quarta-feira, 30 de maio de 2018

4352) Traduzindo títulos (30.5.2018)





De vez em quando a gente acaba se pondo no lugar de um tradutor que recebe a tarefa de traduzir o título de um filme estrangeiro.

“Tradutor”, claro, no sentido mais amplo do termo. Imagino que quem toma essa decisão final é um funcionário graduado da distribuidora. Não é o mesmo pobre-diabo a quem cabe criar as legendas em português com os diálogos do filme. (Uma das tarefas mais ingratas e mal remuneradas do Museu de Horrores que é a indústria cultural.)

Penso, por exemplo, no cara que ia distribuir um filme intitulado Some Like it Hot. Ele não precisava de dicionário para entender. A frase é boa, mas servia para título? Não servia. Ele deve ter feito um esforço para imaginar (o filme é de 1959) a fachada iluminada de um cinema de rua brasileiro, e o título: “Alguns gostam disso quente”.

Ele pensou, remexeu a frase, trocou palavras, procurou manter-se próximo do sentido, e produziu: Quanto Mais Quente Melhor. Um nome com mais ritmo, terminando numa sílaba forte, contendo uma fórmula comparativa de fácil entendimento. Nota dez para ele.

Costumamos mangar dos títulos nada-a-ver, como traduzir Blow Up por Depois Daquele Beijo, ou traduzir Persona por Quando Duas Mulheres Pecam. Mas algumas mudanças são obrigatórias.

Vi uma vez um distribuidor comentando um filme de Sidney Pollack. É a história de um rapaz que trabalha como voluntário num centro de ajuda telefônica. Uma mulher liga dizendo que tomou pílulas para se matar. Ele fica conversando com ela, mantendo-a lúcida, enquanto a equipe rastreia a ligação e corre para salvar a vida dela.

O filme se chama The Slender Thread. “Quem vai sair de casa para ver um filme chamado A Linha Fina?”, dizia o distribuidor. A linha fina é o fio telefônico, claro. O filme se chamou no Brasil Uma Vida em Suspense. Nada original – mas muito mais sensato.

A maior parte dessas traduções tenta, visivelmente, se manter próxima da intenção do original, mas produzindo uma fórmula diferente, mais chamativa.

O filme de Jean-Luc Godard Pierrot Le Fou poderia ser traduzido aqui como Pierrot o Louco, ou Pedrinho o Louco como ficou em Portugal. Alguma alma caridosa resolveu chamá-lo, sei lá por quê, de O Demônio das Onze Horas, um desses casos de invenção nada-a-ver que acaba sendo bem-vinda.

O título tem que ter-a-ver com o filme, e tem que atrair o público, mesmo que seja apenas pelo inusitado de sua forma.

Nos anos 1960 apareceu uma moda efêmera de títulos longos, como o da comédia maluca de Ken Annakin, Esses Homens Maravilhosos e Suas Máquinas Voadoras, ou Como Voei de Londres a Paris em 25 Horas e 11 Minutos (“Those Magnificent Men in Their Flying Machines, or How I Flew from London to Paris in 25 Hours 11 Minutes”), a comédia de humor negro apocalíptico de Stanley Kubrick Dr. Fantástico, ou Como Aprendi a Não me Preocupar e a Amar a Bomba (“Dr. Strangelove, or How I Learned To Stop Worrying and Love the Bomb”), etc.

Foi  uma década engraçada essa, em termos de nomes compridos. Isso pipocou no cinema, na literatura, nos nomes de bandas de rock.

Digressão: o mesmo ocorreu na ficção científica. Isaac Asimov queixava-se, nos editoriais do seu Magazine, de que no tempo dele os contos de FC se intitulavam “Homecoming” ou “Nightfall” – e agora estavam aparecendo histórias com nomes tipo “The Doors of His Face, The Lamps of His Mouth” ou “Repent, Harlequin! Said the Ticktockman”.

No caso de um filme estrangeiro, é preciso manter em português algo do charme do título original, mas numa linguagem acessível ao público daqui, e de preferência sem apelar.

Um belo western de Anthony Mann, The Man From Laramie, tinha um título pouco chamativo (Laramie é uma cidade). Alguém resolveu chamá-lo de Um certo capitão Lockhart, o nome do personagem principal. Anos depois, uma adaptação de Érico Verissimo para o cinema acabou se chamando Um certo capitão Rodrigo, em função do personagem Rodrigo Cambará, e fiquei imaginando se este formato de título não teria sido extraído do livro de Érico, que até hoje imperdoavelmente não li.

Um filme de crime, por exemplo, precisa deixar claro esse apelo, o que não é o caso de um título como “Dupla Indenização”, Double Indemnity, o clássico escrito por Raymond Chandler e dirigido por Billy Wilder. No Brasil o filme se chamou “Pacto de Sangue”, que reproduz com fidelidade o elemento básico do enredo e tem o melodrama necessário ao gênero.

Em outros casos, isso se perde. Um grande filme-de-assalto é O Segredo das Jóias, dirigido por John Huston, mas eu preferiria muito mais que ele se chamasse A Selva do Asfalto, “The Asphalt Jungle” no original.

Filmes que no original trazem apenas um nome próprio pedem algo mais animado na tradução. Se você vê um cartaz de um ótimo thriller de Don Siegel, com Walter Matthau, sob o título de Charley Varrick talvez não fique muito entusiasmado, mas O Homem Que Burlou a Máfia certamente fez mais ingressos serem vendidos.

Deve ter sido esse raciocínio que inspirou uma famosa manobra de Expedito, o escolado distribuidor de filmes de Campina Grande, que funcionava ali perto da Feirinha de Frutas, na rua Peregrino de Carvalho. Ele levou Édipo Rei de Pasolini para exibir no sertão paraibano, e o filme naufragou na bilheteria. Expedito não contou conversa: refez os cartazes com o título Édipo, o Homem Que Matou o Rei, e o cinema num instante encheu.

Questionado, ele levava as mãos à cabeça:

– Mas eu estou mentindo, por acaso?! Ele matou o rei, minha gente, esse é o detalhe mais importante da história!