quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

2757) A morte nos separe (4.1.2012)




O conto “Death do us part” de Robert Silverberg (1997) se abre com um vertiginoso parágrafo futurista descrevendo o casamento entre os protagonistas:

“Era o primeiro dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida. Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes. E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Marilisa e Leo são um casal típico da elite desse mundo futuro; ele é um artista cinético, internacionalmente famoso. Seu trabalho é criar painéis animados feitos com areia colorida e cristais, que mudam de imagens e de cores de acordo com variações do terreno, de tal modo que a cada duas horas estão exibindo imagens totalmente diferentes. Essa elite do futuro se submete periodicamente a um tratamento que eles chamam “o Processo”, que os mantém eternamente jovens. A certa altura do casamento Marilisa começa a perceber que há algo de errado, e descobre por fim que Leo casou com ela por piedade. Ela é uma das raras pessoas em quem o “processo” não funciona, e está condenada a envelhecer e morrer como as pessoas de antigamente (=nós).

Millôr Fernandes afirmou uma vez: “Injustiça social pra valer era se umas pessoas morressem e outras não”. É esse o mundo descrito por Silverberg, e que não é totalmente impossível de acontecer. Se não nos termos propostos pelo autor (que afinal são mera imaginação), mas dentro de possibilidades técnicas que já se desenham hoje. Não é impossível que algumas pessoas nascidas hoje, em 2011, possam um dia atingir os 100 anos sem muita deterioração física e mental.

Só que isso não vai acontecer para todos, e sim para os muitos ricos. O conto de Silverberg é, na superfície, o contraste entre os que vivem muito e os que vivem pouco (com uma leve alusão ao final de Blade Runner, em que Rick Deckard nos lembra que os humanos, tal como os andróides, podem morrer a qualquer instante). Os cenários vertiginosos descritos nesse parágrafo inicial parecem, no conto, uma metáfora das inimagináveis riquezas que o Tempo reserva aos que não morrem; mas esse próprio “não morrer” é uma metáfora de ter muito dinheiro, ser muito poderoso. Ser imortal é uma metáfora para ser rico. Estar condenado a morrer um dia é estar condenado a viver como nós: uma casinha, um carrinho, um emprego, uma família...