quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

0790) Um raio em punho (29.9.2005)



Em outubro teremos o referendo que pede o fim da fabricação e o comercialização de armas no Brasil. Já toquei no assunto aqui (“Revólveres”, 27.2.2004; “Adeus às armas”, 15.5.2005), e todo mundo já sabe que sou contra armas. Quando eu era pequeno adorava pistolas, espingardas, espadas e metralhadoras, e ao que parece minha agressividade bélica se esgotou toda nos morticínios virtuais que eu promovia por dentro de casa aos dez anos, matando índios apaches no terraço, alienígenas na sala de visitas, soldados prussianos (eu era meio napoleônico) no quarto dos fundos e centuriões romanos no quintal. Pronto. Matei mais gente do que a II Guerra Mundial inteira, e acho que exorcizei o Antonio das Mortes que dormita no inconsciente nós todos.

Infelizmente, parece que só aconteceu comigo. O resto do Brasil vive num frenesi danado de botar um 38 na cintura e sair de rua afora, perguntando onde estão os assaltantes e seqüestradores. Os meus amigos que defendem o uso das armas alegam que querem ficar em condições de igualdade com os bandidos, para a hipótese de um eventual confronto. Eu lhes retruco que para ficar em condições de igualdade não basta ter uma arma igual, é preciso ter experiência igual, e o sangue-frio de quem já usou arma em ocasiões de vida-ou-morte. Para enfrentar bandido, só um profissional da arma, ou seja, um policial.

Se alguém quer trocar tiros com bandidos e acha que vai se sair bem, problema dele. O problema alheio é quando o sujeito ao volante de um Gol amassa o paralama do Citroen do cidadão e este sai de arma em punho, enlouquecido com aquela mistura de sacrilégio e insulto à sua masculinidade. Já observei que um sujeito com revólver se enraivece muito mais depressa do que um sujeito sem. Acho que o revólver fica cochichando telepaticamente: “Vai, vai lá. Se ele quiser te matar, tu mata ele”.

O que é um revólver? É você dar a um cara os mesmos poderes de Zeus, de Júpiter, do Deus dos Deuses: o poder de emitir raios com o simples gesto de estender a mão. Como a maioria dos portadores de armas é de uma espantosa incompetência, esses raios em geral são aleatórios, o próprio emitente não pode garantir com muita certeza que ele esteja partindo com endereço certo. Sou capaz de apostar que 83% dos tiros disparados em situação de conflito real não acertam o alvo para que se destinavam. Acertam uma parede, o chão, o mato, e freqüentemente acertam um figurante que ia passando lá no fundo da cena e que só percebe o que está acontecendo quando sente uma abelha ferroando a costela e vê a camisa ficando vermelha.

Sei que os partidários do armamento têm longos e eloqüentes argumentos em favor de sua tese, mas não me darei ao trabalho de rebatê-los um por um, porque por mais argumentos que tenham sua causa é movida por uma razão emocional: a crença na violência para combater a violência. Eu sou movido pela crença oposta, voto “SIM” contra as armas, e sugiro ao leitor que faça o mesmo.

0789) O mistério de Alice Brady (28.9.2005)


Gosto de histórias de mistério da vida real, história de coisas que aconteceram mas nunca tiveram uma explicação – não porque sugerissem algo sobrenatural, mas simplesmente porque ninguém sabe, de fato, o que realmente aconteceu. É o caso dos crimes insolúveis, cujo autor a polícia nunca conseguiu descobrir; mas não tem necessariamente que ser uma história de violência. Pode ser uma pessoa ou um objeto que desapareceu para sempre, pode até ser uma história com um lado divertido, desde que contenha uma pergunta que talvez nunca venha a ser respondida.

