quarta-feira, 30 de março de 2022

4808) Colocando as idéias em camadas (30.3.2022)

 

("Babel", de Peter Bruegel)

Qual a melhor maneira de se comunicar uma idéia sutil, uma ideia extraordinária, ou pelo menos distante da experiência comum do leitor?   Talvez pelo retorno dessa ideia em situações diferentes que lhe servem de ilustração, mesmo quando o autor parece estar querendo contar outro fato ou comentar outro assunto. 
 
Isto tanto pode ser uma estratégia deliberada quanto um processo que o autor faz instintivamente.  Grandes escritores têm, muitas vezes, um certo número de idéias fixas que os perseguem durante a vida inteira. 
 
Guimarães Rosa tinha uma obsessão assim com o tema da vitória do espírito sobre si mesmo, ou sobre suas próprias fraquezas.  Leitor de correntes variadas do misticismo e do ocultismo, ele acreditava no poder da meditação, da prece, da concentração mental, para atingir uma disciplina superior sobre as idéias e as emoções.
 
O Grande Sertão: Veredas está costurado de ponta a ponta por este tema, que aparece das formas mais variadas. 



(Guimarães Rosa, entre vaqueiros)
 
Há dois episódios principais.  Um deles (pág. 147-148, 2a. edição) é a lenda, referida por Riobaldo, de que
 
“...qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça pintada.  É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca!” 
 
Existe aí um curioso raciocínio circular, porque para se tornar corajoso o indivíduo precisa praticar uma ação que por si só já requer coragem. 
 
O outro episódio (pág. 408-409) é o divertido diálogo entre dois jagunços, o José Misuso e o Etelvininho, em que o primeiro se propõe a ensinar ao segundo, por 40 mil réis, como fazer para fazer um inimigo errar o tiro.  Segundo ele, basta pensar com força:
 
“Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de lado, não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma cã!...” 
 
Ao que o Etelvininho responde que não vai pagar nada, porque já empregava esse mesmíssimo método, com uma diferença: que no final insultava o outro de “filho de uma cuia!”.  E Misuso retruca: “Então basta que tu me pague só uns vinte milréis...”

 
A concentração mental não é capaz apenas de fazer tremer a mão que dispara, mas de evitar o contágio com o medo alheio, como Riobaldo diz à pág. 377:
 
“Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta”. 
 
O mesmo funciona (pág. 406) para evitar a inveja: “A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes...  Me rejo, me calejo!”.  O autodomínio é uma luta de si consigo mesmo, da força do espírito contra a própria fraqueza.
 
Os exercícios de autossugestão ou de autoconcentração são evocados quando Riobaldo diz (pág. 45-46):
 
“...para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”.  
 
Note-se que todas estas referências surgem espalhadas ao longo da história de um herói problemático, um intelectual que somente se junta ao bando de jagunços com a função de dar aulas ao chefe destes, e que depois descobre ter talento para atirador. 
 
Riobaldo torna-se guerreiro, e mais tarde torna-se chefe, apesar de si próprio, após um pacto com o Diabo ao qual ele próprio fica sem saber se o Diabo compareceu ou não.  “Travessia” é uma palavra chave do romance, entendida, entre outros sentidos (viagem, etc.) como a transformação que só se obtém através da experiência, do esforço, do poder de modificar a si mesmo e aos outros.



Jorge Luís Borges, por outro lado, costura através de sua obra a ideia fantástica de que a mente possa ser capaz de influir no mundo físico.  Uma ideia recorrente, que lhe deu alguns dos seus melhores contos.
 
Em “As ruínas circulares”, um mago sonha um ser humano célula por célula, órgão por órgão, imagina esse indivíduo, que será seu filho, e o faz brotar do nada pelo simples esforço da vontade. 
 
Em “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, ele conta a história de um planeta em que a simples expectativa de encontrar um objeto faz com que ele surja do nada: se um lápis se perde e três pessoas o procuram, isto pode fazer com que surjam três lápis diferentes. 
 
No mundo de Rosa, a mente faz um esforço sobre-humano para moldar a si mesma; no mundo fantástico de Borges, a existência de objetos materiais depende do fato de serem percebidos ou não, e ele conta:
 
“É clássico o exemplo do umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo, e que se perdeu de vista com sua morte.  Às vezes alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro”. 
 
Borges atribui à mente humana o papel de dar e de manter a existência, papel semelhante ao de Deus, como ele mesmo lembra em “Deutsches Requiem”:
 
“Se a atenção do Senhor se desviasse um só segundo da minha mão direita que escreve, esta cairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem luz”. 

 
Reiterações desse tipo, salpicadas ao longo de um extenso romance, como o de Rosa, ou de vários contos curtos, como os de Borges, acabam dando espessura e peso a uma ideia. Talvez o leitor a visse com estranheza se fosse apresentada às pressas, ou, pior ainda, se o autor tentasse dar-lhe uma extensa justificativa, cheia de exemplos, ao longo de várias páginas. 
 
O que estes dois autores fazem não é mais do que deixar que a ideia aflore, num movimento emocional espontâneo, no ato da escrita.  Entranhada em sua visão literária do mundo, a ideia emerge nos momentos em que é necessária, revestindo-se dos exemplos que cabem em cada situação. 
 
E assim, camada vai se superpondo a camada, permitindo-nos recompor em nossa mente a ideia abstrata por trás de todas essas instâncias concretas.
 


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista “Língua Portuguesa”, Editora Segmento, São Paulo, # 62, dezembro de 2010)
 
 
 






domingo, 27 de março de 2022

4807) O assalto ao Banco Central (27.3.2022)




O Netflix está exibindo a série, em três episódios, 3 Toneladas, dirigida por Rodrigo Astiz, roteirizada por Daniel Billio e produzida pela Mixer Films.
 
