domingo, 6 de novembro de 2022

4880) O homem que assustava mulheres (6.11.2022)




Agatha Christie foi meu primeiro amor, na adolescência, mas acho que acabei casando com Ruth Rendell, uma paixão mais madura. Explico: são duas grandes damas da literatura policial, e nada seria mais injusto do que tentar estabelecer uma hierarquia de qualidade ou de valor entre elas. São intocáveis, cada uma em seu plano de realidade.
 
Sobre Dame Agatha não preciso falar muito, mas Ms. Rendell é menos conhecida, embora uma boa quantidade de livros seus já tenha sido traduzida no Brasil, principalmente os seus romances detetivescos tendo como protagonista o Inspetor Wexford. É como contista, no entanto, que eu a prefiro, e a toda hora estou lendo e relendo suas histórias densas, precisas, onde ela comprime um crime mórbido, ou uma complexa investigação criminal, em uma dúzia de páginas numa prosa límpida, controlada, rica de nuances.
 
São contos de crime, contos de investigação detetivesca, contos de clima aterrorizante mas não-sobrenatural, contos de ódio reprimido, contos de vingança, contos de ambição mortal.
 
Cada história tira da cartola uma situação inusitada. Uma dona de casa descobre que seu jovem vizinho gosta de se vestir de mulher quando está sozinho em casa (“The New Girl Friend”). Um homem aceita um convite para jantar na casa (distante) de um ex-empregado a quem despediu, e o que deveria ser um jantar de reconciliação começa a ganhar contornos ameaçadores (“A Bad Heart”). Uma mulher deixa o carrinho com o bebê no jardim enquanto vai buscar algo dentro de casa, e na volta o bebê desapareceu. Ou melhor: foi trocado por um bebê desconhecido. Por quê?!  (“Ginger and the Kingsmarkham Chalk Circle”).
 
Casais em crise (namorados impulsivos, ou cônjuges ressentidos) aparecem volta e meia em suas histórias, configurando aquela tragédia grega e inevitável dos tempos modernos – onde o leitor adivinha o desfecho, só não sabe quem será o executante e quem a vítima.
 
Um dos aspectos que me agradam nos contos de Ruth Rendell é que ela tem uma percepção quase telepática de como funciona a mente masculina, ou pelo menos um certo elenco de mentes masculinas. (O que me lembra uma frase que vi numa peça há muitos anos, uma mulher dizendo: “Os homens são insuportavelmente previsíveis”).






Um conto que estive relendo e me deu o que pensar foi “Uma Atividade Paralela” (“An Outside Interest”, em The Fever Tree and Other Stories, 1982; no Brasil, Uma Agulha para o Diabo). O narrador, na primeira pessoa, começa assim (trad. BT):
 
Amedrontar pessoas era um hábito que eu tinha. Talvez eu devesse dizer que era uma obsessão, e que não eram propriamente quaisquer pessoas, mas mulheres. (...) Juízes, policiais, carcereiros, fiscais da alfândega, cobradores de impostos... Eles se divertem muito, não é verdade? Você não os vê abrindo mão de seus métodos ou adotando outros. Não, o hábito de causar medo lhes sobe à cabeça, eles ficam inebriados, vivem só para isso.
 
O narrador explica que mora com a família num daqueles subúrbios londrinos cheios de parques e pequenos bosques, meio desertos, principalmente à noite. Quando a esposa precisa voltar sozinha de metrô, ele tem que pegar o carro e buscá-la na estação. Mas ele não tem medo. Quando lhe dá vontade, faz suas caminhadas “sem nem bater a passarinha”, naquelas alamedas mal iluminadas.
 
Eu pensava às vezes como devia ser a sensação de uma mulher andando sozinha através daquele bosque e, sim, eu me rejubilava da minha masculinidade, e de ser livre do medo.


Uma noite, o camarada está dando sua caminhada e se aproxima casualmente de uma mulher que caminha adiante dele. Ela apressa o passo, de saltos altos, desajeitada. Ele, sem pensar direito, faz o mesmo, e algo acontece nele.
 
Eu podia sentir o cheiro do seu terror. Ela usava bastante perfume e o suor o tornava mais forte, de modo que primeiro me chegou uma lufada, e depois toda uma onda de um odor animal misturado com perfume de flores. Aspirei com força, enchi os pulmões.
 