Vejam o caso de Alice Brady, por exemplo. Era uma atriz de talento mediano da década de 1930, e teve o ponto alto de sua carreira em 1938, quando ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, pelo filme In Old Chicago de Henry King. Acontece que Alice estava com um tornozelo quebrado e não pôde comparecer à cerimônia. Quando seu nome foi anunciado, um cavalheiro de smoking subiu ao palco, recebeu o Oscar em nome dela, fez um agradecimento pró-forma e retirou-se. Ele e a estatueta nunca mais foram vistos, porque logo em seguida Alice telefonou para dizer que não, não tinha mandado ninguém representá-la. O malandro levou o Oscar “na mão grande” e ficou por isso mesmo. (Em compensação, a Academia enviou outro Oscar para Alice, que não ficou a ver navios).

Direis agora: “Ah, mas isto foi naquele tempo em que a festa era uma coisa meio privê, não passava via satélite para o mundo inteiro, não tinha centenas de seguranças, maior burocracia, crachá...” E eu vos direi que em 1980, o Oscar de Melhor Curta de Animação foi para o húngaro Ferenc Kofusz. Ao ser anunciado, um cara subiu ao palco, recebeu, agradeceu, tirou retrato, foi para os bastidores e dali sumiu no mundo. Não, não era Ferenc Kofusz. Também não creio que fosse o mesmo cara que deu-um-ganho na estatueta de Alice, 42 anos antes. Era mais um cara esperto que vislumbrou uma brecha e se deu bem.

Eu vejo no caso de Alice em 1938 o lado do mistério, de um pequeno fato que talvez jamais venha a ser esclarecido. Era um ladrão elegante como Simon Templar, “o Santo”? Era um conhecido dela que tinha a intenção de levar-lhe a estatueta, mas depois mudou de idéia? Um executivo menor do estúdio que quis fazer um favor à atriz? Um colecionador? Há várias histórias latentes no episódio, mas a repetição do fato, décadas depois, o empobrece. A coisa cheira a cópia, imitação, golpe pelo golpe, esperteza pela esperteza. Há certos eventos em que uma segunda ocorrência empalidece o brilho da primeira.

O mistério é um fato onde não nos perguntamos simplesmente “por que isto aconteceu”, “por que motivo” alguém agiu assim ou assado, ou “quem fez” tal e tal coisa. O mistério é um fato que todo mundo viu, todo mundo registrou, todo mundo pode checar os dados disponíveis, mas cujo grande magnetismo é ser tão visível e ninguém saber realmente o que foi que de fato aconteceu.

0788) A pureza do plágio sincero (27.9.2005)



O escritor popular plagia de alma limpa. Se morresse depois de pingar o ponto final, subiria ao céu envolto em nuvens brancas e sinos dourados. Não é pecado aquilo que ele faz. Por “escritor popular” refiro-me aos franceses e ingleses que escreviam folhetins melodramáticos nos anos 1850, aos norte-americanos que escreviam contos de ficção científica nos “pulp magazines” dos anos 1930, nos redatores de fotonovelas femininas dos anos 1950, dos teledramaturgos da nossa TV nos anos 2000. Eles trabalham num meio onde a auto-referência é lei primordial, e onde o auto-canibalismo é a maneira mais rápida de não morrer de fome nem de falta de inspiração.

Em As Palavras, rememorando suas tentativas de escrever romances de aventuras aos 12 anos, Jean-Paul Sartre tem um parágrafo delicioso. Diz ele: “Pedi que me dessem um caderno, um vidro de tinta violeta, inscrevi na capa: Caderno de Romances. O primeiro que levei a cabo intitulei: Por Uma Borboleta. Um sábio, sua filha e um jovem explorador atlético subiam o curso do Amazonas à caça de uma preciosa borboleta. O argumento, as personagens, o detalhe das aventuras, o próprio título, eu tomara a uma história de quadrinhos que aparecera no trimestre precedente. Esse plágio deliberado me livrava de minhas últimas inquietações: tudo era forçosamente verdadeiro, visto que eu não inventava nada. Eu não ambicionava ser publicado, mas dera um jeito de ser impresso antecipadamente e não traçava uma só linha que meu modelo não caucionasse. Considerava-me eu um copista? Não. Mas sim autor original: eu retocava, remoçava; por exemplo, adotara o cuidado de trocar os nomes das personagens. Essas ligeiras alterações me autorizavam a confundir a memória e a imaginação”.

