quinta-feira, 5 de setembro de 2019

4500) "O Eclipse do Sol em Veneza em 1842" (5.9.2019)






Algum tempo atrás tirei uma brincadeira no Facebook, postando a imagem de uma pintura que se me deparou por acaso, “O Eclipse do Sol em Veneza em 6 de Julho de 1842”, do artista italiano Ippolito Caffi (1809-1866). Nunca tinha ouvido falar no artista nem tinha visto o quadro, mas ele me chamou logo a atenção por uma série de detalhes insólitos.

Como as redes sociais são notórias estimuladoras de bravatas, postei o seguinte:

Eu ainda vou preparar uma aula de 50 minutos sobre este quadro, "O Eclipse do Sol em Veneza em 6 de Julho de 1842", de Ippolito Caffi. Tem caminhos para falar de astronomia, ciência, pintura, cinema, realidade imagética, objetividade/subjetividade, surrealismo, memória, perspectiva...

Claro que era mera pabulagem de minha parte, o que não impede que todas essas coisas possam ser discutidas. Um pouco no estilo texto-visual cultivado pelo mestre W. J. Solha. 

Vamos falar primeiro de Astronomia.

O quadro mostra um fenômeno astronômico que na época, século 19, já estava devidamente explicado e entendido: os eclipses solares. Acontece que naquele tempo os fenômenos celestes tinham que ser ou descritos verbalmente ou pintados. A fotografia ainda engatinhava em 1842.

Esse quadro tem um valor simbólico muito grande. Um eclipse é um fenômeno de luz e sombra. No quadro, temos uma divisão muito clara entre o mundo das trevas e o mundo da luz, que o pintor separa com admirável candura. O primeiro aspecto que chama a atenção no quadro é essa separação entre sombra à esquerda e luz à direita, totalmente irreal se pensarmos como um eclipse realmente se produz.

Mesmo com o Sol parcialmente encoberto, a luz não se dirige, como um facho ou um holofote, para um só lado do céu. A parte não-encoberta do Sol, por menor que esteja no momento, torna-se um ponto de onde os raios de luz se espalham, vindo na direção da Terra. A luminosidade é menor, mas tão uniforme quando a de um dia normal.

(Vejam só – estou especulando. Nunca vi um eclipse total do Sol, e eis-me questionando um pintor que certamente viu!)

Eis um eclipse, visto do espaço:



Do ponto de vista pictórico, o quadro, que usa a Perspectiva rigorosa já padrão nos anos 1800, tem o Sol como ponto-de-fuga em relação a nós; mas a projeção desviada desse feixe de raios luminosos sugere um ponto de observação alternativo, num ângulo de quase 90 graus entre o observador e o Sol. Sugere o lugar onde o Sol estaria sendo visto por inteiro. É por assim dizer uma pintura que aponta para fora de si mesma.

Este aspecto me leva a pensar em como os temas da Ciência têm sido tratados visualmente para demonstração. Tratados científicos feitos desde o Renascimento, dirigidos aos leigos. E entre os leigos incluímos reis, Papas, nobres, etc. – o pessoal que detém o poder e precisa ter algum contato com o Saber.

Toda representação visual de algum aspecto científico é valiosa e incompleta, é essencial e falível. Me lembro dos famosos esboços de Galileu, com o olho no telescópio e a pena na mão, rabiscando o que via, e que publicou em O Mensageiro das Estrelas (1610):



Ninguém jamais vira as asperezas e anfractuosidades do solo da Lua, cheio de crateras. A teoria vigente era de que ela, sendo um corpo celeste criado por Deus, seria uma esfera lisa e perfeita como uma bola de bilhar. Os desenhos acima já começaram a levar alguma lenha para a fogueira que o cientista, prudente e safo, conseguiu saltar, não sem algum prejuízo para a própria valentia.

Já o desenho abaixo está num livro do astrônomo Huygens, registrando as observações de Galileu e outros sobre os anéis do planeta Saturno, algo que ninguém entendia mas estava vendo e precisava desenhar. Eram as primeiras tentativas de entender o que havia ao redor de Saturno.



Hoje temos sistemas de observação astronômica mais sofisticados, podemos achar graças nessas tentativas toscas de entender que diabo era aquilo. Mas esses desenhos sempre me lembraram estas fotos abaixo, que são modelos da “Nuvem de Probabilidade” dos elétrons, as possíveis trajetórias deles em torno do núcleo atômico:



Mais uma vez, é a tentativa de representação visual do invisível.

