quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1491) Mamute Morto Bom (23.12.2007)



Estávamos reunidos em nossa caverna paleolítica, os três anciãos da tribo: eu, Urgh e Humm. Como se sabe, cabe aos anciãos decidir o rumo das coisas, o evoluir dos usos e costumes. Não porque os anciãos sejam mais sábios. Mas porque os jovens da tribo estão muito ocupados – matando mamutes, acasalando, mascando ervas perigosas. Nós, os anciãos, ficamos na cavernas, examinando etimologias e definindo tecnicalidades.

Por exemplo: hoje um bando de jovens matou um mamute e inventou essa palavra para designar as criaturas peludas que nos cedem (um tanto a contragosto) sua alcatra, seu patinho e seu acém. “Ma-mu-te!”, ficaram eles cantando e pulando em volta da carcaça, enquanto as mulheres cortavam os bifes. “Ma-mu-te!” Isso inquietou os anciãos. Nossa linguagem monossilábica, consciente da necessidade evolutiva inerente a todas as atividades da Cultura, tem feito uma aproximação gradual rumo às palavras de duas sílabas. Mas os jovens – ah, os jovens! – são impacientes. Querem avançar demais, querem tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Começam com trissílabos, daqui a pouco estarão querendo proceder anticonstitucionalissimamente.

Reunimos o Conselho e decidimos: o nome do bicho é “mut”, e não mamute. Estão pensando o quê? Somos trogloditas mas aqui há normas, há princípios. Os jovens voltaram para a caverna enfarruscados, resmungando. Nessa noite ninguém acasalou – ficaram conferenciando junto à fogueira. Na manhã seguinte, uma delegação veio negociar uma proposta. “São três palavras”, explicaram. “Ma quer dizer mim. Mut quer dizer a carne. Te quer dizer para ti. Ou seja: eu estou oferecendo carne.” Fiquei encalacrado, porque na verdade quem decide tudo no Conselho dos Anciãos sou eu (tem um que só faz concordar, o outro só faz ficar em dúvida). “Não há precedentes, não há jurisprudência firmada”, argumentei. “Que história é essa de palavras significando relações? Palavras significam coisas. A gente aponta o indicador, emite uma sílaba, e todo mundo sabe a que estamos nos referindo. Foi sempre assim”.

Os jovens insistiram: “Mas precisamos de uma sintaxe, de partículas que indiquem finalidade, dependência, junção, posicionamento...” Fui canônico, fui radical: “Não! Nem vem! Não tem pra tu!” Retiraram-se fumaçando e no outro dia apareceu um Comando de Greve dizendo que “aqui ninguém caça mais, se quiserem comer peguem suas azagaias e vão à luta”. As mulheres, sempre nervosas, prorromperam em pranto. Depois de três dias com as barrigas roncando, chamei o restante do Conselho e marcamos nossa rodada de negociações para depois da caçada.

Por garantia, resolvemos ir junto (vai que os jovens resolvem cooptar o Mut!). Eu não me lembrava do tumulto que é uma caçada. Para resumir – foi tudo muito rápido. Quando a poeira baixou, os jovens gritavam: “Mamute Vivo Mau! Mamute Morto Bom!” Fui me aconselhar com Urgh e Humm mas parece que algo muito pesado tinha passado por cima deles.

1490) A arte da digressão (22.12.2007)




(Marcel Jean, Specter of the Gardenia)

Uma das críticas mais injustas que se pode fazer a um romance é censurar ao autor o uso de digressões. Uma digressão é um afastamento do assunto principal para contar uma história secundária, refletir sobre algum aspecto da vida ou do mundo, ou explicar algum detalhe acessório da narrativa enquanto a história principal fica esperando. 

Como tudo o mais na esfera da arte, tem gente que gosta e gente que não gosta. Eu sou dos que gostam, e vou explicar por quê.