Ele não ataca a mulher; deixa que ela se afaste, mas está silenciosamente eufórico.
 
Não consigo descrever a sensação de poder que me invadiu, e a sensação de, bem, masculinidade triunfante e do que chamam machismo. Eu me sentia grandioso. (...) Já que pretendo ser totalmente sincero neste relato, devo acrescentar outra consequência daquilo que ocorreu no bosque, mesmo sendo contra minha índole mencionar coisas dessa natureza. Fiz amor com Carol nessa noite e foi muito melhor do que estava sendo ultimamente; para ser sincero, foi algo sensacional, para ambos.


Quem é esse sujeito? Um bandido, um psicopata estuprador, um delinquente? Não, apenas um pacato funcionário de companhia aérea, que dá expediente no aeroporto.
 
Sou um homem bem casado, pai de um garoto, um metro e oitenta de altura, não tenho má aparência, e, posso garantir, sou um indivíduo física e mentalmente normal. (...)  A aventura não é um elemento conspícuo na minha existência. A coisa mais emocionante que já me aconteceu foi quando pensamos que um dos nossos voos havia sido sequestrado, na Grécia; mas depois descobrimos que foi um alarme falso.
 
Um conto mainstream provavelmente se limitaria ao episódio descrito acima e aproveitaria para fazer algumas considerações sobre a psicologia do homem moderno. O que distingue a literatura policial (ou “criminal”, no presente caso) é que ela não se contenta em descrever uma experiência “anormal”. Ela prolonga e repete essa situação. Ela a explora até um ponto de ruptura.
 
O narrador acaba descobrindo outro parque/bosque distante do local onde mora (ele não é bobo), e as experiências de assustar mulheres começam a se repetir, com variadas consequências, diferentes reações... Até um final trágico, que não preciso revelar aqui.
 
Ruth Rendell não se contenta em imaginar o começo de uma situação; ela a espreme até o fim. Sem brutalidade, sem sangue, sem vísceras à mostra, mas descrevendo o mergulho gradual de um “cidadão de bem” no bosque escuro de seu próprio espírito.
 
Sempre com boas intenções, sempre com as melhores justificativas, como nestes comentários após mais uma aventura:
 
Deixei que ela fugisse. Não lhe causei nenhum mal. Pense no alívio que ela deve ter sentido quando percebeu que tinha escapado de mim e estava em segurança! Pense em como ela voltou para casa e contou tudo a sua mãe, ou sua irmã, ou seu marido! Pode-se dizer até que eu lhe fiz algum bem. Talvez tenha lhe mostrado que não era uma boa cruzar sozinha o bosque, e assim a protegi de um verdadeiro pervertido, algum molestador de mulheres. É um ponto de vista válido, não é? Posso mesmo me considerar um benfeitor público.
 
Não apenas um cidadão de bem, mas um marido exemplar. Há um curto episódio em que ele se aproxima de uma mulher até o ponto de descobrir que ela é faixa-preta em alguma coisa. Ele lhe dá um balão e foge, deixando-o levantar-se zonzo, o agasalho de jogging todo manchado de terra e grama. Ele comenta:
 
Carol quis saber como eu tinha dado um jeito de ficar com a roupa toda suja de grama, e acho que ela pensa até hoje que eu estava rolando nos gramados do parque com alguma outra mulher. Como se eu fosse capaz!
 
Ele se dá o trabalho de explicar que muitas dessas aventuras tinham menos o intuito de apavorar alguém do que o de restaurar seu amor próprio, sua auto-estima masculina abalada por alguma das mil pequenas humilhações do cotidiano. Como quando uma cliente da companhia aérea cuspiu nele, ou quando o chefe o repreendeu, ou quando Carol lhe perguntou “por que motivo ele não conseguia ganhar tão bem quando Mike, o marido de Sheila”.
 
A idéia do crime, nos contos de Ruth Rendell, nunca é o passo inicial do processo. Um personagem não diz, de cara: “Vou matar Fulano”. Ele simplesmente narra ao leitor sua convivência com Fulano, as queixas recíprocas, as altercações, as injustiças sofridas, os ressentimento (mais que legítimo!), o rancor furioso (mais que justificado!), a explosão final, que muitas vezes se conclui com o lamento: “Queriam que eu fizesse o quê, depois de tudo que aconteceu?!”.