terça-feira, 30 de novembro de 2021

4769) "The Beatles - Get Back" - parte 1 (30.11.2021)



Em janeiro de 1969 aconteceu a gravação do chamado “Projeto Get Back”, dos Beatles, agora transformado em série de TV por Peter Jackson (exibida pelo Disney Channel). O novo diretor, acertadamente, organizou o material numa implacável ordem cronológica, o que acaba criando um efeito de suspense dentro de um documentário – pelo uso da contagem regressiva rumo ao evento final.
 
Os Beatles (somos informados nos letreiros iniciais) têm menos de um mês para terminar de compor 14 canções, ensaiá-las, fazer um show, gravar um disco e um especial de TV. Na gravação que vemos agora, Ringo Starr e John Lennon estão com 28 anos, Paul McCartney com 27, e George Harrison está às vésperas de completar 26 anos, no mês de fevereiro seguinte.
 
Para mim, não importa que eles sejam milionários, poderosos, “celebridades” (no repulsivo jargão de hoje em dia). São quatro rapazes. Talentosos, calejados, que àquela altura da vida já tinham mais tempo de palco e de estúdio do que qualquer músico de sua geração. Trabalhavam contra o relógio e contra o calendário, pressionados por interesses comerciais gigantescos que sempre fugiram ao seu controle. A biografia Shout! de Philip Norman me parece a que melhor registra o descalabro econômico que foi o sucesso dos Beatles, onde muita gente acabou ganhando mais dinheiro do que eles, na mera assinatura de alguns contratos.
 
Havia a pressão dos prazos, da necessidade de grana (“Quanto mais rico você é, de mais grana você precisa” – reza o Primeiro Mandamento do Capitalismo), da bagunça na vida pessoal de cada um (drogas, polícia, casamentos, separações, namoros, endeusamento da mídia, perseguição da mídia).



("I'm Only Sleeping")
 
E o bem documentado Bill Harris, na The Ultimate Beatles Encyclopedia (1992), lembra que os estúdios de Twickenham, onde eles começaram a gravar em 2 de janeiro, tinham sido alugados para o horário diurno. Os Beatles, famosamente notívagos, tinham que começar a ensaiar diariamente às 8 da manhã. Num estúdio gélido, amplo como um hangar, em pleno “aconchego” de um inverno inglês. Como se diz hoje em dia: “Ninguém merece.”
 
Ali, eles tinham que passar o ensaio inteiro envergando seus custosos e cafonas casacos de pele, bocejando, tiritando, bafejando nos dedos enregelados, e tentando recuperar – quem sabe? – um pouco da animação que tinham quando tocavam seis horas por noite nos clubes de Hamburgo, anonimamente, menos de dez anos antes. (E haja bagunça e gritaria, para desenferrujar os dedos, para esquentar o sangue.)
 
Em todo caso... trabalho é trabalho. E o que há de fascinante em séries como esta é acompanhar o processo de criação de músicas. Algumas entraram no disco oficial Let It Be, é claro. Muitas ficaram pelo meio do caminho e nunca foram gravadas pra valer. Outras acabaram brotando algum tempo depois nos discos individuais de um ou de outro, como “All Things Must Pass” de Harrison ou “Gimme Some Truth” de Lennon.
 
Esse processo de ir compondo, arranjando e gravando uma canção de rock, pedaço por pedaço, já havia sido documentado no filme de Jean-Luc Godard com os Rolling Stones, que aparece em duas versões diferentes com os títulos de One Plus One e Sympathy For The Devil. (Para quem se interessar, tem em streaming no saite “Belas Artes À La Carte”).
 
Tem gente que pensa que uma canção é como um ovo, algo que a galinha já bota pronto. Na verdade ela se parece com um ovo de mármore, algo que tem de ser esculpido com todo cuidado até ganhar aquela forma, tão perfeita que parece espontânea.


("A Day in the Life")
 
Ainda hoje vejo pessoas se referindo às composições dos Beatles em termos como “foi uma letra de John Lennon musicada por Paul McCartney...” Não é assim. Em geral, um dos dois fazia a primeira parte, completa, e o outro fazia a segunda.

