terça-feira, 17 de março de 2020

4560) Quatro arrependimentos (17.3.2020)



(ilustração: Davit Mirzoyan)

1
Hélcio Sussekind Nogueira, 30 anos, executivo júnior da SemperLife, uma empresa de seguros de ascensão meteórica nos primeiros anos desta década, mas não mais meteórica do que a do próprio Hélcio, conhecido rapidamente na cúpula da empresa por sua inteligência viva, elétrica, sempre um passo adiante de todos, o cara que pensava todas as hipóteses e alternativas em meros segundos e extraía disso a decisão certa, o cara que ganhava batalhas perdidas empregando um zás-trás de argumentos irrespondíveis, fazendo bambear as certezas de administradores-sênior mais calejados. Nesse dia, Hélcio preparou-se ao longo de uma noite insone de comprimidos, café e cigarros, fotografou mentalmente cada uma das 142 páginas do relatório geral do qual (ele sabia muito bem) cada vice-presidente na manhã seguinte só teria lido a parte que lhe dizia respeito, preparou sua estratégia, dali mesmo da poltrona juncada de papéis e notebooks abertos googlou duas ou três novidades recém-desabrochadas no mercado, visando efeito surpresa; e às onze da manhã, banhado, barbeado, fresco como uma madressilva, encarou o bureau de autoridades que esperavam seu apanhado; “Vamos,” provocou todo canchudo o Dr. Herthal, “mostre aí um dos seus raciocínios quânticos,” e não precisou mais, ele deslindou em dezessete minutos de solilóquio implacável o gigantesco blefe que preparara (porque na realidade contava mais com o que os colegas mais velhos ignoravam do que com o que ele próprio eventualmente soubesse), amarrou tudo em três minutos e oito ítens, desfechou seu veredito final diante da mesa enorme e muda... e, triunfante, tirou um cigarro do maço e o acendeu. Pelo filtro.

2
Harriet B. Weinberg, 41 anos, agente imobiliária na Filadélfia (EUA), andava com dores na coluna, dormia com dificuldade, nos momentos de bom-humor dizia que preferia ficar tetraplégica para nunca mais ter que levantar da cama, que vestir um terninho escuro, empunhar uma pasta estufada de contratos e planilhas e panfletos e plantas baixas e sair batendo calçada de salto alto elogiando para casais desconfiados e avarentos as supostas vantagens de adquirir algum daqueles chalés cambaios, um daqueles apartamentos infiltrados de mofo e vazamentos, daquelas quitinetes asfixiantes situadas a dois metros de um trem de subúrbio e seu trovão pontualíssimo; tanto se queixou que a filha lhe indicou um massoterapeuta em cuja maca ela se estirou cheia de expectativas, e o iraniano esfregou as mãos, garantiu-lhe que sairia dali sentindo-se “como se tivesse apenas 45”, e quando ela lhe pediu que tivesse cuidado com sua cervical, que lhe incomodava muito, ele garantiu que iria começar justamente por ali o milagre, e depois de alguns passeios exploratórios com polegares cruéis segurou-lhe a cabeça, aprumou-a num ângulo igual ao da ilustração do livro e puxou-a com força na direção norte-por-noroeste, produzindo um estalo fortíssimo que trouxe à porta a secretária e produziu uma exclamação sufocada de “oh my God” por parte do terapeuta, e uma dor lancinante que percorreu Harriet de cima a baixo como a espada de fogo de um anjo vingador, dor que se manteve latejante durante todo o tempo necessário para a convocação e a chegada dos paramédicos, a transferência dela para a padiola, para o elevador, para a ambulância, para o hospital e para a mesa de cirurgia urgente-urgentíssima onde seu último pensamento antes de mergulhar no torpor anestésico foi sobre as piadas irreverentes das quais agora se arrependia diante de Deus e de sua misericórdia, que dizem infinita.