Nestas poucas linhas está sintetizado o nebuloso espírito autoral que envolve aqueles tipos de literatura popular. O escritor de “pulp fiction” vê os textos alheios como partes do mundo real; copiá-los lhe parece tão legítimo quanto copiar a vida. Ele tem a visão pura de um menino de 12 anos, para quem a emoção de escrever uma história é tão empolgante que o fato de estar copiando uma história já existente torna-se secundário. O estrato médio de qualquer literatura surge deste nosso impulso de reescrever ao nosso modo as histórias alheias que nos emocionaram para sempre numa quadra vulnerável de nossa vida. Vejam só quantos rubens-fonsecas, quantos daltons-trevisans, quantos paulos-francis abrilhantam hoje as vitrines de nossas livrarias.

Todo mundo começa por copiar, como os alunos das escolas de Belas Artes; o copista de talento acaba às vezes por produzir um estilo próprio. E a “pulp fiction”, o folhetim, a telenovela, são um ambiente em que esse regurgitamento permanente de temas e enredos é necessário para que o mecanismo continue rodando, e para que autores e público redescubram no “novo”, com alívio, os traços de velhas histórias já conhecidas, das quais tinham saudade.

0787) Ler e escrever (25.9.2005)



Sempre tive a sensação de que ler era conversar com um Mestre que mora longe, não me conhece, mas está disposto a me ensinar tudo que sabe. Às vezes o sujeito já morreu há duzentos anos mas as lições dele estão todas ali, à minha espera. O único inconveniente era o fato de ser um monólogo, não um diálogo; ele tinha muito a me dizer mas não poderia me ouvir. Uma comunicação de mão-única, por certo, mas sempre achei que era melhor uma comunicação de mão-única com Dostoiévski ou com Machado de Assis do que horas de blá-blá-blá improfícuo com certos contemporâneos.

Ler era um exercício de humildade, era o momento de me sentar em posição de lótus diante do mestre e, mergulhado num silêncio respeitoso, absorver suas lições da melhor maneira possível. Ler era conversar com os mortos, com os distantes, com sujeitos importantes que se me encontrassem pessoalmente mal dariam atenção àquele adolescente cabeludo e mal vestido, mas que, graças ao milagre do papel impresso, me faziam companhia durante as madrugadas, na mesa da cozinha onde eu me sentava com o livro aberto à minha frente, tendo ao lado o caderno-espiral, um bule de café e uma pãozeira cheia de bolachas sete-capas. Quando a gente lê, vira discípulo, aprende a ficar calado e escutar, aprende a aprender.

Escrever, por outro lado, era aquele momento em que o discípulo zen dá um salto acrobático no ar e cai de pé transformado num mestre do karatê em posição de batalha. Escrever era a hora de mandar às favas as lições alheias e fazer ouvir minha própria voz. Quando eu empurrava o livro para um lado e a ponta da caneta Bic fazia contato com a superfície mágica do caderno, desencadeava-se um Shazam cósmico qualquer, Billy Batson virava o Capitão Marvel, e pelos poderes de Grayskull eu me transformava nos meus super-heróis imbatíveis, Pessoa de pince-nez, Rosa de gravatinha borboleta, Dylan de óculos rayban.

Arrufos da juventude, por certo. Porque hoje, amiguinhos, a sensação que tenho depois de todos estes dias em Pequim é que estas duas situações se inverteram. Resta pouco tempo, restam poucos anos. Ler a esta altura é luxo, é egoísmo, é amealhar ainda mais moedas num cofre já abarrotado, é pedir o adiamento do jogo para continuar treinando. Ler está virando uma atividade egoísta, o derradeiro dos prazeres solitários.