Primeiro, uma pequena digressão. Quando eu tinha dezesseis anos, vi dois caras conversando sobre um curso de Leitura Dinâmica anunciado no jornal. Um deles perguntou qual era a vantagem de ler cinco ou dez vezes mais depressa (era o que o curso prometia). O outro retrucou: “Quando você está lendo um livro, qual é a coisa que você mais quer saber?” O outro embatucou. Eu, que escutava ali por perto, também. O primeiro respondeu: “Ora, você quer saber o fim, quer saber como o livro acaba. E com a Leitura Dinâmica o livro acaba mais depressa”.

A digressão desagrada esse pessoal: os que querem que o livro acabe depressa. Esse tipo de leitor (a que eu chamo, quando estou de mau humor, “leitor americanizado”) tem uma visão utilitária da leitura, e quer maximizar a eficiência do ato leitoral. Quer ler cada vez mais depressa, consumindo cada vez mais palavras por minuto. E exige do autor que não fique enrolando, vá direto ao ponto, conte a história em linha reta, como uma seta em vôo instantâneo rumo à palavra “Fim”.

Cada um lê do jeito que lhe apraz, e não sou eu quem irá ensinar aos outros como viver. Mas os leitores como eu não querem que o livro acabe logo, não querem saber já como é o fim, a não ser quando a leitura é feita por obrigação profissional, para publicar uma resenha na semana que vem. 

Quando lemos por interesse próprio ou por prazer, não estamos disputando uma corrida de cem metros rasos. Avançamos no interior do livro como alguém que passeia numa cidade onde deverá passar os próximos dias: sabendo que não vai dar para ver tudo, sem pressa de conhecer todos os detalhes, caminhando meio ao acaso, sem lugar específico para ir e sem hora para lá chegar.

As digressões são como mudanças de rumo provocadas pelo impulso súbito de pegar um ônibus que parou ao nosso lado, ou de entrar por uma galeria de lojas que surgiu à nossa direita, ou de saltar do metrô numa estação desconhecida para saber o que existe ali em volta. 

Não há necessidade de caminhar em linha reta, rumo a um objetivo, porque tudo ali nos interessa igualmente. A digressão serve para abrir janelas, links de hipertexto, notas de pé de página. Traz temperos e sabores diferentes ao prato principal. 

O rei da digressão, Laurence Sterne, dizia que as digressões são “a luz do sol”. Elas não são a história que estamos lendo, não são a paisagem onde viajamos, são a luz que ilumina tudo aquilo e os torna reais aos nossos olhos.








1489) Coincidências (21.12.2007)



(Salvador Dali, "A Retrospective Bust of a Woman")

Há pessoas que vêem na mais banal coincidência um sinal do Destino, uma mensagem mística para dizer-lhes que Alguém, num plano portentoso e sobrenatural, está velando por elas. 

Não precisa ser uma revolução total em suas vidas, como encontrar na calçada um bilhete premiado de Loteria. Bastam pequenos sinais. 

A costureirinha está sacolejando no ônibus, rumo ao trabalho. Fecha os olhos e lembra do namorado. Pensa: “Meu Deus! Será que ele gosta mesmo de mim? Me dê um sinal!...” Abre os olhos e vê pendurado na banca de revistas um DVD intitulado “Amor Sincero”. E considera isto uma resposta divina.

A jornalista Leonor Amarante me relatou um fato que foi direto para minha coleção de coincidências. 

Ela estava em Natal, organizando uma exposição de artes plásticas, sua área de atuação. Conheceu um artista chamado Guaracy Gabriel, os dois trocaram telefones e ficaram de se ligar. Dias depois, no hotel em que estava, ela ligou para o número do artista. Acontece que ela tinha anotado erradamente o número, como percebeu depois; tinha trocado um ou outro algarismo.

A ligação foi atendida e ela perguntou: “É da residência (ou do ateliê) de Guaracy Gabriel?” 

O sujeito que atendeu disse: “Não senhora, isto aqui é um orelhão, na rua tal”. 

Ela disse: “Eu estou ligando para esse número porque quem me deu foi essa pessoa, dizendo que era o da casa dele”. 