É uma série-documentário sobre o famoso assalto ao Banco Central, de Fortaleza, em agosto de 2005. Considerado até hoje o maior furto de banco do Brasil: foram cerca de 160 milhões de reais subtraídos ao longo de um fim de semana (“três toneladas de dinheiro”, segundo a polícia).
 
Os ladrões alugaram uma casa a certa distância do Banco e passaram meses cavando um túnel, que no final ficou com 75m de extensão. No início da noite de uma sexta-feira, encerrado o expediente do Banco, eles quebraram de baixo para cima o piso da caixa forte. e saíram pelo buraco. Passaram o resto da noite de sexta e parte do sábado tirando dinheiro, colocando-o em sacos, e transferindo-o de mão em mão ao longo do túnel, até a casa onde o quartel-general da quadrilha estava instalado.
 
O documentário é muito bem escrito e editado, costurando os depoimentos de policiais federais, policiais civis, jornalistas, bandidos presos e outras pessoas que vão aos poucos fornecendo as peças do quebra-cabeças, narrado com rapidez e clareza.


 
O resultado da investigação foi uma espécie de empate técnico. A polícia identificou praticamente todos os participantes do furto e prendeu quase todos eles; mais de 100 milhões de reais não puderam ser recuperados. Foram rapidamente gastos, “lavados” pelos assaltantes. Talvez uma parte esteja enterrada por aí, à espera do dono.
 
O doc da Netflix me lembrou uma série de filmes de “assalto engenhoso”, que acho mais interessantes do que os assaltos a mão armada e com tiroteio, estilo Bonnie & Clyde. O assalto engenhoso seduz pela inteligência dos planejadores, pelo suspense da execução e, em muitos casos, pela esperteza dos investigadores que acabam botando a mão nos gatunos.
 
É também quase um clichê desse gênero de filme que o assalto seja realizado com perfeição, mas a fruição final do dinheiro vá por água abaixo, por obra do Acaso. É o que acontece em clássicos como Gangsters de Casaca (“Mélodie en sous-sol”, 1963) de Henri Verneuil, Rififi (1955) e Topkapi (1964) de Jules Dassin, Sete Homens de Ouro (“Sette uomini d’oro”, 1965) de Marco Vicario, e inúmeros outros.






Num artigo recente no saite Crime Reads a escritora Marion Deeds se pergunta por que razão ela gosta tanto de livros/filmes de assaltos engenhosos. E responde: “É a pornografia da competência (competency porn)”.
 
De fato, esses assaltos podem chegar a níveis barrocos de complexidade, tanto na literatura quanto no cinema, onde afinal tudo acontece pela vontade divina dos autores. Numa história escrita, pode-se planejar milimetricamente cada ação e cada resultado, e mesmo uma interferência casual (uma batida de carro, um passarinho intruso) só aconteceu por decisão autoral.
 
Um bom exemplo é a bem sucedida série de ficção espanhola La Casa de Papel.


Diz Marion Deeds (trad. BT):
 
“[Uma história de assalto] envolve pessoas no máximo de suas capacidades e de seus talentos, ou pelo menos pessoas que no passado demonstraram possuí-los, em circunstâncias que os submetem a provas severas. Assaltos também satisfazem o nosso desejo por demandas, por aventuras com um objetivo, visto que elas reproduzem com precisão o mecanismo narrativo dessas demandas. Alguma coisa valiosa deve ser conquistada, ou destruída. Um grupo de pessoas de diferentes origens soma suas forças, enfrenta obstáculos, provavelmente têm que lidar com pelo menos uma traição, e precisa empregar a fundo seus talentos para atingir o objetivo”.
 
É típico desses filmes que a narrativa assuma o ponto de vista dos ladrões, com os quais acabamos simpatizando, torcendo por eles. Por que?
 
Em primeiro lugar, pela “pornografia da competência” que eles demonstram. Numa sociedade onde os especialistas, os recordistas, os “melhores do ranking” são tão valorizados, temos prazer em ver as soluções engenhosas adotadas pela quadrilha. Diante de cada obstáculo, cada imprevisto, um deles vem lá de trás, arregaça as mangas e diz: “Deixa comigo”.
 
Em segundo lugar, suspense é suspense. E boa parte do suspense dessas histórias se dá pelo fato de que na primeira parte do filme a quadrilha planeja detalhadamente como será o golpe (e com isso informa o espectador sobre o que esperar daí pra frente), e depois nos deparamos com todas as surpresas e reviravoltas que a prática costuma aplicar em qualquer teoria.

O filme Como possuir Lissú ("Gambit", 1966), de Ronald Neame, com Shirley MacLaine,  faz uma divertida sátira desse processo. Nos primeiros 15 minutos vemos um roubo difícil sendo executado com espantosa competência. Há um corte... e percebemos que aquilo tudo era apenas o chefe do bando explicando como as coisas deveriam acontecer. O roubo de verdade vem em seguida... e é claro que sai tudo ao contrário do que foi planejado.

Em terceiro lugar, torcemos pelos bandidos porque o dinheiro (jóias, etc.) geralmente pertence a bancos, empresas multinacionais, governos... O público não se identifica com estas entidades invisíveis, e sim com aquela meia dúzia de caras meio pobretões mas inteligentes. Torcemos muitas vezes pelo underdog, o azarão, a arraia miúda, aqueles assaltantes artesanais que se atrevem a desafiar fortunas, exércitos, guardas, sistemas de alarme. Queremos que o time pequeno-e-esforçado ganhe do time grande-e -arrogante.
 