Voltamos ao quadro de Ippolito Caffi. O quanto a Pintura é diferente da fotografia, que por mais tosca que fosse era quase instantânea, mesmo em 1842!   Em 1838 já existia a famosa foto feita por Daguerre do “Boulevard du Temple”, que necessitou de alguns minutos de exposição contínua, e se tornou a primeira foto onde aparecem pessoas: o sujeito em pé na esquina e o engraxate que lustra os seus sapatos.



Como ficaria uma única foto, em exposição contínua, de todas as fases de um eclipse? Foi preciso inventar o Cinema para ilustrar esta questão.

Se Caffi batesse uma foto do eclipse não dependeria tanto da própria Memória, que é outro tema essencial aqui. Um quadro como esse não poderia ser pintado na hora. O pintor está tentando reproduzir na tela o que ele certamente viu, mas depende da memória, uma memória ainda não educada por demonstrações “objetivas” de como um eclipse acontece. Ninguém em 1842 tinha fotografado ou filmado um eclipse. Caffi tentou pintar o que lembrava – e o que lembrava é esse encantador absurdo que ele nos mostra.

Nossa memória é sempre metade registro e metade imaginação. O que a lembrança não capta, o instinto substitui.

A Realidade Imagética tem um caráter ambíguo, por um lado é sinônimo de “fidelidade, descrição, reprodução exata, etc.” e por outro lado é uma construção da mente de quem a produz, seja pintor, desenhista, fotógrafo, cineasta, etc.  Não existe imagem 100% real. Toda imagem já nasce como uma manipulação.

Acreditamos em qualquer imagem do mesmo modo como os contemporâneos de Ippolito Caffi provavelmente viram este quadro e acreditaram que um eclipse, visto daquele ponto de sua cidade, era exatamente assim. A realidade imagética não reproduz o que vemos, mas nos ensina a ver. Ela fornece convenções óticas que não passam de ilusões: a ilusão da distância através da perspectiva, a ilusão de relevo através do sombreado, a ilusão do movimento através do desfoque, e assim por diante.

A produção de imagens (pintura, foto, cinema, etc.) é a produção de pseudo-objetividades, de realidades que parecem autônomas, independentes, “naturais”, mas que são realidades de segunda ordem, de segunda mão: foram produzidas por pessoas como nós.

Parece ingênuo dizer isso depois de milênios de pintura, séculos de fotografia, mas o surgimento das imagens digitais e dos seus instrumentos de manipulação nos fazem reaprender de novo essa lição.

Photo-shop, fake-news, colagens, fotos interferidas… tudo são falsas fatias de objetividade que podem ser trucadas à vontade e acabar nos enganando. Eu mesmo vejo várias vezes por semana imagens que “botaria a mão no fogo” por serem autênticas, e depois acabo reconhecendo que são imagens subjetivas, imagens que foram modificadas com alguma intenção, mesmo que seja apenas a de criar um meme humorístico.

Como este belo planeta Saturno de Val Koleva, no saite “Design Crowd”:



Quanto ao Surrealismo, eu diria que Ippolito Caffi mereceria um lugar de honra, ainda que involuntariamente, nessa enorme galeria de falsas paisagens, de registros em trompe l’oeil, de perspectivas distorcidas, de imagens com perfeccionismo fotográfico produzindo ambientes impossíveis.

Max Ernst, “La Ville Entière” (1935-36), uma paisagem iluminada de frente por uma lua cheia situada por trás dela:



René Magritte, “L’Empire des Lumières” (várias versões), uma paisagem cuja metade superior está “de dia” e a metade inferior “de noite”:


Rob Gonsalves, “Night Lights”, onde a lua cheia avistada por trás dos pinheiros contém os continentes da Terra e suas luzes urbanas:



Ou o fotógrafo surrealista Erik Johansson e seu “The Cover Up”, onde o céu escuro e tempestuoso é recoberto por um céu artificial, cheio de sol:


A pintura de Ippolito Caffi envolve todos estes fatores e o que a torna mais interessante é o fato de que ela mistura objetividade e subjetividade de uma maneira hoje talvez evidente para a maioria de nós, mas que não o seria tanto para o artista e seus contemporâneos. Eles talvez o achassem 100% fiel à verdade visual e à plausibilidade científica do que retratou.

Todo “realismo” é sempre constituído por uma liga fortíssima entre a realidade externa, que se impõe pela presença, e a realidade interna, ou mental, que se impõe no ato de criar ou recriar. Esta pintura é um exemplo perfeito disso.