quinta-feira, 19 de junho de 2008

0418) As palavras andantes (22.7.2004)



Saiu pela editora gaúcha L&PM uma bela reedição do livro As palavras andantes, do uruguaio Eduardo Galeano. É um livro que tenho há anos e nunca tive a intenção de devorar do começo ao fim: é livro para abrir e ler ao acaso. É uma espécie de almanaque, composto de pequenos textos, às vezes com quatro ou cinco linhas apenas, historietas, anedotas poéticas, contos recolhidos ou inventados por Galeano em suas andanças pela América Latina. Contos com títulos que lembram os nossos folhetos de cordel: “História do Lagarto que Devorava suas Esposas”, “História do Homem que queria Engravidar”, “História do Povo da Lua”, “História do Vaqueiro que era uma Onça”...

A comparação com o cordel não é gratuita. Para tornar o livro parecido com um almanaque de cordelista, Galeano encomendou as ilustrações a J. Borges, o grande xilógrafo pernambucano, um dos maiores cordelistas e xilogravadores vivos e em atividade. As ilustrações de Borges, com sua enganadora simplicidade, parecem agarrar os textos de Galeano e elevá-los a um plano mítico, para além do meramente literário. Textos que poderiam ser apenas jocosos, ou românticos, ou sentenciosos, ficam contaminados de magia pela presença dessas xilogravuras de pássaros coroados, esqueletos cercados de morcegos, animais que se entredevoram, serpentes com asas ou com cabeça humana, diabos lutando de peixeira, fotógrafos lambe-lambe, pastores, marceneiros, mosquitos tocando tambor, esferas superpostas de céus cravejados de estrelas.

Galeano é o autor de um dos livros que mais abalaram minha fé na humanidade. As veias abertas da América Latina, que li em 1978 em edição da Paz & Terra, botou abaixo todas as minhas ilusões de que bastaria derrubar a ditadura militar brasileira e todos os nossos problemas estariam resolvidos. OK, OK – nunca acreditei que isso resolveria “todos” os nossos problemas, mas juro que pensei que resolveria os mais graves deles. Ledo engano. Não mudou nada. Como não sou muito dado à aridez das leituras econômicas e geopolíticas, foi preciso a prosa incendiária, visionária e transfiguradora de Galeano para me levar nessa viagem pela exploração dos países latino-americanos. Entendi tudo. A América Latina é um Prometeu atado à rocha, condenado pelos deuses da História a ser devorado vivo pelo abutre da exploração econômica.

Esta minha teoria atual pode ser tão despropositada quanto a anterior; mas onde quero chegar é que se As veias abertas... me dão motivos para achar que o mundo não tem jeito, As palavras andantes me fazem recuperar a fé na América Latina (este “nordeste” do nosso continente) como um organismo mais resistente do que as pulgas que dele se alimentam. Nosso continente é uma pirâmide soterrada, da qual só emerge do chão, como numa história do Barão de Münchausen, uma laje de pedra com uma porta em forma de livro. Basta abri-la... e deuses xilografados voltarão a habitar entre nós.

0417) O Relógio Humano (21.7.2004)



Dando continuidade à série “As Besteiras Mais Originais da Internet”, apresento aos caros leitores o saite “O Relógio Humano”, uma divertida falta-de-ocupação criada por um americano chamado Daniel Craig Giffen, de Portland (Oregon). Craig, como ele gosta de ser chamado, teve a idéia de criar um relógio visual que mostrasse a hora atual, de minuto a minuto. Sua primeira providência foi calcular de quantas imagens iria precisar para mostrar todos os minutos de um dia: o resultado obtido foi 1.440. A tarefa, portanto, era criar imagens que mostrassem a hora em formato digital, em minutos sucessivos: 12:00, 12:01, 12:02, 12:03 e assim por diante.

