sábado, 3 de julho de 2021

4720) A mente cibernética de Lord Byron (3.7.2021)


 
Há muitas histórias fantásticas em que personagens de tempos atrás são trazidos ao mundo moderno, por meios mágicos ou meios tecnológicos.
 
Num levantamento de memória, lembro o conto de James Blish “A Work of Art” (1956), em que o compositor Richard Strauss é revivido artificialmente. Há também o conto de Ian Watson “O Conferencista Fantasma” (“Ghost Lecturer”, 1984; publicado na edição brasileira da Isaac Asimov Magazine, # 22) em que o filósofo romano Lucrécio vem parar num laboratório britânico. E o mestre Robert Silverberg ganhou um Prêmio Hugo com a noveleta “Enter a Soldier. Later: Enter Another” (1989) em que o filósofo Sócrates e o conquistador espanhol Francisco Pizarro são “resgatados” e colocados frente a frente.
 
O Brasil não poderia estar de fora! Machado de Assis nos presenteou com “Uma visita de Alcibíades” (em Papéis Avulsos, 1882), em que o efebo dos banquetes atenienses vem bater papo no Rio de Janeiro... mas invocado por técnicas do espiritismo.
 
É um subgênero com variantes possíveis em muitas direções. Uma que sempre despertou minha curiosidade foi: será possível criar uma simulação de computador capaz de escrever como um autor famoso da literatura? Uma espécie de “Teste de Turing” literário, em que seriam submetidas a uma banca examinadora algumas páginas de teor literário. Umas foram escritas por prosadores famosos. Outras, por uma simulação.
 
Usei computador pela primeira vez em 1991. Meu primeiro processador de texto foi o WordStar. Depois, o Word Perfect. Finalmente o bilgueiteano Word, onde resido, resignado, até agora. Desde o início eu já via algumas feituras no “Help” desses programas: Suas frases estão muito longas... Há muitos adjetivos... Você usa verbos na voz passiva 30% a mais que Hemingway e 33% a mais que Scott Fitzgerald...
 
Não estou mentindo. Tinha isso mesmo, no WordStar de trinta anos atrás. Hoje em dia, esse departamento avançou bastante, e já temos computadores produzindo versos ao estilo de Dylan Thomas.
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/03/1832-o-algoritmo-dylan-thomas-2212009.html
 
Não por outro motivo fiz o narrador do meu conto “Stuntmind” (1989) dizer:
 
Volto à biblioteca. Sento diante de um dos micros, escolho programas ao acaso (De Assis, De Camp, De Quincey, De Sade...), troco cartas durante algumas horas.
 
É uma fantasiazinha inofensiva, imaginar um personagem do futuro que numa noite chuvosa pode trocar idéias por escrito com Machado de Assis, L. Sprague de Camp, Thomas de Quincey ou o Marquês de Sade. Note-se que o conto foi escrito numa época em que eu nunca tinha usado um computador. Era na boa e velha Olivetti Lexikon 80.
 
Tudo isto me ocorre a propósito de um romance obscuro mas deleitável da autora britânica Amanda Prantera: Conversations with Lord Byron on Perversion, 163 Years After His Lordship’s Death (London: Abacus, 1987).
 

Um grupo de pesquisadores de software está justamente criando programas de produção de textos que são alimentados com todos os dados possíveis de todas as biografias de Lord Byron, toda sua correspondência, todos os depoimentos de seus contemporâneos. O programa é capaz de dar busca em todo esse gigantesco banco de dados (sua “memória”), comparar versões, desmentir testemunhos, etc. Para acompanhar o processo, eles contratam uma moça especialista em Byron, para checar se está indo tudo bem. E ela começa, por assim dizer, a trocar cartas com Byron.
 
Todo mundo sabe que Lord Byron era um nobre semi-arruinado, que tinha um pé coxo, que apesar disso era bonitão e cheio de carisma, que era um conquistador inveterado, que teve numerosos casos amorosos com homens e mulheres, variando do simples flerte malicioso até as “vias de fato”; era um pegador emérito, e diz-se que chegou a ter um filho com a própria meia-irmã. Um personagem inteligente, incômodo, fascinante, atormentado, bom de verso.