E eles usavam o método aproximativo: repetir os trechos mil vezes e ir trocando palavras, notas, acordes, tornando a canção mais tensa, mais forte, mais vibrante, mais expressiva. Um processo que era basicamente de John & Paul, mas no qual os outros eventualmente davam palpites.
 
Esse processo, mostrado em Get Back, já era descrito por Hunter Davies na biografia autorizada do grupo (1968), onde o biógrafo descreve fases da composição de “With a Little Help From My Friends”, “A Day in the Life” e outras..
 
Qualquer dupla ou trio de compositores que se junta para compor “na hora” passa por um processo semelhante. É algo distinto da composição solitária, de quando a gente está botando música numa letra alheia, ou letra numa música. A composição “na hora” envolve um processo de um milhão de idas e vindas, pausas, conversas noutro assunto, voltas, novas tentativas, novas anotações, sugestão de novos caminhos, experimentação, constatação de que aquilo não levou a nada, retorno para o formato anterior...
 
Precisa gostar muito de música para fazer isso. E fazer isso diante de 20 ou 30 pessoas estranhas (câmeras, fotógrafos, eletricistas, técnicos de som, aspones) exige uma energia e uma paciência notáveis.
 
A maioria das pessoas que trabalha com música gosta de música e se diverte fazendo música, mesmo nesses momentos de incerteza, de frustração, de sensação de “eu sou um incompetente, um idiota, e todo mundo está vendo”. A toda hora tem uma piada, um gracejo, uma brincadeira de “vamos tocar aquela antiga que todo mundo curte”. Isso faz com que muita gente não considere isso um trabalho. “Ora essa... Os caras param quando querem, contam piadas, tomam cafezinho, estão rindo o tempo todo... Que trabalho é esse?!”
 
O conceito religioso-capitalista de que “trabalho é missão, não pode ser prazer” não admite esse sistema.


("While My Guitar Gently Weeps")
 
Muita gente deverá se chocar com a quantidade enorme de brincadeiras, paródias, imitações, empostações de voz e molecagens que os Beatles fazem. Ora, o ambiente estava tenso. A banda estava a ponto de romper ali mesmo. Era questão de tempo. Lennon e Paul recorrem a todo tipo de palhaçada para desanuviar a irritação de todos. (Oito da manhã no inverno? Ninguém merece.)
 
E há outra coisa. Quando você está ensaiando uma música semi-pronta que vai ser gravada, quanto mais variações, distorções, exageros se colocar, melhor. Só se chega à forma final da música vindo de 100 direções diferentes. Subir o tom, baixar o tom, acelerar, ralentar o ritmo, gritar, fazer barulho... Não, a música final não vai ser assim. Mas a forma dela vai sendo percebida, conquistada, domesticada, em cada uma dessas caricaturas.
 
Alguém já disse, referindo-se a futebol, que torcedor de verdade não é o que vai ao jogo, é o que vai ao treino. Ir ao treino pode ser indício de algum fanatismo, mas para um certo tipo de torcedor é uma experiência educativa. Jogo pode ser espetáculo; mas o treino é trabalho puro. O mesmo vale para o ensaio musical. Uma coisa é estar no palco diante de 100 mil pessoas, recebendo ovações. Outra coisa é repetir um take 20 ou 30 vezes até tudo acontecer como foi combinado. 
 
Get Back (vi até agora apenas a Parte 1) consegue a útil proeza de nos fazer sentir esse processo num esticamento de tensão, à medida que o calendário aparece na tela, e mais um dia de trabalho é dado por findo, aproximando o grupo cada vez mais do fim do prazo. E do fim da própria banda.
 
Muito bem encaixada a canção de Harrison, “Isn’t It a Pity?” para fechar o primeiro episódio.