As primeiras imagens do Relógio Humano foram feitas com o próprio Craig, seus amigos e parentes (além de alguns transeuntes pegados na rua) segurando uma folha de papelão com uns algarismos desenhados a mão e colados com fita adesiva. Mais mambembe, impossível. Essas fotos digitais ficaram arquivadas no saite e foram sendo colocadas no ar de 60 em 60 segundos. Com o passar do tempo, o próprio Craig começou a fazer fotos mais caprichadas para mostrar as horas, e começou a receber colaborações do mundo inteiro.

O requisito para enviar uma colaboração para o Relógio Humano é, basicamente, enviar uma foto digital onde apareça o número com a hora que se quer mostrar, de forma clara. Não adianta seguir a lei do menor esforço: o saite rejeita fotos onde o sujeito se limita a aparecer ao lado do monitor onde aparecem os algarismos em corpo 72. Fotos tiradas ao ar livre, fotos mostrando paisagens típicas (há várias do Brasil), fotos onde os números sejam mostrados de maneira original... estas têm a preferência.

Para que serve isso? Bem, eu pelo menos uso como o meu relógio pessoal enquanto trabalho. Abro uma janela do Internet Explorer com a imagem do Relógio Humano (cujo endereço, a propósito, é: http://www.humanclock.com/ ) e deixo ali. Toda vez que quero saber as horas, dou um Alt+Tab, e olho na janela. Tem as coisas mais inesperadas. Agora mesmo, por exemplo, é 1:35 da manhã, e a foto que aparece na tela é de um casal de Derbyshire (Inglaterra), deitado na cama (de pijama e camisola, ao que tudo indica) segurando folhas de papel com os números rabiscados à mão. Agora é 1:36: aparecem uns caras meio dark, de camisa preta e cabelo pintado, segurando algarismos em estilo gótico e bebendo cerveja; a foto é de Pittsburgh (Pensilvânia). Algumas horas têm até 10 fotos diferentes. Algumas são bem criativas: as horas são criadas com os dedos, ou com biscoitos sobre uma mesa, ou com o número de uma casa, ou com objetos que parecem algarismos... Há fotos de inúmeros países, fotos com crianças, com animais, grupos de amigos dançando... O Relógio Humano de Craig Giffen acabou se transformando num mostruário informal de gente distante dando um alô para pessoas que não conhece. Agora, uma moça mostra os pulsos atados com uma fita adesiva onde se lê: “I love you – 1:42”.

0416) Marlon Brando (20.7.2004)



A morte recente de Marlon Brando tem motivado um dilúvio de textos sobre sua influência sobre os atores, seu egocentrismo, seus grandes momentos. A imagem que guardarei dele é a primeira que me marcou, quando vi, com menos de dez anos, seu rosto ensanguentado atravessando um cais repleto de grevistas carrancudos, na sequência final de Sindicato de Ladrões. Anos depois, reencontrei-o levando uma surra pior ainda em Caçada Humana. Guardei dele a impressão de ser um cara capaz de levar uma surra de dez minutos às mãos de dez sujeitos, e depois voltar ao trabalho como se nada tivesse acontecido.

Brando não deve ter sido flor que se cheire. Ninguém chega a um sucesso como aquele sem iniqüidades, sem pisar pescoços, sem atropelar boas intenções alheias. Um sujeito pode tornar-se rico e famoso sem deixar como efeito colateral um rastro de ressentimentos, ainda que minoritários? Duvido. A “persona” muscular, dominadora, invasiva que Brando projetou nas telas não deixava dúvidas sobre o ser real que havia ali por trás. Sua mente tinha a complexidade de um computador, mas seu movimento ao longo da vida era o de um tanque de guerra.

Lembro um episódio narrado por Stewart Stern, o roteirista de Juventude Transviada, O Americano Feio, etc. Por volta de 1955, Stern envolveu-se num projeto do produtor George Englund para fazer um filme em cooperação com a ONU, mostrando as condições de vida de populações pobres no mundo inteiro. Um projeto megalomaníaco e improvável (“a ONU, colaborando com a Paramount Pictures?”). Brando aderiu ao projeto, e os três embarcaram para Manila. Na véspera da viagem, estavam hospedados no Hotel Plaza, em Nova York, e Stern conta que durante a noite debruçou-se na janela, olhou a neve caindo sobre a cidade, e sentiu o sangue gelar nas veias. Ali estava ele, um roteirista principiante e desconhecido, prestes a assumir a maior responsabilidade de sua vida. “Era um daqueles momentos místicos,” diz ele, “em que as pessoas de 33 anos percebem que têm apenas 14.”

