segunda-feira, 18 de abril de 2022

4814) "Os Ambulantes de Deus" (18.4.2022)

 

 
Se eu tivesse tempo e sossego na vida, uma das tarefas a que iria me dedicar seria a (re)leitura da obra romanesca de Hermilo Borba Filho, um autor dos mais importantes na formação literária da minha geração.
 
Hermilo tinha um pé na cultura popular (o teatro de mamulengo), no teatro clássico, no conto, no romance. Estava por toda parte. Foi o primeiro escritor brasileiro que vi usar desenhos e quadrinhos ilustrando um romance (Agá, 1974). Escreveu uma biografia de Henry Miller. Foi em muitos sentidos um dos mentores intelectuais de Ariano Suassuna, dez anos mais moço do que ele, quando Ariano, ainda bem jovem, começou a atuar em teatro.


(Hermilo, Galba Pragana e Ariano Suassuna, 1946)
 
O último romance de Hermilo foi Os Ambulantes de Deus (Rio. Civilização Brasileira, 1976), lançado pouco depois de sua morte aos 58 anos.
 
É um livro curioso que de certa forma vale como uma resposta pessoal de Hermilo à moda do “realismo mágico”, as histórias fantásticas com ambientação interiorana, à maneira de Gabriel Garcia Márquez, Miguel Ángel Astúrias, Manuel Scorza, Juan Rulfo e tantos outros, que no começo dos anos 1970 as editoras brasileiras estavam lançando febrilmente, um título atrás do outro.
 
“Realismo mágico” é um rótulo impalpável, que serve como disfarce para aconchambrar num mesmo pacote autores tão diferentes entre si quanto os dessa listinha acima. Falei de “histórias fantásticas com ambientação interiorana” para trazer para perto do livro de Hermilo. O chamado “realismo mágico” de Julio Cortázar e Jorge Luís Borges, por exemplo, não teve nada a ver com esse. É mais urbano, mais europeizado, mais engravatado, mais livresco.


Os Ambulantes de Deus é uma narrativa compacta, com menos de 150 páginas, contando a viagem extraordinária de uma jangada por um rio. Imagino ser o rio Una, que banha Palmares, a cidade natal do autor, descrita e transfigurada por ele em inúmeros livros. Principalmente a tetralogia de romances “Um Cavaleiro da Segunda Decadência”: Margem das Lembranças (1966), A Porteira do Mundo (1967), O Cavalo da Noite (1968) e Deus no Pasto (1972).
 
A viagem é extraordinária porque, depois que o barqueiro e seus cinco passageiros sobem na jangada, ela passa a percorrer o rio, ora subindo, ora descendo, ora indo da uma margem a outra. Aos meus olhos de leitor leigo, a jangada é aquele tipo de balsa fluvial, presa a um arame ou uma corda que vai de margem a margem, e que o barqueiro desloca puxando.
 
O livro já começa assim:
 
A corrente da jangada estava de cadeado no mourão plantado à beira-rio, ainda não chegara ninguém, não levaria menos de cinco, eram ordens... (...) puxando à mão o arame que, ligando uma margem à outra, fazia deslizar a jangada... (p. 3)
 
Em outros momentos, a jangada se larga “com mais de mil na buraqueira”:
 
...todos achavam que a esta altura já estavam bem no meio do rio, metade da viagem, o pior já havia passado, otimistas, mastigando sementes de jerimum e bebericando canequinhas de capilé, era o vento e era o sol, chegava um canto não se sabia donde mas chegava, havia paisagem e coisa-e-tal e coisas-e-loisas, a jangada correndo mais do que rápido, voando, nas asas do pensamento, era, voando, grito de Cipoal:
– Ei, estamos indo, pessoal!  (pág. 60)
 
Quem puxa a jangada é Cipoal, o barqueiro, um comandante introvertido e centrado, anfitrião das cinco pessoas que nas primeiras páginas vão aparecendo, de uma em uma: Dulce-Mil-Homens, a prostituta de bom coração e que impõe respeito; Amigo-Urso, um bicheiro com sua banqueta, seus lápis e seus cartões de aposta; Recombelo, um calunga (carregador) de caminhão; Cachimbinho-de-Coco, cordelista, com sua maleta de folhetos, cantarolador compulsivo de trechinhos de músicas; e Nô-dos-Cegos, um pedinte com sua cuia e seus óculos escuros, que em horas diferentes parece que vê e parece que não vê.
 
Cipoal recebe esses viajantes e começa então um percurso de convivência. Cinco anos transcorrem sem que a jangada chegue a destino algum, e sem que esse pessoal volte a descer em terra firme, a não ser para breves e surrealistas aventuras, que sempre terminam quando o “aventureiro” volta correndo para o ancoradouro da margem, pula dentro da balsa e Cipoal a puxa de volta para o meio do rio.
 
São cinco anos, que o autor divide em cinco capítulos:
 
1º. ano: a nuvem
2º. ano: a calda
3º. ano: a chuva
4º. ano: a cheia
5º. ano: o sol
 
O lado fantástico do romance se dá através dessa “prisão”, esse encarceramento voluntário que os prende à balsa, e que em alguns momentos tensos lembra uma versão mais lúdica do Anjo Exterminador, de Buñuel, ou do quadro A Balsa da Medusa,  de Géricault.