No 3 Toneladas - Assalto ao Banco Central, os próprios policiais e jornalistas destacam a inteligência e a habilidade de alguns membros da quadrilha, observando que se dariam bem em qualquer profissão honesta. A série tem o inevitável tom de “o crime não compensa”, certamente para tranquilizar pais preocupados com seus filhos de 10 anos: “E se meu filho assistir isso e quiser roubar um Banco?!”.
 
No primeiro episódio da série, uma especialista em assalto dá seu depoimento numa biblioteca, e a certa altura segura um livrinho amarelo, Brecht – Vida e Obra. Bertolt Brecht foi quem disse um dia: “O que é um assalto a um Banco, comparado com um Banco?”  Todos os filmes de assalto se baseiam em premissas semelhantes. São “mistos quentes” que reúnem o charme da transgressão e a pornografia da competência.


 
 
 
 
 





quinta-feira, 24 de março de 2022

4806) Primeiras Estórias: O Cavalo que Bebia Cerveja (24.3.2022)



Num dos seus astutos comentários à obra de Guimarães Rosa, que ele conhecia tão bem, Paulo Rónai lembra que o contista era quase que um especialista em histórias onde “o conflito esperado deixa de se cumprir”, e que o autor gosta de histórias com “dois enredos que se completam e se explicam, sendo que o secundário só se entrevê intervaladamente.”  São observações que se lê em sua introdução (“Os Vastos Espaços”) às primeiras edições do livro Primeiras Estórias (1962).
 
É mais ou menos o que sucede em “O Cavalo que Bebia Cerveja”, o décimo-terceiro conto do livro. O rabisco do enredo é simples. O narrador é Reivalino Belarmino, cujo nome oficial só no fim do conto ficamos sabendo. Ele mora com a mãe perto de uma chácara cercada de altas árvores, protegida, meio oculta, pela qual eles têm que passar todo dia. 

A chácara foi comprada por um estrangeiro misterioso, homem cheio de sotaque, que come de maneira espalhafatosa e pouco educada. O rapaz meio que antipatiza com ele, mas acaba se tornando seu empregado, fazendo pequenos mandados, e o conto é o estreitamento gradual dessa relação.
 
O segundo enredo é o que acontece no vilarejo, onde de vez em quando chegam homens de fora interessados nos detalhes da vida do gringo, que se chama “Giovânio”, tem sotaque italianado (“bisonha outra garrafa”, “lei quer ver?”, “não laxa as armas!”), tem um cachorro chamado “Mussulino”... O narrador registra que o gringo comprou a chácara “no ano da espanhola”, ou seja, 1918 aproximadamente.
 
Os homens de fora têm perguntas específicas para fazer ao rapaz, sobre seu empregador: “se ele não tinha numa perna, em baixo, sinal velho de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido da prisão”. Não; nada.
 
Todo gringo é excêntrico; pode-se argumentar que um migrante é alguém que se afastou do próprio centro, e sempre vai ser visto meio de viés pelos naturais do centro-alheio onde se instala.
 
Guimarães Rosa vai desenhando esse personagem através dos olhos do rapaz, o narrador, cheio das pequenas picuinhas dos interioranos contra quem vem de fora, “vindo comprar terra cristã” e que decerto “tinha remorso, de ser estrangeiro e rico.”  
 
Um dia, ele se vê novamente convocado ao vilarejo para dar parte aos forasteiros, desconfortavelmente, dos hábitos de seu empregador, mediante pequenas gratificações, que embolsa, carrancudo. Ele diz que Seu Giovânio lhe pede que compre cerveja, explicando que é para o cavalo, e quando as autoridades o visitam na chácara, e o submetem a teste, pois não é que o cavalo bebe cerveja mesmo?! 
 
Mesmo assim, a aura de mistério permanece. Reivalino percebe desde cedo que a casa, que é grande, vive trancada, e Seu Giovânio dorme, cozinha e come nos espaços do lado de fora. Quando as autoridades dão uma incerta, ele abre a casa e os conduz a um aposento onde todos se deparam, espantados, com “um cavalão branco, empalhado”, em tamanho natural, trabalho perfeito, e que deve ter exigido um grande esforço no traslado e remontagem.
 
Na reta final do conto, Seu Giovânio abre o jogo, chama as autoridades e revela o segredo: seu irmão, “Josepe”, que vivia trancado na casa, acaba de morrer. E quanto a autoridade local exige exame do cadáver...
 
Mas aí se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer – só um buracão enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces – a gente devassava alvos ossos, o começo da goela, gorgomilhos, golas – “Que esta é a guerra,” seu Giovânio explicou...
 
A narrativa nos faz suspeitar desde o início, por detalhes variados, de um criminoso comum (ou criminoso de guerra) que ali se esconde; a impressão que fica no fim é de dois fugitivos da guerra, um cuidando do outro. Um irmão interno que se esconde na casa, que nunca sai, nunca é visto, e até sua existência é ignorada enquanto vive; e um irmão externo que se encarrega dos cuidados, que entra em contato com o mundo, que vive praticamente do lado de fora da casa, pelo bem do outro.
 
No final, Reivalino conta:
 
Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando em testamento deixou a chácara para mim. Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto.
 
É um meio mistério que se deslinda numa revelação menos espantosa mas igualmente dramática (o irmão desfigurado); e é a história dessa relação atritada e pouco cômoda entre seu Giovânio e “Irivalíni”, com ele chama o rapaz. O qual passa de empregado-a-contragosto a possível delator do patrão, depois a solidário, depois a herdeiro.
 