Nesse instante, alguém passou o braço sobre seus ombros: era Brando, que, como se estivesse lendo seus pensamentos, disse: “Você não estaria aqui se não fosse pela nossa vontade. Não estaria aqui, se a gente não precisasse de você. Não estaria aqui, se a gente não acreditasse que você tem valor.” E em seguida sentou no sofá, e passou o resto da noite contando para Stern episódios de sua infância, de sua relação com o pai, com a mãe... Tinha 31 anos, e já era Marlon Brando. Em Manila, havia uma multidão paralisando o aeroporto para vê-lo, e foram precisos seis carros da polícia para tirá-los dali. Stern diz que Brando era capaz de cóleras terríveis: “Na hora de disparar raios e trovões, ele era jupiteriano.” Por outro lado, “é um dos amigos mais leais que se pode ter. Quando você for ao seu aniversário de 60 anos, vai encontrar lá as mesmas pessoas que estavam no de 20 anos, e mais algumas que ele conheceu no percurso.”

0415) O inimigo oculto (18.7.2004)


(Nosferatu, de F. W. Murnau)

A Arte da Narrativa é a arte da elipse, da omissão, da alusão indireta. Não se pode contar tudo, mostrar tudo: é preciso saber escolher o que mostrar. Artistas mais hábeis se dão o luxo de deixar de mostrar justamente o mais importante. No filme O bandido Giuliano, de Francesco Rosi, uma reconstituição da vida do famoso bandoleiro da Sicília, o personagem principal quase não aparece. Tudo é contado de maneira indireta.

Chico Buarque tem uma canção clássica dirigida a um inimigo que não é jamais nomeado: “Apesar de você” (1970). Era a época da ditadura militar, e ninguém tinha dúvida sobre a quem ele se referia: “Hoje você é quem manda, falou-tá-falado, não tem discussão... Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.” O recado político, a ameaça pré-datada tipo “seu sal tá se pisando” era mais do que clara. Com a imprensa, no entanto, o compositor desconversava: “Olha, o ´você´ aí pode ser qualquer pessoa que está nos enchendo o saco: um síndico antipático, um patrão injusto, um pai autoritário...”

Em outra canção de Chico, “Ano Novo” (1967), o poder autoritário era personificado num vago “rei”, que entra na cidade, manda tocar sinos, hastear bandeiras, e quer ver todo mundo contente, “porque é Ano Novo”. Ao não se referir com precisão a um momento político em particular, o poeta transforma sua letra num recado atemporal, sem prazo de validade nem de vencimento. Em vez de dizer quem é o “rei”, o poeta prefere descrever sua gente, que está “vivendo a muque”, e ironiza: “E quem já viu de pé o mesmo velho ovo hoje rica contente, porque é Ano Novo.” Os versos de 1967 poderiam ter sido escritos hoje: “E ao meu amigo que não vê mais graça, todo ano que passa só lhe faz chorar, eu disse: Homem, tenha seu orgulho, não faça barulho, o rei não vai gostar...”

Oculto, o inimigo é mais ameaçador. Uma velha máxima do filme de terror diz que não se deve mostrar o monstro, e sim o medo que ele produz. Outra canção de Chico, “Maninha”, de 1977, diz: “Se lembra da fogueira? Se lembra dos balões? Se lembra dos luares dos sertões?” O poeta dirige-se a uma irmãzinha, e recorda um tempo feliz da infância dos dois: “Se lembra quando toda modinha falava de amor? Pois nunca mais cantei, ó maninha, depois que ele chegou.” A letra é nostálgica, intimista, e tem como uma delicadeza a mais o fato de ter sido gravada por Miúcha, irmã de Chico. Ele insiste na comparação entre passado e presente: “Se lembra do jardim, ó maninha, coberto de flor? Pois hoje só dá erva daninha, no chão que ele pisou.” Quem é “ele”? Provavelmente é o mesmo “você” da outra música. Nunca nomeado, nunca descrito, este inimigo oculto continua poeticamente vivo, rondando o poema por todos os lados, mesmo que pareça ter sumido do mapa político, como o poeta prometia: “Mas não me deixe assim, tão sozinho, a me torturar... Que um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar.”