E escrever é agora a verdadeira lição de humildade: ter que mostrar todo dia que o que aprendi foi só isto. É pouco, mas é o que tenho para exibir, para oferecer. Você tem o direito de aprender na primeira metade da vida, mas fica com a obrigação de ensinar na segunda. Não importa se você sempre acha que se preparou mal, que aprendeu pouco, que o que sabe é inadequado ou já-era. O que aprendemos é um empréstimo que o mundo nos fez, e precisa ser pago. Escrever é passar adiante aquilo que, bem ou mal, restou em nosso juízo depois de tantas madrugadas. O Mundo é o que você aprende, mas Você é o que você ensina.

0786) Robert Wise (24.9.2005)


(Robert Wise dirigindo West Side Story)

Para os públicos do mundo inteiro, Robert Wise, morto recentemente aos 91 anos, é o diretor de A Noviça Rebelde e de Amor Sublime Amor (West Side Story), dois dos mais bem sucedidos musicais do cinema americano. Para os fãs de ficção científica, ele é o cara que dirigiu alguns filmes interessantes (como O enigma de Andrômeda e o primeiro filme da série Star Trek) e um dos clássicos do gênero: O dia em que a Terra parou. Feito em 1951, é talvez o filme que inaugurou a moda de alienígenas desembarcando na Terra e indo direto a Washington. Abre-se a porta do disco-voador, e saem um homem e um robô que dão um ultimato à Terra, ameaçando-a pelo uso de armas atômicas. Como prova de que podem subjugar a Terra facilmente, o extraterrestre faz com que todas as máquinas da Terra parem numa hora prevista, mas depois de várias peripécias acaba sendo morto a tiros.

A grande reviravolta do filme (e da história que o inspirou, “Farewell to the Master”, de Harry Bates) é que no final ficamos sabendo que o verdadeiro líder da missão não é o humano, mas o robô. O humano está ali como uma espécie de intérprete e de assistente: a civilização que enviou a nave é uma civilização de robôs. Peter Nicholls e John Brosnan, na Encyclopedia of Science Fiction, vêem a mensagem final do filme com restrições: “Submissão às regras impostas por robôs implacáveis e indiferentes é uma proposta autoritária demais para um filme que pretende ser liberal”.

Robert Wise era também uma espécie de robô (com todo respeito). Um técnico cinematográfico, meio sem idéias próprias, sem uma visão-do-mundo pessoal. A julgar pela variedade de gêneros que abordou, era o ato de dirigir cinema que o empolgava e mobilizava. Ele cultivou o musical, a FC, o western (Honra a um homem mau), o filme de terror (The Haunting, A Maldição do Sangue de Pantera, As duas vidas de Audrey Rose), o filme de boxe (Punhos de campeão, Marcados pela sarjeta). Foi aquilo que os críticos de cinema chamam de “um artesão competente”: um sujeito que tem uma compreensão intuitiva dos efeitos que é preciso produzir na tela para que o público se envolva adequadamente com a história que será contada.

David Thomson (A Biographical Dictionary of Film) vê nessa versatilidade a fraqueza de Wise: “Uma busca inquieta e cansativa, que nunca consegue despertar nosso interesse, por diferentes áreas: a guerra, o épico, o musical, a FC, o horror, o crime, o western”. Wise foi um típico diretor do cinema americano, um robô inteligente e competentíssimo que não tinha muito a dizer e se entregava a cada filme como se os anteriores não existissem. Não se trata da mera variação entre gêneros (que também ocorre com Hawks, Kubrick, Siegel, e tantos outros). É a variação de visão-do-mundo, como se a própria mente de Wise fosse uma mente robótica, um disco-rígido zerado no início de cada novo projeto. Adeus aos mestres!