Os manuais literários norte-americanos nos ensinam que toda história se baseia num conflito, no confronto entre duas forças, e na vitória final de uma delas. Essa fórmula corresponde, com perfeição, a todas as histórias que são escritas com ela em mente.
 
Os conflitos roseanos são de outra natureza, e neste conto o conflito principal (entre o jovem matuto mineiro e o velho migrante italiano) é um lento atrito que ao longo dos anos vai aplainando as antipatias dos dois e que no final, lubrificado por uma boa herança, se resolve em missas e escrituras.
 
É o que Paulo Rónai assim avalia: “Nesse corajoso – e convincente – emprego do anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar histórias.” 
 






segunda-feira, 21 de março de 2022

4805) Dicionário Aldebarã 23 (21.3.2022)




(ilustração: Moebius)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.
 
“Queninodis”: o súbito reencontro, ao longo do dia, com alguma coisa (um nome, uma pessoa, um lugar, um objeto) com a qual havíamos sonhado na noite anterior, e esquecêramos por completo.
 
“Mossonheims”: cargo oficial posto em prática quando ocorre um desentendimento entre duas famílias, ou dois grupos políticos; cada um deles nomeia seu mossonheim para ir dialogar com o líder do grupo oposto e trazer ao líder do seu próprio grupo as queixas e reivindicações do outro; depois de aplainado o terreno por esse processo, os dois líderes se encontram em pessoa para a mera formalização dos acordos.
 
“Dortrisse”: o intervalo noturno entre duas sessões de sono, quando, após dormir por três ou quatro horas logo ao escurecer, as pessoas acordam, e se entregam ao lazer, à conversa ou a alguma tarefa caseira leve, depois da qual dormem novamente até amanhecer o dia. 
 
“Serundy”: jogo de salão que consiste em fazer cada pessoa, depois de sentadas em roda, escolher um objeto qualquer no aposento e o segurar à vista de todos; em seguida, sorteia-se a pessoa que dará início a uma história inventada de improviso, quando mais amalucada e improvável melhor, e nessa sua invenção deverá incluir o objeto seguro por outra pessoa da sala, o qual, ao ser finalmente referido, dará ocasião a muita risada e divertimento; em seguida, passa a vez para a pessoa ao lado, que dá prosseguimento à história, às improvisações, e à referência a outro objeto em poder de mais alguém.
 
“Wanga-wanga”: bravatas ou gabolices que alguém faz meio descuidadamente, sem nenhuma intenção mais grave, mas às vezes vê aquilo tomar uma proporção inesperada, e é forçado a desmenti-las – ou pelo menos tentar desmenti-las de modo convincente, o que muitas vezes não é mais possível.
 
“Valallini”: dieta à base de flores, mel e sementes que serve para desintoxicar os noivos nos dias que antecedem o casamento, as parturientes alguns dias antes do parto, e os administradores públicos antes dos dias de votações decisivas.
 
“Andialas”: um tradicional sistema de repasses e “terceirizações” de tarefas, trabalhos, projetos, etc., mediante o qual uma pessoa, quando se desinteressa do uma tarefa da qual foi incumbido, pode transferi-la para uma segunda pessoa com certos direitos e deveres; esta pessoa pode fazer o mesmo com uma terceira, e esta com uma quarta, desde que fiquem implícitos os níveis da transferência, que são chamados “andiala-um”, “andiala-dois”, etc. Esse sistema cria uma condição de responsabilidade recíproca entre todos os participantes.
 
“Wizz-nizz”: espécie de doce ou compota feito de fruta, para o qual se prepara um creme especial feito com a casca da própria fruta, moída e transformada em uma pasta que se deixa decantar em açúcar por longo tempo; tipicamente, quando mais fresca a fruta e mais “curtido” o creme, melhor.
 
“Cavonsy”: a sensação inexplicável que temos diante de um pequeno fato do cotidiano que não entendemos ou não pudemos examinar direito; a compulsão crescente de tirar a limpo essa dúvida; a sensação ominosa de que seria melhor deixar tudo como está, porque a resposta pode nos acarretar um prejuízo maior do que o desconhecimento.
 
“Famaldy”: um presente especial que se dá a uma pessoa que completa uma idade especial, em geral redonda (60, 70, 80 anos...). Um caderno é circulado em segredo entre amigos e parentes, e cada um tem direito a uma página, não mais. E deixa ali uma frase, um verso, uma lembrança, um desenho, uma colagem... No dia da festa, o aniversariante recebe o presente coletivo.
 
“Serruvun-pep”: pequenas faixas de borracha colorida que algumas pessoas costumam pregar no teto do quarto de dormir, para que quando a luz do sol da manhã, entrando por uma fresta específica, atingir aquele ponto, indicar que está na hora de levantar.
 
“Caflant”: aquelas situações em que reencontramos uma pessoa e, a certa altura, uma fala ou uma atitude de sua parte nos mostra que não há mais entre nós tanta identificação ou cumplicidade quanto imaginávamos.
 
 
 
 
 
 
 






sexta-feira, 18 de março de 2022

4804) Minhas canções: "A Viagem Maravilhosa" (18.3.2022)




Canções que misturam música e teatro têm que ser, por um lado, canções independentes, autônomas. E, por outro lado, precisam ser fragmentos de uma obra maior.
 
Quem conhece bem o musical clássico, os grandes musicais do teatro e do cinema, escritos por gente como Cole Porter, Irving Berlin, George & Ira Gershwin, Richard Rodgers e Oscar Hammerstein – e tantos outros, sabe que essa forma é uma espécie de popularização do formato da ópera. E que as canções nunca são desvinculadas da história que se conta.
 
