sexta-feira, 10 de outubro de 2014

3627) Lovecraft e racismo (10.10.2014)





O World Fantasy Award, um dos principais prêmios da literatura fantástica, já foi recebido por muita gente importante. Na categoria de “Lifetime Achievement” (conjunto da obra), já foi para Ray Bradbury, Jorge Luís Borges, Italo Calvino, Harlan Ellison. Consiste num pequeno busto que reproduz H. P. Lovecraft. Em 2011, foi premiada ("Melhor Romance") a autora nigeriana-americana Nnedi Okorafor, que depois manifestou seu constrangimento ao ler um poema racista de Lovecraft. E agora há um movimento para mudar o prêmio, para não constranger pessoas que se julguem (possíveis) alvos de racismo.



Há indivíduos que são racistas e fazem disso o carro-chefe de sua vida, como os membros de Ku-Klux-Klan ou as autoridades da África do Sul na época do apartheid, etc.  Vivem em função disso; é a principal bandeira ideológica de tudo que fazem.  Esses, para quem não é racista, devem ser combatidos com a mesma firmeza com que perseguem suas vítimas.



E há pessoas que são racistas por mera osmose, porque foram criadas num ambiente onde isso era ponto pacífico, era um saber herdado e compartilhado sem jamais ser discutido.  Por isso é importante discutir publicamente o racismo, talvez não para mudar a opinião da categoria anterior – esses são o “núcleo duro” do racismo, não podem ser convencidos, podem apenas ser neutralizados.  Mas a discussão é para esses indivíduos que desprezam pretos ou judeus porque – como parece ser o caso de Lovecraft – cresceram num ambiente onde “gente de respeito não se mistura com gente inferior”, etc. 



Dá-se algo parecido com as religiões.  Muita gente cresce num ambiente vagamente religioso e adota a religião dos pais sem lhe dar muita atenção; torna-se geralmente aquele tipo “crente, mas não praticante”, e muitas vezes, se apertado, se colocado no canto da parede, o sujeito percebe que nem crente ele é pra valer.  Aceitou sem muito interesse, mas não crê naquilo de verdade. 


E Lovecraft? Parece que ele era um meio-caminho entre essas duas posições. Era um sujeito com traumas profundos, enorme senso de inadequação, inaptidão sexual, fantasias de nobreza e aristocracia, impulsos racistas que eram uma fantasia a mais.  Mas nada disso estava sendo celebrado quando foi dada sua imagem ao prêmio. A celebração era do seu talento como escritor e sua influência no gênero fantasia/horror.  Todo escritor tem defeitos como pessoa, tem falhas de caráter, tem ações ou omissões politicamente condenáveis, já se envolveu com atividades capazes de desagradar A ou B.  Vai ser difícil (se resolverem trocar mesmo a estátua) achar um escritor sem defeitos, pra botar no lugar dele.