("A Balsa da Medusa")
 
Ou da jangada de vinhático do misterioso Pai imaginado por Guimarães Rosa em “A Terceira Margem do Rio” (1962).
 
Sob este último aspecto, escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4632-primeiras-estorias-terceira-margem.html
 
Durante o tempo de permanência a bordo, barbas crescem e desaparecem da noite para o dia; árvores são plantadas e dão frutos; Dulce-Mil-Homens é acometida de uma febre parideira, dando à luz uma enfieira de meninos, de 15 em 15 dias; os passageiros veem-se ameaçados por enchentes, proliferações surrealistas de peixes e de criaturas aquáticas, ou pela “calda” (torrente de resíduos das usinas de açúcar, jogados no rio).
 
Há uma sequência bem surrealista (pág. 66 e seguintes) em que Cachimbinho-de-Coco bota na cabeça de encontrar a palavra “fadário”, e por isso desce à terra. Batendo rua, batendo calçada, vai parar numa mansão cheia de câmaras, ou quartos, cuja variedade de nonsense lembra aquele corredor infinito do desenho Yellow Submarine (1968) dos Beatles, onde cada porta se abre para algo espantoso.
 
Cachimbinho vai de porta em porta. Na primeira câmara, encontra “uma poesia escrita por Pedro Álvares Cabral”; na segunda, “Prometeu acorrentado, o diabo do abutre beliscando seu fígado e fazendo dele um patê”; na terceira, três salafrários dali da zona usineira, “os três loroteiros empedernidos Mucurana, Goguéia e Bole-Sem-Tempo”; na quarta, “uma mulher loura, loura e nua, nua e morta, descendo por um riacho, enquanto cantava endechas de cortar o mais doce coração”; e por aí vai.
 
Outra aventura nonsênsica é a de Amigo-Urso que desce à terra com a compulsão irresistível de reencontrar um canivete “marca Corneta” que teve na infância, e vai parar numa bodega sortida, cuja placa informa:
 
Compra-se e vende-se toda a espécie de objetos novos e usados – Aceitam-se mercadorias em consignação, pelo sistema de percentagem, contra promissórias e cheques sem fundos – FOB ou CIF – Objetos roubados – Penhores – Todo e qualquer negócio realizado em benefício do freguês depois dos interesses do proprietário – Cuidado para não ser enrolado – Olho vivo e muito siso – Pechinchas a preço de ocasião – Aceitam-se encomendas de morte – Ver para crer. (pág. 82)
 
A versão hermiliana de Realismo Mágico é nesse tom, uma mistura constante entre o cruamente verdadeiro e o estapafúrdio, mesclado o tempo todo com a gargalhada báquica e pantagruélica dos indivíduos de grandes apetites.
 
Não é o Nordeste do sertão, com o ascetismo de seus cangaceiros, o fantasma endêmico da seca, as vastidões silenciosas cravejadas de pedreiras. 

O Nordeste de Hermilo é a zona da mata, úmida, fértil, pulsante de húmus, lúbrica, machista, violenta, hedonista e cruel. É mais o Nordeste de Gilberto Freyre e de Jorge Amado do que o de Graciliano Ramos. E por toda parte as usinas de açúcar bombando, e os antigos engenhos se desfazendo em ruínas, enquanto a impingem do canavial se alarga, se espalha, botando abaixo a mata atlântica.
 
Leitor voraz e erudito, Hermilo salta com facilidade das piadas fesceninas do teatro de mamulengos para a dicção apocalíptica dos profetas:
 
Houve um golpe militar, um tristíssimo golpe militar em nome da liberdade; e nesse golpe militar viam-se cabeças rolando no meio da rua, pernas penduradas nos fios elétricos, testículos nos açougues, intestinos enlaçados nas árvores; miolos esparramados pelo calçamento, e houve a morte lenta, conseguida depois de cada centímetro de dor; e houve um morto em cada casa e os homens se transformaram em inimigos dos homens...  (pág. 97-98)
 
É um grande título desse gênero nebuloso que seria o “romance fantástico nordestino” onde já brilham o Romance da Besta Fubana (1984) de Luís Berto, o Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna, As Pelejas de Ojuara (1986) de Nei Leandro de Castro, A Cachoeira das Eras (1979) de Carlos Emílio Corrêa Lima... até títulos mais recentes como A Dançarina e o Coronel (2014) de Aldo Lopes e O Espelho dos Girassóis (2020) de Maviael Melo.
 
E muitos mais, é claro; estou citando de cabeça os autores com quem tenho alguma proximidade, e títulos que me passaram pelas mãos nos últimos meses. Com esse negócio de pandemia e quarentena, o tempo parece que parou de correr. Ou corre numas direções, e fica parado em outras. Hermilo, mais uma vez, é quem tinha razão:
 
...mas a jangada corria, correndo sem sair do lugar, ora já se viu que coisa... (pág. 18)
 
A gente saindo amanhã bem cedinho talvez chegue ontem. (pág. 20)