O trabalho de Antonio Nóbrega, meu parceiro há tantos anos, vem de uma tradição diferente, a tradição ibérica que no Brasil se popularizou através de espetáculos de rua como o teatro de mamulengos, os entremezes cômicos, etc. E o trabalho artístico de Nóbrega, que até certa altura era uma espécie de “teatro com música” (peças teatrais contendo canções, como as nossas Brincante e Segundas Estórias) acabou evoluindo para uma “música com teatro”, shows basicamente de canções, entremeadas por pequenos esquetes.
 
No ano de 2000, Nóbrega montou o espetáculo O Marco do Meio-Dia, e uma de suas idéias era fazer a certa altura o personagem Tonheta viajar pelo Brasil, mostrando diferentes paisagens e vivendo diferentes aventuras. Tudo muito resumido e compactado, é claro, para caber no espaço de uma canção.
 
E ao mesmo tempo não podia ser apenas um roteiro turístico mostrando uns lugares bonitos que todo mundo já sabe quais são. Seria uma viagem geográfica, mas mais do que isso seria uma viagem pela História do Brasil. Com brincadeiras, com poesia, com dança, com cavalo marinho... E (sugeriu Nóbrega) o nosso costumeiro interlúdio rabelaisiano, em que o insaciável Tonheta se dedica a devorar banquetes pantagruélicos e ceias gargantuescas.
 
Foi mais uma parceria a três, porque Wilson Freire (nosso habitual comparsa) mandava versos do Recife, eu mandava versos daqui do Rio, e por fim Nóbrega arrematava tudo lá em São Paulo, enquanto preparava o arranjo junto com a banda.
 
A Viagem Maravilhosa é um dos números mais divertidos daquele espetáculo, e é a nossa viagem sentimental por um Brasil cada vez mais distante e cada vez maior.
 
 
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YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=jKcNp5n8sbk
 
 
A VIAGEM MARAVILHOSA
(Wilson Freire / Antonio Nóbrega / BT)
 
I
Nosso Brasil
(acompanhe a minha idéia)
foi Atlântida e Pangéia
um Sertão que já foi mar.
Já foi Rodínia
foi Panótia e Gonduana, 
era belo e bacana
antes de Cabral chegar.
 
Também foi ilha
do Brasil, de São Brandão,
Vera Cruz, nome cristão
trazido de além-mar.
Foi Pindorama
foi Terra de Santa Cruz
Papagális, meu Jesus,
depois de Cabral chegar.
 
Nosso país
tem tesouros, tem arcanos,
tem mais de 30 mil anos    
de histórias pra contar...
São trinta mil
em que o índio teve vez,
500 que o português
e o negro chegaram cá...  
 
Aí um dia,
eu sentado na cadeira
um estalo-de-Vieira
clareou a minha mente!
Eu percebi
que tinha de procurar,
descobrir e encarar
minha terra a minha gente.
 
E sem demora
minha burra eu selei
pus um cabresto e montei
pus espelho e um radar.
Pus uma bússola
astrolábio e luneta
diário, mapa e caneta
e falei: "Vou viajar!"
 
E mesmo antes
do sol, do cantar do galo
do sino bater badalo
eu saí pelo caminho...
Os cascos dela
velozes matraqueavam,
pareciam que estavam
tocando "Brasileirinho".  
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
II
No meu galope
mais veloz que um corisco 
eu cruzei o São Francisco
mergulhei no Iguaçu.
Fui despertar
no sol da Zona da Mata  
vestido de ouro e prata
sambando maracatu.
 
Passei por todas
as ladeiras de Olinda,
e muita morena linda
inda se lembra de mim...
Cantei seresta,
tirei verso na ciranda,
toquei tuba numa banda,
na outra toquei flautim.
 
No meu caminho
enchi o Brasil de pernas
até chegar nas cavernas
da Gruta de Maquiné.
Voltei de lá
com um papiro na mão
trazendo a decifração
dos segredos de Sumé.
 
Eu vi xamãs
dominando tempestades,
cavando Sete Cidades,
separando Marajó...
Vi o profeta
puxando com sua cruz
cada órfão de Jesus
que cruzou Cocorobó...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
 
III
Fiz um almoço
lá no "Buraco da Jia"
começou ao meio-dia
terminou pela manhã;
cuscus com fava,
bode assado, dobradinha,
macaxeira com farinha,
codorniz e ribaçã.
 
Bolo de milho
marisco no vinagrete
feijoada com croquete
kitut e baião-de-dois...
Comi de tudo
sem pressa, sem me cansar,
só para me preparar
para o que vinha depois...
 
Arroz de polvo
risoto de camarão
maionese e macarrão
salpicão, frutos-do-mar.
Feijão macaça
galinha de cabidela
e um bife de panela
bem leve, pra descansar...
 
Um ensopado
de carne com batatinha,
feijão verde e farofinha,
sanduíche de peru.
Pra terminar
um conhaque, um cafezinho,
mais um cálice de vinho
e três doses de Pitu...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
IV
Porém um dia
eu cruzei em meu caminho
com um cavalo-marinho
que era gêmeo com o meu!
Puxei a rédea
fiquei olhando pra ele:
ele achou que eu era ele,
eu achei que ele era eu!
 
Nesse momento
mais um galope se ouviu
outro cavalo surgiu
passando perto da gente.  
Uma figura
semelhante e parecida
mas como tudo na vida
tinha algo diferente.
 
E mais dois outros
chegaram no mesmo instante
mas logo mais adiante
outro ainda apareceu!   
Eu que pensava
que era único no mundo
encontrei num só segundo
muitos outros como eu!
 
Saí puxando
a Cavalhada Marinha:
parecia idéia minha
parecia carnaval...
Fomos dançando
na ponte do arco-íris
e quando eu rodei o pires
apurei quase um real...
 