 

Aqui, a parte 2:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/12/4771-beatles-get-back-parte-2-6122021.html 

E a parte 3 (final):

https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/12/4773-beatles-get-back-parte-3-12122021.html








sábado, 27 de novembro de 2021

4768) A arte de criar personagens (27.11.2021)




Criar bons personagens literários é, segundo muita gente, o primeiro passo para obter sucesso. A maioria das pessoas lê, segundo uma definição útil, para acompanhar “histórias interessantes acontecendo com personagens interessantes”. Parece muito fácil. O problema é que nem tudo que é interessante para um público também é para outro. E mesmo que fosse, como transpor isso para um personagem fictício, numa história que está começando a ser inventada?
 
Cada autor, como sempre, tem suas próprias receitas. E o fato da receita eventualmente funcionar na mão dela não significa que funcione na mão de todo mundo.
 
Elmore Leonard dava uma dica:
 
Evite descrições detalhadas dos personagens, algo que Steinbeck assimilou. Na história de Hemingway “Hills Like White Elephants”, que aparência têm o americano e a garota que está em sua companhia? “Ela tirou o chapéu que usava e o colocou em cima da mesa.”  Isto é o máximo que obtemos em termos de descrição física.
 
Funciona? Sim, mas nem sempre. Alguns leitores preferem assim. Outros, não. Há quem extraia um certo prazer imaginativo ao visualizar uma descrição detalhada: cabelo, rosto, vestimenta, objetos, maneirismos, a voz... E há quem se contente em acompanhar a história pela história, e visualizar uma espécie de bonequinhos simplificados no lugar dos personagens. (Eu prefiro ler assim, às vezes.)
 
É preciso ter em mente que o personagem se impõe à imaginação do leitor mais pelo que faz do que por sua aparência. Não é um manequim, é um agente com vida própria, cheio de surpresas. Cada atitude sua, cada fala, cada participação na história faz o leitor abrir mais os olhos e pensar: “Puxa vida, então ela é assim.”
 
Como diz a autora Sarah Waters:
 
Respeite seus personagens, mesmo os menores. Na arte, como na vida, cada pessoa está no centro de sua história pessoal. Vale a pena imaginar qual será a história pessoal dos seus personagens ocasionais, coadjuvantes, mesmo que a presença dele cruze apenas momentaneamente com a do seu protagonista.
 
Ao mesmo tempo, não sobrecarregue a narrativa. Personagens devem ser individualizados, mas funcionais – como figuras num quadro. Pense na pintura de Hieronymus Bosch, Cristo Sendo Ridicularizado, em que Jesus sofre pacientemente, enquanto está cercado por quatro homens que o ameaçam. Cada um desses personagens é único, e ainda assim cada um deles representa um tipo humano. Em conjunto, eles formam uma narrativa que se torna ainda mais poderosa por ser construída de modo tão conciso.



Dar densidade humana aos personagens ajuda à verossimilhança da narrativa. Mesmo um motorista de táxi, um garçom de restaurante, uma secretária de escritório, alguém com quem o(a) protagonista da história conversa durante meia página apenas pode revelar um traço pessoal que nos faça ver ali uma pessoa de verdade, uma pessoa que talvez seja tão “interessante” quanto o(a) protagonista.
 
Não existem fórmulas na literatura; cada autor dá conselhos de acordo com o que gosta de ler ou de escrever. Geralmente esses conselhos são do tipo “Olha, comigo isto funciona”. Mas não é com todo mundo.
 
Andrew Motion tem uma fórmula simples, bem a gosto dos escritores de ficção popular:
 
Tranque diferentes personagens num ambiente e diga a eles que vão em frente.
 
Esse conselho vale? Inúmeras peças de teatro existencialistas já empregaram com sucesso esta fórmula. E curiosamente ela também aparece, com poucas mudanças, em filmes ou séries como Cubo, Lost  e outras, em que pessoas totalmente aleatórias se veem projetadas num ambiente estranho e para sair dali precisam contar com a ajuda dos outros, e às vezes vencer a resistência deles. Não é um conselho que valha para principiantes. Parece uma fórmula de roteiro best-seller, mas na verdade só funciona na mão de um autor experimentado, que já tenha uma cartola cheia de truques para a criação de personagens.
 