O cara do outro lado disse: “Não, é um telefone público, mas... a senhora disse que estava ligando para Guaracy Gabriel, o artista?” 

“Sim, para ele mesmo” 

“Um momento... Ei! Guaracy! Telefone pra você!”

Ou seja, a ligação errada caiu num telefone público, foi atendida por alguém que conhecia a pessoa para quem ela estava ligando, e ainda por cima o destinatário da ligação estava passando por acaso justamente ali, naquele momento! 

Calculadoras em punho, amigos: quais são as chances matemáticas de uma coisa assim acontecer? Minha vontade é traduzir esta história para o inglês e remetê-la para Alan Vaughan, autor do interessante livro Incredible Coincidence, repleto de ocorrências tão estranhas quanto esta, e até mais.

O caso de Leonor se parece com outro que achei na Internet. Em 1953 o jornalista Irv Kupcinet foi fazer uma reportagem em Londres. No quarto do Hotel Savoy, onde se hospedou, encontrou alguns objetos pessoais esquecidos por outro hóspede. Examinando-os, descobriu que seu dono era Harry Hannin, um jogador de basquete que fazia parte da famosa equipe dos Harlem Globetrotters, os quais viajavam pelo mundo inteiro fazendo jogos-exibições. 

Kupcinet, que conhecia Hannin pessoalmente, guardou os objetos para devolvê-los quando encontrasse o amigo. 

Dois dias depois, recebeu uma carta de Hannin. Ele dizia que tinha se hospedado no Hotel Meurice, em Paris, e no quarto em que ficou lá tinha encontrado uma gravata com o nome de Kupcinet bordado – que o próprio havia esquecido ali, antes de ir para Londres. Se não é verdadeiro, é bem inventado.




1488) A doce pornografia (20.12.2007)


(Doll, de Hans Bellmer)

Carlos Drummond já dizia: “Sejamos pornográficos, docemente pornográficos... Por que seremos mais castos que nosso avô português?”. A pornografia é a mais incompreendida das artes, até porque quando usamos este termo estamos nos referindo à Pornografia do Sexo, às artes voltadas para a descrição dos atos sexuais. Ora, existe também a Pornografia da Violência, hoje em dia tão em moda no cinema e nos videogames. Existe a Pornografia da Afetividade – os livrinhos e fotonovelas de amor destinados às jovenzinhas e às donas-de-casa. Existe a Pornografia da Política, mais conhecida como “o romance engajado”, aquele em que todas as relações humanas são reinterpretadas em função da luta de classes e da ascensão do proletariado. Pornografia é qualquer arte que bate o tempo inteiro numa única tecla, numa única nota.

A Pornografia do Sexo parece ser mais antiga que todas estas, e nas bibliotecas tradicionais era confinada a um setor chamado “O Inferno”, ao qual só tinham acesso leitores autorizados. (Uma interessante metáfora do próprio sexo, ou seja, a genitália humana sendo uma parte a que só têm acesso pessoas autorizadas pelo Estado e pela Igreja, através do casamento civil e religioso.) A Biblioteca Nacional de Paris está abrindo neste mês de dezembro (até 2 de março) uma exposição intitulada L’Enfer de la Bibliothèque - Éros au secret, organizada por Marie-Françoise ­Quignard e Raymond-Josué ­Seckel, na qual estão expostas mais de 350 obras, entre livros, fotos e gravuras, que fazem parte desse acervo proibido. Ali estão autores obscuros dos séculos 18 e 19, além dos inevitáveis Georges Bataille, Jean Genêt, Guillaume Apollinaire e o Marquês de Sade (do qual está em exibição o manuscrito original de Justine, ou Os Infortúnios da Virtude). Baixem o catálogo aqui: http://www.bnf.fr/pages/catalog/rtf/enfer.rtf.