Eu virei noite
galopando esse país
de metrópoles febris
e esquecida imensidão.
Vi a coragem
de quem enfrentou a morte,
vi um vento lá do Norte,
vi a vela em minha mão...
 
Vi uma luz
branca, azul, aparecida
e uma mulher parecida
com aquela lá do céu...
Vi tantas luzes
que lembrá-las é revê-las,
tantas luas e estrelas
entre as rendas do seu véu...
 
E da mão dela
uma luz se projetava
e essa luz me apontava
uma Tróia no sertão...
Uma muralha,
dentro dela uma cidade
fora dela a crueldade,
a morte, a escravidão.
 
Era o Quilombo
lá na Serra dos Palmares
erguendo alto nos ares
a bandeira de Zumbi...
Saltei da burra
devagar fui caminhando
me cheguei, fui escutando
o que acontecia ali...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
 
 
 








terça-feira, 15 de março de 2022

4803) Entrevistas Transcendentais: André Breton (15.3.2022)



(André Breton, por Victor Brauner, 1934) 
 
Uma neve fina e constante cobre as calçadas, e se deposita sobre os bancos de praça no canteiro central do bulevar. Os galhos nus das árvores parecem raios em negativo, congelados no instante em que se projetavam rumo ao céu. Há poucos arbustos da pracinha, encolhidos, tiritantes, como vultos escuros e indistintos, e só então percebo que tudo à minha volta é preto e branco: as fachadas, os lampiões, alguns trechos de grama visíveis junto aos gradis. O próprio Moulin Rouge, que avisto à distância, ergue uma torre cilíndrica de cor cinza-grafite, de encontro ao céu branco e sem luz. Suas pás imóveis parecem também congeladas.
 
Mais alguns passos e estou diante do Cabaré do Céu e do Inferno. Paro junto ao poste do lampião. Penso que aquela gigantesca carantonha à minha direita, com sua boca hiante e os olhos arregalados (gesso pintado? papel machê?) teria cores vívidas, em seu tempo; aqui e agora tem um contraste brutal de xilogravura, e parece ter sido pintada com a pegajosa tinta negra dos mimeógrafos. Toco a campainha. A concierge me introduz sem me dar muita atenção, acostumada à presença de tipos estranhos.


Subo as escadas. Um resto de latejo adolescente me obriga a pensar que por aqueles degraus já subiu Apollinaire, já subiu Desnos, já subiram Éluard, Max Ernst, Péret. Por esta escadaria terá subido um Luís Buñuel ainda jovem, atlético, truculento?... Nestes degraus já pisaram os pés de Raymond Queneau?...
 
Toco a campainha no quarto andar, a porta se abre, a senhora grisalha e de olhos graves ouve meu nome, assente, convida-me a entrar. Há um corredorzinho estreito e sou conduzido a uma sala espaçosa e atulhada. Sento, olho em redor. O primeiro pensamento é: “O cabaré do andar térreo é uma simples antecâmara disto aqui”.
 
A coleção de Arte. Nas paredes, no mantel da lareira, nas bancadas, nos aparadores, nos nichos, nas prateleiras, contempla-me uma galeria de duendes de cornos retorcidos, plantas carnívoras pintadas de batom, colares de olhos de vidro, guerreiros em ébano incrustados de balas de fuzil, buquês de espuma cadavérica, seios de odalisca virgem, absinto sólido esculpido em cacho de uvas, senadores cinocéfalos, fogueira de lâminas tetânicas, tigresas obesas expelindo letras em itálico, moedas triangulares de madeira com um prego cravado no centro, arlequins sem dentes agitando chicotes, baú transbordando de sereias xifópagas...
 
Ele entra devagar. É o ancião que vi nos obituários, e se aproxima vagaroso, meticuloso, com olhos que procuram, mãos trêmulas que experimentam os objetos antes de manuseá-los. Traja camisa e calças de flanela, em diferentes tons de azul, e um casaco de seda em cores vivas, que lhe desce até os joelhos. Aperta minhas mãos com gentileza, perscrutando meu rosto; tenho certeza de que não percebeu meus próprios trajes. Pede-me desculpas pela demora (que foi nenhuma), pergunta se quero algo: “Du thé?... Du vin?...” 
 
Ora que diabo, estou a trabalho mas estou em Paris, estou diante do homem que escreveu Os Campos Magnéticos. “Duvã !...”
 

 
BT – Monsieur Breton, estão se completando cem anos da explosão surrealista, ou da revolução surrealista, ou da revelação surrealista... Algum desses termos o satisfaz, levando em conta tudo que aconteceu?
 
AB – São palavras apenas, palavras que não eletrocutam mais ninguém. Toda nossa busca foi pelas palavras energizantes, as que inflamam e destroem, as palavras radioativas, tanto as que abrem a gruta de Sésamo quanto as que fazem a terra fender-se e engolir o arauto antes que ele chegue à última sílaba. Fomos esses arautos. Nossos versos eram granadas ativadas pelos olhos de quem sabia lê-los. E todos nós sucumbimos, não é verdade? Mergulhamos as mãos na lava borbulhante do inconsciente para esculpi-la, para dar-lhe formas de náiades, para fazer a lava arquejar de gozo. E descobrimos que a lava não se dobrava aos nossos desejos. Talvez tenhamos somente esculpido réplicas de nossas próprias mãos. (sorri, ergue a mão direita à luz que vem da janela) Mãos são aranhas que tecem livros.O senhor já esteve na guerra? Uma guerra não ensina coisa alguma, eis a nossa desgraça. Saímos da guerra e da vida sabendo tão pouco como quando entramos.
 
