quarta-feira, 31 de julho de 2019

4489) Santa Helena, o cordelista pop (31.7.2019)




Na terça-feira dia 30 participei de um evento na Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), onde se encontraram pesquisadores e poetas populares. Foi a doação, para o acervo da FCRB, do material reunido em vida pelo poeta Raimundo Santa Helena, falecido no ano passado.


Santa Helena foi uma figura muito conhecida nos meios literários do Rio de Janeiro, porque estava presente, divulgando a poesia do cordel, em todo tipo de evento ligado à literatura: coquetéis, lançamentos, palestras, simpósios, noites de autógrafos... 

Foi em alguma ocasião assim que vim a conhecê-lo. Vi que estava vendendo cordéis, me aproximei para olhar, comprei um ou outro, ele perguntou de onde eu era, e aí engatamos uma conversa boa, porque tínhamos muitos amigos em comum.

Anos depois recebi de Joseph Luyten, coordenador da coleção de cordel da Editora Hedra (São Paulo) a encomenda de fazer a antologia de Santa Helena. Tivemos alguns encontros, sempre à tarde, no jardim e nas lanchonetes do Museu da República. Eu levava o gravador e ele falava, falava, falava...


Santa Helena era um irresistível (e irrefreável) contador de histórias. Na época desse trabalho ele estava com 75 anos e era um dínamo de energia. Andava sempre com uma enorme bolsa cheia de folhetos, livros, panfletos, manuscritos, cadernos. E era um propagandista incansável do próprio trabalho: andava sempre com enormes folhas plastificadas onde reproduzia documentos, diplomas, certificados...

Uma vez perguntei “pra quê isso tudo” e ele disse que na cultura oral as coisas somem com muita facilidade, e que por isso ele fotografava e xerocava tudo, botava nome e data em tudo, numerava os folhetos...

Os folhetos dele eram um caso à parte. Leitor atento do Pasquim e talvez de outras publicações da poesia marginal dos anos 1970-80, ele criou um estilo próprio de cordel, envolvendo colagem, textos, datilografados, montagem de fotos, desenhos trechos manuscritos.


O cordel tradicional era impresso nas antigas máquinas de tipos móveis, onde as letras são pecinhas de metal, soltas, que vão sendo enfileiradas uma a uma para formar cada palavra. Santa Helena fez o cordel da época do fotolito, onde bastava encher de textos recortados uma “prancha” de papel, fotografá-la e reproduzi-la. Isso dá aos seus cordéis um perfil único, que ninguém até agora (que eu saiba) imitou.


Foi também um dos raros poetas a fazer cordel traduzido em outras línguas para vender aos turistas. Em todo evento internacional que acontecia no Rio (como a “Eco-92” ou “Rio-92”), lá estava ele vendendo e recitando em inglês. Marinheiro na época da II Guerra Mundial, ele viajou pelo mundo, passou algum tempo nos EUA, falava inglês com um desassombro que eu desde então procuro imitar, e recitava sextilhas tipo:

Engineer André Rebouças
at one hundred years ago
wrote about Amazônia:
“agriculture”… now we go
to discuss concerning forest
millions of trees over there still rest
to save the world of a blow…
(“Brazilian Amazônia”)

Ou então, no folheto “Don’t kill the President / Não matarás o Papa”:

Brazilian pulp writing
runs the world through the gates.
In dark space we are lighting
wherever there’s classmates
to listen to our message
as a dawn-pop-image
going far beyond the States.

Santa Helena morava numa casa humilde em Madureira; ele e a esposa Yara morreram com alguns meses de intervalo. Dois filhos estão servindo à Marinha, como ele fez, e sua filha Ynah esteve presente na Casa de Rui Barbosa, com o marido Jorge Simas, para fazer a doação do material em nome da família. Poetas e pesquisadores deram seus testemunhos pessoais, coordenados pela profa. Sylvia Nemer, que há anos vinha articulando a transferência deste acervo.


Para quem não sabe, a Casa de Rui Barbosa tem uma das maiores coleções de cordel do Brasil. Anos atrás fui um frequentador assíduo dessa biblioteca, ou “cordelteca”, como já se diz hoje em dia. Agora não preciso mais, porque grande parte da coleção já pode ser consultada online. Isso nos permite, sem sair de casa, passar a noite lendo pelejas de Costa Leite, romances de Delarme ou gracejos de Leandro, apenas clicando neste link:


O prefácio que fiz para a antologia da Editora Hedra conta muitas histórias de Santa Helena, e tenta situar sua obra, tão pessoal, tão peculiar, não apenas no contexto do cordel mas no contexto da imprensa alternativa carioca dos anos 1970-80. Mais do que um romancista inventor de fantasias ou um poeta lírico, ele foi um poeta-repórter, um indivíduo intensamente ligado no momento presente.