quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

4319) Não se recusa um leitor (28.2.2018)




(ilustração: Jacek Yerka)


Quem tem poucos leitores sabe dar valor a cada um deles. É uma coisa típica de começo da carreira literária. Você entra numa festa, ou num restaurante, vê um casal almoçando e pensa: “Ah, lá está aquele casal que leu meu livro!”.

Ou a velhíssima brincadeira que todo escritor já fez. O leitor se aproxima, cordial: “Olhe, eu comprei o seu livro...” E o autor: “Arrá!... Foi você, então!”

Um Karl Ove Knausgaard ou uma Elena Ferrante, que são lidos por milhões, poderiam esnobar essas pequenas alegrias. Quem tem poucos leitores, porém, acaba vendo cada um deles de maneira personalizada.

Um leitor é tão precioso como um eleitor. Se alguém chega a ter milhões é também porque soube, quando tinha apenas algumas dezenas, dar a eles um momento de atenção para um autógrafo, uma troca de idéias, uma foto, um cumprimento, um sorriso, um reconhecimento... Nada deixa um leitor mais exultante do que encontrar no aeroporto com seu ídolo, cumprimentá-lo discretamente, e ouvi-lo retribuir: “Ah, você é o Braulio. Como anda a Paraíba?”. Ser reconhecido não tem preço.

Tem uma história ótima de Vinicius de Moraes, quando ele soube que Pablo Neruda, nos idos dos anos 1950, estava de visita ao Rio de Janeiro, sendo recebido pelos literatos locais. Quando Vinicius soube, saiu esbaforido ao calçadão da praia, e não demorou a localizar o grupo de escritores que se aproximava, com Neruda ao centro. Quando o chileno o avistou de longe, abriu os braços e exclamou: “Vinicius de Moraes!...”  Vinicius foi na direção dele e disse: “Eu ia beijar suas mãos, mas como você me reconheceu eu vou beijar é seus pés!...”  E assim o fez.

Leitor de verdade é isso, e feliz do autor que sabe cultivá-los.

Político não é muito diferente, e grande parte do sucesso de algumas velhas raposas que tomam conta do Galinheiro Brasil se deve a sua memória fotográfica, capaz de produzir afagos desse tipo em milhões de egos que, com a auto estima em alta, viram infatigáveis cabos eleitorais do figurão que se lembrou deles.

Um autor pode, deve recusar um leitor? Eu acho que não. Quem começa a fazer um certo sucesso de vendas assume às vezes posições meio provocativas. “Se é para me fazer esse tipo de crítica, prefiro que não leiam meus livros,” diz o best-seller no talk-show. “Só quero ser lido por quem é capaz de me entender,” diz o vanguardista na mesa-redonda para dez gatos pingados. “Não escrevo para a elite!”, brada o contestador em tempo integral.

Tudo muito compreensível, mas não resulta em nada. Quanto mais desautorizados pelo autor, mais esses leitores o lerão, até mesmo para provocá-lo à revelia.

Já vi autores ironizarem o que chamam de “leitor coluna-social”, o que desdenha o livro mas quer o autógrafo do famoso. Vai cheio de pompa ao lançamento, produz uma cena de ruidosa afabilidade, faz-se fotografar, dita a dedicatória e sai para o próximo compromisso, levando embaixo do braço o livro que não lerá.

Tem o leitor pentelho, aquele que lê em busca de defeitos para esfregar na cara do autor. Não deve ser confundido com o leitor cuidadoso, que frui o livro, mas observa um errinho aqui ou ali, e sem muito alarde diz ao autor: “Olha, vi uma coisa na página tal que me pareceu errada.” O leitor pentelho é capaz de escrever um livro só para alardear aos quatro ventos que Fulano de Tal se enganou, que cometeu erros de continuidade, que pôs uma data impossível...

Devemos recusá-lo por isso? Nunca. Se os erros que descobre são erros, de fato, ele acaba prestando um serviço ao autor – caso o autor não seja também um Poço de Ego que não admite restrições ao que escreve. Nem todo advogado-do-diabo tem a delicadeza do leitor remoto de Eça de Queiroz que, após ler A Relíquia,  escreveu ao mestre no mais respeitoso tom, para avisá-lo de que ele se referira à lua como “o alfanje que decepou a cabeça de Yokanaan”, num capítulo, e logo adiante, ao narrar a noite seguinte, a descrevia como lua cheia.