O vinho é servido; brindamos.
 
BT – A experiência da Primeira Guerra marcou sua geração. O surrealismo foi uma reação contra esse horror?...
 
AB – Não!  Jamais!  O surrealismo, no que para ele sonhávamos, seria sempre ação, nunca reação. Nunca uma resposta; nunca uma consequência. Queríamos, como tantos outros poetas, desvirginar o labirinto do velho e metafísico mistério. O dédalo sem saída das palavras formulaicas, que mascaram a realidade, produz um véu de tule que nos permite divisar silhuetas e tomá-las pelas coisas-em-si. Nosso gesto foi um gesto de ação; de agressão, se quiser, mas sempre um gesto de enfrentar a realidade. Precipitamo-nos sobre ela com a ousadia com que um suicida se precipita contra o pavimento. A guerra serviu para nos mostrar que a vida não tinha limites. Acreditávamos (me refiro aos homens, a nossa espécie como um todo) acreditávamos na paz, na natureza; mas se aquele horror era possível, então tudo que houvesse entre esses dois extremos tinha que ser levado em conta. Inclusive o crime sem motivo, a blasfêmia sem perdão, o irracional sem beleza, o martírio sem explicações, a depravação sem prazer, a loucura sem libertação... Os descarrilamentos do espírito. A guerra me apresentou à loucura, em Nantes, onde fui enfermeiro. E aqueles homens que babavam e balbuciavam sílabas sem sentido, queixas fantasiosas, que improvisavam palavras híbridas para vomitar o indizível... aqueles homens estavam sintonizados com o tempo em que viviam. Nós, os lúcidos, fomos os perdedores daquele conflito. O surrealismo foi a convulsão de um corpo que precisava descobrir se estava vivo ainda.
 
BT – Fala-se que o Surrealismo nasceu de uma visão pessimista do mundo, mas depois adotou o mais improvável dos otimismos, que foi o comunismo marxista. O senhor certamente vê essa questão num nível maior de complexidade.
 
AB – É preciso ter em mente que a cidade onde circulávamos era uma galeria de monstruosidades, de deformações em cera e arame, de batráquios galvanizados candidatando-se a cargos eletivos, de contrabandistas de estrume eleitos para as academias. Não há como descrever, para um sobrevivente dos séculos, a espantosa fermentação nauseabunda de ideologias bastardas em que se refocilava a Paris daquele tempo, a Paris dos andaimes sanguinolentos, das cadeiras de tribunal forradas de couro cabeludo, dos cartórios onde as penas dos necromantes eram molhadas em tinteiros de pus, das repartições públicas onde era preciso mastigar os pés de uma múmia para ter o direito de praticar felação num fuzil. Esse era o mundo normal que os Surrealistas escandalizaram, e que depois os comunistas ameaçaram dinamitar, e que os editorialistas de L’Humanité proclamaram morto um século após seu apodrecimento. Sim, nosso impulso era o de espezinhar os arquiduques, e de dirigir mangueiras de incêndio contra esses Panteões feitos de açúcar.



BT – Em suma, era muito mais um movimento de negação do que uma nova proposta de organização social...
 
AB – Mas meu caro senhor, como concebe uma “nova proposta de organização social”? O entendimento que nos inquietava, que nos bouleversava, era o entendimento de que a sociedade é ao mesmo tempo um desabrochar e um desmoronar sobre si mesma, um gêiser pagão, um jato dágua que se ergue vertical e depois desaba de volta em circunvoluções semelhantes ao deste cérebro onde nada existe em linha reta, onde dois mais dois não perfazem quatro porque se trata de duas calçadas e duas moscas... Mas ainda assim é notável o esforço da humanidade em tentar produzir ritos, formalidades que deem a impressão de mundo normal. A civilização é a tentativa de reger as chamas de um incêndio. Minha ironia final é constatar que a lógica, a cultura, a ordem social, são as proposições mais absurdas, mais bizarras, mais  insanas – mais Surrealistas, portanto – a que a Humanidade jamais se dedicou. Oh, sim, a última palavra é uma gargalhada. A História é escrita pelos vencedores, mas a última piada é sempre dos vencidos.

 
BT – Não sei se foi o seu caso. Talvez a última fala tenha sido de Salvador Dali, não? No mundo de hoje, a palavra surrealismo leva mais gente a pensar nele do que no senhor. Ou em Aragon, Péret, Desnos, Éluard...
 
AB – Ah, Dali, aquele manequim anguloso funcionando à bateria... Sim, sei muito bem a celebridade em que se tornou, ele e seu realejo de prodígios pré-fabricados... Suas bisnagas palpitantes de esperma, seus tigres feitos de tapete, seus espectros de veludo e fumaça... Dali (como outros, aliás) é a melhor comprovação da tese surrealista de que a libertação do espírito e o contato com o plasma ardente da poesia estão ao alcance de qualquer um. Quando dizíamos que a poesia deve ser feita por todos, é porque incluíamos nessa lista os canalhas, os traidores, os mercenários, os pavões cravejados de medalhas comemorativas, os gigolôs da fortuna alheia, os estripadores, os estupradores, os enfermeiros que injetam soporíferos na língua dos pacientes... Se o Surrealismo prevalecer um dia, meu caro senhor, todos esses indivíduos serão capazes de produzir poesia de alta qualidade, porque o Espírito (que é algo muito distinto da “alma” dos cristãos), se manifesta em todas as mentes humanas. Esse é o deslumbramento e a tragédia da condição humana: que as piores pessoas que temos sejam também capazes de produzir o que temos de mais elevado, porque – esta é uma das palavras de ordem do Surrealismo – em qualquer ser humano insignificante é possível fazer desencadear os poderes originais do Espírito.
 