A mostra conta com um interessante recurso publicitário: uma estação desativada do metrô (Croix Rouge, na linha 10) está sendo usada como vitrine: o trem não pára ali, mas ao passar por ela os passageiros a verão iluminada e cheia de cartazes e reproduções de obras, convidando o público a comparecer à Bibliothèque. A exposição é proibida para menores de 16 anos, o que levou os jornalistas do websaite The Literary Salon a afirmar que “a proibição é apenas um truque dos bibliotecários para atrair a atenção dos garotos e fazê-los pensar que os livros podem ter algo interessante para oferecer”.

Resta uma questão. Uma exposição assim prova que, finalmente, a cultura ocidental conseguiu chegar a um acordo com o erotismo e a sexualidade, e não mais considera essas obras transgressoras como uma ameaça? Ou significa que a pornografia (principalmente após o excesso de oferta na Internet) invadiu o mundo como um exército de bilhões de cupins triunfantes, e que não há outro recurso senão depor as armas e render-se ao seu poder? Quem puder ir a Paris, dê uma olhada e me informe.

1487) O Número da Besta (19.12.2007)




Escândalos científicos sacolejam de vez em quando a comunidade acadêmica, quando se descobre que a pesquisa do Professor Tal foi falsificada para corresponder aos resultados de sua hipótese. O sujeito mexe uma vírgula pra cá, adiciona um zero onde ele estava faltando, valoriza resultados próximos ao que ele esperava, descarta resultados incômodos... 

Se isto se faz no vigiadíssimo e desconfiado ambiente científico, o que dizer do ambiente místico-esotérico, onde os mecanismos de vigilância são meramente espirituais?

Não sou um grande leitor, mas sou um bom folheador de livros. Quando eu tinha dez anos estava tentando ler Guerra e Paz de Tolstoi, porque eu gostava de qualquer história que contivesse batalhas, espaldeiradas e tiroteios. 

Não li o livro até hoje, mas lembro que a edição brasileira daquela época era em dois volumes – eu imaginava que o primeiro descrevia a guerra, o segundo a paz. 

A certa altura, havia algumas páginas cheias de cálculos numéricos que me chamaram a atenção. O personagem Pierre Bezukhov (ou “Bésuhoff”, na grafia francesa) está se divertindo com cálculos numerológicos para descobrir quem será, naquela época belicosa de princípios do século 19, a Besta do Apocalipse.

Pierre pega uma tabela de correspondências alfanuméricas (A=1, B=2, etc., e em seguida K=20, L=30, M=40 – algo assim). E começa a escrever nomes próprios e somar seus valores numéricos, para ver se acha 666, que, como sabe até quem não leu a Bíblia, é o número da Besta. 

Pierre é um cara culto e usa o idioma culto da época, que é francês. E a certa altura ele escreve: “L’Empereur Napoléon”, soma os números... e obtém 666. Aquilo lhe dá um calafrio de descoberta e de premonição, porque a Rússia está justamente em guerra contra o imperador francês.

Ele imagina (se bem me lembro) que o povo ou a pessoa destinada a derrotar Napoleão deverá ter uma soma numérica equivalente. Repete o cálculo com seu próprio nome, mas a soma é muito grande ou muito pequena. 

Depois de tentar algumas combinações, ele tenta: “Le russe Bésuhoff”, e o resultado é 671. Uma diferença de 5 pontos a mais sobre o resultado pretendido. Ora, 5 é o valor da letra “E”, que havia sofrido elisão na expressão “l’empereur”. Quando ele refaz o processo, mesmo violando as regras da gramática, a expressão “L’russe Bésuhoff” soma 666. E ele considera isto uma prova de que seu destino é derrotar a Besta.

Esta é uma típica experiência em que o experimentador vai tentando incontáveis coisas e descartando todos os resultados que não lhe interessam. 

E quando obtém um resultado parcialmente interessante, ele faz pequenas adaptações pouco ortodoxas até que “a conta feche sem deixar resto”. 

(Este artigo não tem como tema a Bíblia, o Apocalipse, as Guerras Napoleônicas ou a obra de Tolstoi; o tema deste artigo é: “Quando alguém, mesmo um cientista, precisa muito encontrar um resultado, acaba convencendo a si próprio de que encontrou”.)