0414) Dez anos do Tetra (17.7.2004)


(Baggio e Taffarel -- foto de Cláudio Versiani)

A imprensa comemora os dez anos do tetracampeonato que a Seleção conquistou nos EUA em 1994. Em algum lugar daqui de casa tenho guardadas 7 fitas VHS com as 7 partidas com que o Brasil ganhou aquele título. Vi o primeiro jogo (Brasil 2x0 Rússia) na casa de meu irmão Pedro, que o gravou e me deu a fita de presente. Considerei isto um bom augúrio, e passei a gravar todos os jogos seguintes. Deu no que deu – mas a CBF até hoje não reconheceu minha decisiva contribuição àquela conquista.

Torcedor é capaz de qualquer macumba-mental para fazer um time ganhar um jogo, ainda mais com um jejum de 24 anos em Copas do Mundo. Ainda hoje uma parte da crítica torce o nariz para aquele título. A Seleção era defensiva, jogou mal, empatou de 0x0 na final, foi pros pênaltes, e ganhou com um erro do adversário! Uma vitória de Pirro, que a gente só comemorou porque, se não comemorasse, quem iria fazê-lo? Os italianos?

E a Seleção não goleou ninguém, o que é um pecado terrível para a nossa arrogância imperialista. Brasileiro adora humilhar as seleções alheias; faz bem ao nosso complexo de colonizado. Ganhar de 1x0 dos EUA (num jogo mais tenso e mais disputado do que a batalha de Verdun) foi considerado uma afronta ao nosso currículo. A imprensa exige o tempo todo que Brasil ganhe “dando espetáculo”. Eu gosto de espetáculo. Gosto do nosso jeito de jogar, que os ingleses batizaram de “The Beautiful Game”, e minhas Seleções preferidas são as de 1970 e 1982. Mas sempre acho que esse pessoal trocaria todo o “jogo bonito” do mundo por uma boa e velha pelada, desde que a gente no final enfiasse 4 ou 5 na Argentina ou na Alemanha.

Amigos meus que estiveram nessa Copa disseram que não houve um jogo sequer que prestasse, devido ao calor. A diferença de fuso horário e a necessidade de ter platéias acordadas na Europa fêz com que a maior parte das seleções tivesse que jogar no-pingo-do-meio-dia, sob o sol da Califórnia e do Texas. Uma testemunha ocular comentou: “O calor não era só insuportável, era indescritível.” Ninguém jogou bem ali. Nem mesmo nós. Nosso único jogo mais-ou-menos foi o 3x2 na Holanda; e o resto da Copa foi uma sucessão de confrontos entre Criciúmas x Figueirenses (com todo respeito).

Momentos que justificaram a Copa: o segundo tempo de Brasil x Holanda; o passeio que a Bulgária deu na Argentina (2x0); os 5 gols do russo Salenko em Camarões; os gols e a autoconfiança de Romário; o gol que o romeno Hagi fêz na Argentina lá da linha lateral; o gol de Bebeto nos EUA; o gol de Branco; a Bulgária despachando a Alemanha de virada (2x1); a defesa crucial de Taffarel no pênalti de Massaro; as participações da Nigéria, Bulgária e Romênia; as atuações individuais de Taffarel, Márcio Santos, Aldair, Dunga, Mauro Silva, Bebeto e Romário. Não foi uma grande Copa, mas a essas coisas se aplica o que dizia Blake Edwards sobre o sexo: “Quando é bom, é a melhor coisa do mundo, e mesmo quando é ruim ainda é bom pra c***”.