BT – Que, como o senhor mesmo acabou de dizer, nada tem a ver com a existência de almas humanas imortais ou de um Além sobrenatural.
 
AB – Oh, não certamente. Não precisamos de outro mundo. Este mundo aqui já tem uma quantidade suficiente de ameaças, de recompensas, de prazeres, de deslumbramentos, de tragédias... O mundo é um oceano desmedido. Se mal raspamos a sua superfície, se mal tocamos a espuma de suas ondas, por que deixaríamos de mergulhar nele para tentar imaginar outro mundo, outro mar? Não, nosso mar é o mar do inconsciente humano compartilhado, temos que afundar nele de olhos escancarados para sua escuridão, temos que nos amarrar a bolas de ferro, às bolas e correntes da poesia convulsiva, do estranho, do bizarro, do inesperado. Temos que afundar no Real, quando mais não seja porque todas as pessoas que desprezamos e que nos desprezam nos dizem para fazer o contrário.
 
BT – Monsieur Breton, sempre tive uma curiosidade a respeito de Paris, é algo que se refere aos 365 apartamentos que estão interligados por passagens secretas... Essa descoberta se deve, na verdade, ao seu amigo Louis Aragon?
 
AB – Aragon era um visionário com senso de humor. Nossos caminhos divergiram, infelizmente, mas nossos corações, por assim dizer, continuam a flutuar próximos, neste oceano da impermanência. Aragon sugeriu essa idéia a Jules Romains, que a incluiu num romance. Verdade? Invenção? Eu não sei. Na época, era intensa a minha repulsa pela literatura, pela prosa de situações banais do cotidiano, pelas marquesas que saíam às cinco horas... Parecia-me uma arte inferior, comparável à do desenho de cartões de namorados ou decoração de bolos. Meus amigos viam uma perturbadora beleza nessa idéia de um fio de corredores secretos estendendo-se através de Paris – ou de qualquer outra cidade, à sua imaginação – por onde é possível caminhar sem ser visto, fugir sem ser apanhado, espionar sem ser pressentido, deslocar-se no espaço sem sofrer rastreamento...


 
BT – Eu pagaria por esse direito uma polpuda mensalidade, Monsieur Breton, mas a esta altura parece que tudo se circunscreve aos domínios do feuilleton, da pulp fiction...
 
AB – Ah, meu caro senhor, não menospreze o poder revelador, o poder encantatório das cerimônias profanas da ficção popular, da cultura das calçadas. É ali que vemos o desabrochar orgulhoso do Espírito coletivo, que, não se engane, não desce do Céu sobre nós para nos trazer lições de moral, mas emerge do asfalto, dos paralelepípedos, dos tijolos, da alvenaria, para nos trazer lições de sobrevida e transcendência. Pense em Rimbaud e seu fascínio pelo teatro de mamulengos, pense na brutalidade plebéia de Lautréamont, pense em Jarry e sua tradução da ciência para o idioma da sarjeta... Todos estes poetas acharam, cada um ao seu modo, um canal de comunicação permanente com essa correnteza obscura, maníaca, com o estado de furor, com o acaso objetivo, com as imagens convulsivas e fulgurantes, as truculências simbólicas.
 
Eu estava de olhos baixos, avaliando meio distraído os dragões laqueados do tampo da mesa. Ergo o rosto para encará-lo. Ele é agora o jovem altivo, leonino, imponente, que atraía olhares e provocava frêmitos à sua passagem. Em poucos minutos remoçou quarenta anos. É como se eu tivesse vindo até ali para trazer-lhe algo de que necessitava. Um olhar, uma reativação que talvez lhe proporcione mais cem anos de sobrevida. Quem pode saber?
 
Antes de nos despedirmos, ele me leva até a janela. Lá embaixo, vemos o mundo alvinegro, as calçadas, os pedestres, vemos aquele filme granulado e trêmulo do passado; e uma cidade de caligaris, uma cidade de zumbis, de pequenos burgueses em seus bigodões e seus capotes, que podem morrer carbonizados à simples visão de uma camisa amarela, uma bandeira vermelha, um par de sapatos azuis. 

Breton faz um gesto largo abarcando aquela avenida inteira, aquele século.
 
AB – Eles nos odeiam, caro senhor, mas não há propósito em odiá-los. Sabem que um mundo onde possamos viver é um mundo que os ameaça. Não é a nossa vontade que determina isto, é a natureza da coisas. Até hoje o mundo foi deles. Changer la vie! – foi o brado de Rimbaud. E o faremos. Temos quanto tempo pela frente? Uns diriam mil anos; outros diriam: a eternidade.
 
BT – Uma última provocação. Seu amigo Luís Buñuel reconheceu certa vez que, visto em retrospecto, o Surrealismo fracassou no essencial e triunfou no que era supérfluo e secundário. O que me diz?...
 
AB (pondo a mão no meu ombro, num gesto paternal) – Ah, Luís?... Luís é um garanhão coroado de papoulas.
 
Despeço-me e volto à calçada, ao mundo colorido de moças com cabelos roxos e piercings, de buttons fosforecentes, de bancas de revistas apregoando super-heróis e pilotos de Fórmula 1, de outdoors, de blusões de couro marrom, de óculos espelhados, de cabelinho verde espetado em gel, de boné revirado, de cavanhaque insolente. Em cada um deles, caminhando na direção do portal art-nouveau da estação do metrô, imagino rever aqueles olhos de um fogo feito de ferro, um ferro feito de céu.


(foto: Sergio Cohn)


(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Julio Cortázar:

Philip K. Dick:

Agatha Christie: