quarta-feira, 30 de março de 2022

4808) Colocando as idéias em camadas (30.3.2022)

 

("Babel", de Peter Bruegel)

Qual a melhor maneira de se comunicar uma idéia sutil, uma ideia extraordinária, ou pelo menos distante da experiência comum do leitor?   Talvez pelo retorno dessa ideia em situações diferentes que lhe servem de ilustração, mesmo quando o autor parece estar querendo contar outro fato ou comentar outro assunto. 
 
Isto tanto pode ser uma estratégia deliberada quanto um processo que o autor faz instintivamente.  Grandes escritores têm, muitas vezes, um certo número de idéias fixas que os perseguem durante a vida inteira. 
 
Guimarães Rosa tinha uma obsessão assim com o tema da vitória do espírito sobre si mesmo, ou sobre suas próprias fraquezas.  Leitor de correntes variadas do misticismo e do ocultismo, ele acreditava no poder da meditação, da prece, da concentração mental, para atingir uma disciplina superior sobre as idéias e as emoções.
 
O Grande Sertão: Veredas está costurado de ponta a ponta por este tema, que aparece das formas mais variadas. 



(Guimarães Rosa, entre vaqueiros)
 
Há dois episódios principais.  Um deles (pág. 147-148, 2a. edição) é a lenda, referida por Riobaldo, de que
 
“...qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça pintada.  É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca!” 
 
Existe aí um curioso raciocínio circular, porque para se tornar corajoso o indivíduo precisa praticar uma ação que por si só já requer coragem. 
 
O outro episódio (pág. 408-409) é o divertido diálogo entre dois jagunços, o José Misuso e o Etelvininho, em que o primeiro se propõe a ensinar ao segundo, por 40 mil réis, como fazer para fazer um inimigo errar o tiro.  Segundo ele, basta pensar com força:
 
“Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de lado, não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma cã!...” 
 
Ao que o Etelvininho responde que não vai pagar nada, porque já empregava esse mesmíssimo método, com uma diferença: que no final insultava o outro de “filho de uma cuia!”.  E Misuso retruca: “Então basta que tu me pague só uns vinte milréis...”

 
A concentração mental não é capaz apenas de fazer tremer a mão que dispara, mas de evitar o contágio com o medo alheio, como Riobaldo diz à pág. 377:
 
“Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta”. 
 
O mesmo funciona (pág. 406) para evitar a inveja: “A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes...  Me rejo, me calejo!”.  O autodomínio é uma luta de si consigo mesmo, da força do espírito contra a própria fraqueza.
 
Os exercícios de autossugestão ou de autoconcentração são evocados quando Riobaldo diz (pág. 45-46):
 
“...para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”.  
 
Note-se que todas estas referências surgem espalhadas ao longo da história de um herói problemático, um intelectual que somente se junta ao bando de jagunços com a função de dar aulas ao chefe destes, e que depois descobre ter talento para atirador. 
 
Riobaldo torna-se guerreiro, e mais tarde torna-se chefe, apesar de si próprio, após um pacto com o Diabo ao qual ele próprio fica sem saber se o Diabo compareceu ou não.  “Travessia” é uma palavra chave do romance, entendida, entre outros sentidos (viagem, etc.) como a transformação que só se obtém através da experiência, do esforço, do poder de modificar a si mesmo e aos outros.



Jorge Luís Borges, por outro lado, costura através de sua obra a ideia fantástica de que a mente possa ser capaz de influir no mundo físico.  Uma ideia recorrente, que lhe deu alguns dos seus melhores contos.
 
Em “As ruínas circulares”, um mago sonha um ser humano célula por célula, órgão por órgão, imagina esse indivíduo, que será seu filho, e o faz brotar do nada pelo simples esforço da vontade. 
 
Em “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, ele conta a história de um planeta em que a simples expectativa de encontrar um objeto faz com que ele surja do nada: se um lápis se perde e três pessoas o procuram, isto pode fazer com que surjam três lápis diferentes. 
 
No mundo de Rosa, a mente faz um esforço sobre-humano para moldar a si mesma; no mundo fantástico de Borges, a existência de objetos materiais depende do fato de serem percebidos ou não, e ele conta:
 
“É clássico o exemplo do umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo, e que se perdeu de vista com sua morte.  Às vezes alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro”. 
 
Borges atribui à mente humana o papel de dar e de manter a existência, papel semelhante ao de Deus, como ele mesmo lembra em “Deutsches Requiem”:
 
“Se a atenção do Senhor se desviasse um só segundo da minha mão direita que escreve, esta cairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem luz”. 

 
Reiterações desse tipo, salpicadas ao longo de um extenso romance, como o de Rosa, ou de vários contos curtos, como os de Borges, acabam dando espessura e peso a uma ideia. Talvez o leitor a visse com estranheza se fosse apresentada às pressas, ou, pior ainda, se o autor tentasse dar-lhe uma extensa justificativa, cheia de exemplos, ao longo de várias páginas. 
 
O que estes dois autores fazem não é mais do que deixar que a ideia aflore, num movimento emocional espontâneo, no ato da escrita.  Entranhada em sua visão literária do mundo, a ideia emerge nos momentos em que é necessária, revestindo-se dos exemplos que cabem em cada situação. 
 
E assim, camada vai se superpondo a camada, permitindo-nos recompor em nossa mente a ideia abstrata por trás de todas essas instâncias concretas.
 


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista “Língua Portuguesa”, Editora Segmento, São Paulo, # 62, dezembro de 2010)