(Hugh Grant, como Byron, em "Rowing With the Wind")

Tudo isso transparece no “Byron” cibernético, criador pelo Professor e monitorado por um casal de técnicos, sempre designados como o Assistente e a Assistente. Quem dialoga mais com “Byron” é Anna, a especialista no Byron histórico, capaz de dizer aos técnicos: “Isto aqui é típico dele” ou “Não, ele jamais diria isso”, e assim por diante.
 
“Byron”, consultado sobre as refeições em Cambridge, responde:
 
I DON’T EAT THERE OFTEN. IT WAS NOT CONSIDERED FASHIONABLE TO DO SO. BUT THEY RAN THE PLACE LOKE A HOSTEL, AND A D––D EXPENSIVE ONE TOO.
 
Anna comenta:
 
Acho que o “damned” substituído por travessões está correto, mas não creio que Byron teria usado a palavra “fashionable” (=na moda) nesse contexto. Soa como uma expressão muito recente. (p. 87)
 
A equipe começa a descobrir que o “Byron” deles começa a questionar os dados, a tentar fazer modificações; e existe a expectativa de que “Byron” produza um novo poema. A certa altura do romance, começamos a ter acesso a uma narrativa na primeira pessoa do próprio personagem.


(Gabriel Byrne como Byron, em "Gothic")
 
A equipe tem alguns mistérios específicos a esclarecer. Querem saber quem era a misteriosa “Thyrza” que aparece em muitos poemas amorosos de Byron (um mistério literário equivalente ao “Mr. W. H.” a quem Shakespeare dedicou seus sonetos de amor). Querem saber até que ponto avançaram as aventuras homossexuais de Byron, principalmente com relação a John Edleston, com quem estudou em Cambridge. Querem saber detalhes de seus relacionamentos com suas amantes, com amigos como Percy and Mary Shelley...
 
Esse “Lord Byron” (chamado no livro de “L. B.”) é um “sistema especialista”, uma idéia em pleno desenvolvimento na época em que Ms. Prantera estava escrevendo:
 
O programa foi alimentado, em forma codificada, com todos os detalhes e todos os fragmentos de informação disponível sobre o poeta e sua obra. (...) Embora o programa arquive tudo relativo a Byron, ele guarda um grande número de fatos que ele desconhecia, e outros que ocorreram após sua morte; esses dados eram mantidos em separado. (p. 17)
 
O que acontece é que a mente de “Byron” começa a pensar por conta própria, e este é o interesse do romance. Boa parte do livro é voltada para o relacionamento dele com Edleston, um romance gay platônico que logo descamba para consequências imprevisíveis.



(Jason Patric como Byron em "Frankenstein Unbound")

O mais divertido são os trechos em que “Byron”, numa espécie de fluxo-de-consciência inacessível aos pesquisadores, dá sua própria versão da vida do Lorde, sempre deixando claro que sabe ser uma espécie de simulação. Irrita-se com o excesso de curiosidade deles, ridiculariza suas interpretações, compadece-se, com ironia, dos erros que cometem.
 
E também comenta os fatos posteriores a sua morte:
 
Deus misericordioso! William Lamb, Primeiro Ministro da Inglaterra? Ainda bem que não vivi para presenciar tal coisa.  (p. 97)
 
Os pesquisadores mudam os parâmetros que definem a personalidade de “Byron”: ansiedade, ousadia, etc. Tal como num videogame, as ações e decisões do personagem são governados por esses critérios, mas:
 
Concordamos desde o início quanto a este aspecto: cada parâmetro pode ser alterado ligeiramente, para menos ou para mais, para promover ajustes, e pode ser alterado de volta a sua posição original; mas nenhum deles pode ficar sendo modificado constantemente sem provocar repercussões no sistema.  (p. 110)
 
O que esta curta novela (174 páginas) sugere é que havendo poder computacional suficiente e dados suficientes, a inteligência artificial, obedecendo aos parâmetros definidos no início (o que me parece uma área muito mais crucial do que o mero tamanho do banco de dados), passa a se comportar como uma mente humana.
 
Ficcionalmente, é claro. Ainda demoraremos um pouco para produzir um Dylan Thomas ou um Lord Byron aqui do lado de fora. Mas como sugestão literária, por mim está valendo. As possibilidades, como sempre, são infinitas.