso encher a sala de gente, como em outras época, mas enfim... Vamos, é perigoso se atrasar.


Descemos os degraus, passamos pelo pequeno pátio e saímos de novo para a rua. Volto a olhar o relógio: faltam poucos minutos para o limite que me deram. Ele para na calçada, com o peito estufado, as mãos nos quadris. Faz um gesto com o queixo apontando a casa.

 

DICK – Não sei se percebeu... Aqui fora é Fullerton, aquele redutozinho republicano, chego a pensar que estou em Stepford. Minha sala lá dentro é minha sala em Santa Ana, mas não sei se você reparou.

 

BT – Não, não percebi, mas acho interessante.

 

DICK – Claro. Afinal, desde que nascemos vivemos num idio kosmos, numa simulação do que nossos sentidos nos informam, uma simulação permanentemente renovada. A realidade tem uma forma diluída, que é o mundo da matéria à nossa volta (faz um gesto largo, mostrando o ambiente). E uma forma concentrada, que é a mente humana, onde essa matéria é reprocessada. É como o oxigênio diluído que respiramos, e o oxigênio em combustão na chama de um fósforo. A mente é a chama do fósforo.

 

BT – Uma boa imagem.

 

O carro que me trouxe vem se aproximando. Olho para longe, e o horizonte que antes me parecera nítido agora está brumoso, desfocado, com pouca resolução; e não tem mais colinas, é como um areal amarelado, desbotado, que se expande e avança em nossa direção. Ergo os olhos: começa a anoitecer, o céu tem uma bela cor violeta com estrelas douradas, mas num determinado ponto a noroeste há um retângulo negro, vazio, como o local de onde uma placa se despregou. Aponto para lá e gracejo com Phil:

 

BT – Eles precisam construir um universo que não se faça em pedaços.

 

DICK (Olha para cima, mas parece não entender) Sim, parece que é mesmo.

 

O carro para junto ao meio-fio; o motorista faz um gesto, dizendo que eu me apresse. O mundo em volta começa a escurecer. O horizonte está se quadriculando em pixels cada vez maiores.

 

BT (estendendo a mão) – Phil, foi um prazer poder vir até aqui, conversar com você. Se cuida. Toma um spray de Ubik.

 

DICK – Ubik? (aperta minha mão) O que é isso?

 

Seu olhar está se esvaziando, está com aquela expressão lancinante de um pai com Alzheimer. Ergue a mão, numa despedida vaga, hesitante, volta para dentro de casa arrastando os chinelos. Entro no carro. O motorista acelera e comenta: “É sempre assim, ele sempre estoura os cinquenta minutos, adora conversar”.

 


(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Julio Cortázar:

Agatha Christie: