quarta-feira, 6 de julho de 2022

4840) O suspense no título (6.7.2022)



Alfred Hitchcock dizia que muitas vezes o suspense de uma história já começa a partir do título. 

Ele cita o clássico filme de aventuras marítimas, O Motim do Bounty, e diz que o título dá o tom do que o público deve esperar: “Seria muito diferente se o filme de chamasse O Belo Navio Bounty”. (Creio que o título do filme no Brasil foi O Grande Motim.)
 
“Todo título é uma promessa”, foi o que afirmou Jacques Derrida, segundo li por aí. Se ele não disse isso, deveria tê-lo feito, porque a frase é perfeita, e a idéia que contém bate perfeitamente com a proposição de Hitchcock.



O título prepara nosso espírito para o que vamos ver – e o que vamos ver pode ser uma surpresa, ou uma confirmação, ou uma reviravolta, ou um enriquecimento do que foi prometido.
 
Há um divertido romance inglês de crime, O Assassinato de Minha Tia (“The Murder of My Aunt”, 1934), de Richard Hull. Vou dar agora um spoiler, mas acho que dificilmente algum leitor há de ler esse livro, que li na edição portuguesa da Colecção Vampiro.



O narrador passa o livro inteiro planejando diferentes tentativas de matar uma tia rica e herdar o dinheiro dela (ele é um desses rapazes ingleses que preferem ir para a forca do que trabalhar). Nas últimas páginas do livro (estou citando de memória, com décadas de atraso), ele escreve que está se sentindo esquisito, que bebeu alguma coisa oferecida pela Tia, e diz: “Percebo agora, com horror, que o título que dei a estas páginas tanto pode significar “O Assassinato De Que Foi Vítima a Minha Tia” quanto “O Assassinato que Minha Tia Cometeu”. E o livro acaba aí.
 
É um desses casos raros, e brilhantes, em que o título do livro é absolutamente claro e absolutamente enganador.
 
(Aliás, depois que redigi este artigo, fui pesquisar o texto em inglês do livro e vi que o final é completamente diferente do que eu recordava. Não mexi no texto porque sou honesto, e também porque o sentido do meu comentário se confirma, ainda que de outra maneira.)
 
Voltando a Hitchcock, será que na própria obra dele há exemplos de sua tese, exemplos em que o título “põe uma pulga atrás da orelha” do público?
 
Pensei num contra-exemplo que me parece didático. O famoso Um Corpo Que Cai (1958, com James Stewart e Kim Novak) é baseado num romance francês chamado D’Entre Les Morts, título que passa a idéia de alguém que volta “dos mortos”. O filme inteiro se baseia na volta (fictícia e real) de uma mulher que se supõe morta e que mostra estar viva.
 
Mas Hitchcock intitulou o filme Vertigo (=vertigem) e transferiu o foco para o detetive que tem medo das alturas, outro ponto essencial do roteiro. Por que? Certamente (aqui é mera conjetura minha) para deixar que a idéia da “volta de entre os mortos” se construísse sozinha na mente do espectador, ao longo da narrativa. Também é uma estratégia aceitável.



(North by Northwest)
 
O título de Intriga Internacional (1959, com Cary Grant) é em inglês “North by Northwest”, “Norte por Noroeste”, que parece não indicar nenhuma direção clara na rosa-dos-ventos.  Tinha justamente a função de mostrar um indivíduo totalmente desorientado, arrastado por acaso numa trama de espionagem que não lhe diz respeito. O título no Brasil poderia ter sido “Cego em Tiroteio”.
 
Por outro lado, Hitchcock tem The Lady Vanishes (1938), onde uma trama de espionagem faz desaparecer de um trem em movimento uma velhinha aparentemente inofensiva. O romance original se intitula The Wheel Spins (“A Roda Gira”), e não há dúvida de que neste caso o diretor pôs a sua fórmula para funcionar. (Em português, o filme ficou como “A Dama Oculta”, que para mim é inferior a “A Dama Desaparece”.)
 
Que outros exemplos a gente pode achar, de suspense induzido pelo título?
 
Agatha Christie tem um romance chamado Por Que Não Pediram a Evans? (“Why didn’t they ask Evans?”, 1934). Essa é a frase pronunciada por um homem no instante de morrer, no primeiro capítulo. O livro mostra a investigação feita por um casal de jovens detetives amadores, e só nas últimas páginas se esclarece quem era esse misterioso “Evans” e por que não lhe pediram algo – uma informação crucial para a solução do homicídio.


E ninguém pode negar que
E Não Sobrou Nenhum (“And Then There Were None”, 1939) é um “gatilho” de suspense que vai se intensificando a cada capítulo, a cada cadáver descoberto.
 
O suspense (é sempre bom lembrar) não depende de situações de crime, violência, morte. Suspense é a tensão provocada por um evento que deverá acontecer, mas enquanto não acontece provoca em nós uma expectativa ansiosa, que pode ter diferentes conotações. Muitas vezes o título faz uma revelação parcial sobre o conteúdo da narrativa, e ficamos o tempo inteiro ansiosos pela revelação da parte que faltou.
 
Críticos literários já comentaram as múltiplas referências do Ulisses de James Joyce à Odisséia de Homero, mas ressalvaram que se o livro se chamasse Um Dia em Dublin quase ninguém iria perceber as citações homéricas – e eu acredito. É o título que nos alerta, que nos induz. O título nos dá para “cheirar” uma alusão mitológica – e durante o livro inteiro ficamos farejando tudo que se refira a esse mito. É um caso clássico de interpretação direcionada, por via das dúvidas, pelo próprio autor.