3
Jakob Oberstreiter, 48 anos, bombeiro hidráulico, decidiu aceitar o convite para o natalino jantar-confraternização da firma onde trabalhava, botou a melhor roupa, raspou as economias, pegou o trem rumo ao clube na cidade vizinha onde o evento transcorreu com espumantes e girândolas, muitas bandejas, muitas opções, solícitos garçons ansiosos para que ele consumisse logo, e Jakob naquela de “é hoje só, amanhã não tem mais”, e poucas horas depois ele já se sentia um passageiro de uma espaçonave que oscilava, adernava para a direita, para a esquerda, chacoalhava e lhe fugia aos pés. Com o auxílio da uma parede à esquerda e outra à direita ele foi avançando pelo corredor que lhe indicaram, achou o logotipo tranquilizador, entrou no banheiro, foi à privada, trancou-se por dentro, arriou as calças, sentou, desmoronou ali todas as ruínas orgânicas que trazia dentro de si, como um Louvre malsão que recebesse ordem de despejo. Ao dar-se por terminado, e antes mesmo de apertar a descarga, limpou-se, ficou de pé, puxou as calças para cima, acertou correr o fecho eclé, acertou afivelar o cinto, e quando num gesto maquinal bateu a mão no bolso direito traseiro da calça para se certificar da presença reconfortante da carteira, constatou que o bolso estava frouxo e vazio, e a busca aleatória pelo chão do banheiro nada lhe revelou, mas erguendo-se de novo em toda sua estatura, ele vislumbrou a carteira, que evidentemente caíra do bolso onde estava, no exato momento em que a calça fora erguida de volta, e agora boiava cegamente ali, dentro da privada, encharcada de tudo, ensopada de tudo, embebida e bêbada de tudo que a vida tinha para lhe oferecer.

4
Rebeca Ubiratan da Silva, 31 anos, curso incompleto de Direito, recém-casada, residente em Campos dos Goytacazes (RJ), comoveu-se ao ouvir o marido, Lourival Carneiro da Silva, 36 anos, desempregado, descrever os percalços por que passava sua tia por parte de mãe, Genecy Barreiros, 45 anos, prendas do lar, enviuvada há meses após um horripilante acidente numa engarrafadora de refrigerantes, e por força dessa comoção sugeriu ao marido que durante o processo de despejo e descoberta de um novo lar a tia Gené passasse um tempinho na casa deles, com o que o marido concordou meio a contragosto, mas luto é luto, e a Tia Gené concordou também, só que de forma entusiástica, e transferiu-se para lá com armas e bagagens, dando início a um torvelinho de emoções que (confessou Rebeca depois a uma amiga muito próxima) “me pegou pelo rabo, deu dez voltas no ar e me jogou no Japão”, porque mal se abancou no quartinho-de-fora da casa onde viviam os dois pombinhos a Tia Gené mexeu no cardápio, interferiu na feira semanal, explodiu o cronograma de um casal pacato e provisoriamente sem filhos, instaurou novas despesas, valeu-se do conceito abstrato de feng-shui para ressignificar a mobília, brigou com o sem-teto inofensivo que dormia embaixo da árvore da esquina, arrumou uma encrenca com o gerente do mercadinho lá na praça por causa de um cartão magnético inválido, encrespou-se de rivalidades com a vizinha da esquerda, a evangélica Mirtes Alcoforado, 55 anos, a quem ela passou a provocar diariamente ligando em todo volume um Spotify de funks pornô, “só pra contrariar, eu não gosto”, explicou ela feliz aos anfitriões, e logo em seguida declarou guerra aos vizinhos da direita, o casal Belarmino, cujos cãezinhos magros, orelhudos e irrequietos foram misteriosamente amanhecendo em rigidez cadavérica, um por um, enquanto os Belarminos ensandeciam e a polícia coçava a cabeça, dizendo precisar de provas materiais, coisa que não havia, havia apenas a imaterialíssima prova do sorriso bem-dormido de Tia Gené, cuja janela dava para aquele lado, sendo que ela já apontava suas baterias rumo ao vizinho da frente, o doutor Wellington, ao descobrir em quem ele tinha votado, o que a levou a uma febre cívica de panfletos diários enfiados por baixo das portas ou janelas, de santinhos espargidos no gramado, de cumprimentos sarcásticos gritados da calçada oposta todas as manhãs antes que o doutor por isso mesmo abdicasse de sua mangueirada matinal na grama, situação esta que perdurou até que Rebeca meteu os pés e disse CHEGA, e a Tia Gené num instante arrumou um correspondente em Angra dos Reis disposto não somente a aturá-la como a ir buscar de van os seus pertences, cercada pelos quais ela acenou em despedida e sumiu na esquina, e o bairro inteiro escutou o suspiro de alívio do casal.