Hilary Mantel diz:
 
Concentre sua energia narrativa nos pontos de mudança. Isto é especialmente importante quando se faz ficção histórica. Quando seu personagem está chegando num lugar pela primeira vez, ou quando as coisas estão se modificando à sua volta, este é um bom omento para fazer uma pequena pausa e fornecer mais detalhes sobre o mundo dele. As pessoas não reparam seu ambiente costumeiro e sua rotina diária, de modo que quando os autores descrevem essas coisas tudo acaba soando como se estivessem dando explicações ao leitor. A descrição precisa ter um motivo para aparecer, não pode ser meramente ornamental. Em geral ela funciona melhor se tiver em si um elemento humano, é mais eficaz se vier de um ponto de vista implícito, e não de um olhar divino. Se a descrição é colorida pelo ponto de vista do personagem que está prestando atenção a tais e tais coisas, ela se torna, com efeito, parte da definição do personagem e parte da ação.
 
O personagem revela quem é quando descreve o que está vendo. Mostrar uma sala através dos olhos de uma empregada doméstica é diferente de mostrá-la através dos olhos de uma visita.



Acho às vezes que uma das principais dificuldades dos autores muito jovens (há exceções, claro) é a pouca vivência humana, a pouca vivência de situações variadas, de encontros consistentes e profundos com tipos variados de pessoas. O rapaz ou a moça de 20 anos que faz faculdade e sempre viveu com os pais tem uma experiência limitada da vida. Muitas vezes são inteligentíssimos, leem pra caramba, veem muitos filmes, se exprimem com facilidade, escrevem bem. O que falta?
 
Falta o conhecimento real das pessoas de carne e osso, e nesse aspecto não adianta ter lido a obra completa de Jorge Luís Borges, de Philip K. Dick ou de Graciliano Ramos (que são úteis, sim, mas noutro aspecto). A nossa percepção pessoal do comportamento humano é criada a partir de interações reais que no momento em que estavam acontecendo eram emocionalmente importantes para nós. Isso fica. Isso soma sem parar ao longo da vida.
 
Por isso muitos escritores dizem: transforme em personagens as pessoas que você conhece melhor, conhece mesmo, de conviver cara a cara, de ver como a pessoa se comporta nos bons e nos maus momentos, no medo, na alegria, na preocupação, no amor e no ódio. Dê a essa pessoa que você conhece tão bem (um colega de escola, um primo, uma vizinha, uma professora) outro nome, outra idade, outra condição social que não seja muito afastada. Pegue a personalidade e as reações naturais desse indivíduo e “vista” nelas outro nome, outra biografia... e parta daí. Para que haja nesse personagem duas coisas importantes: verdade (autenticidade, verossimilhança) e continuidade (o personagem é sempre o mesmo, por mais variadas que sejam as suas reações).

 

 
 
 
 






quarta-feira, 24 de novembro de 2021

4767) Contracapa de GoogleMeet (24.11.2021)



(Wassily Kandinsky, "Círculos num Círculo", 1923)



&  o problema das sociedades que se sustentam com pão e circo é que geralmente o pão acaba primeiro
 
&  no futuro todo mundo terá o direito de ser esquecido por 15 minutos
 
&  a maior surpresa é quando uma coisa não acontece pela segunda vez
 
&  existe num país uma quantidade fixa de fervor político; quando acontece de haver 90% de indiferença isso resulta em 10% de fanatismo
 
&  quando alguém afirma que uma questão é “incontornável” é porque está cobrando pedágio nela
 
&  “plus c’est la même chose, plus ça change”
 
&  a vida está parecendo aqueles filmes onde o roteiro mostra uma coisa e os diálogos dizem outra
 
&  o fim da civilização não virá em trajes de tragédia grega, mas de ópera-bufa albanesa
 
&  que mundo estranho o nosso, capaz de imaginar mundos assim
 
&  o problema das redações de jornais, atualmente, não é que o estagiário não sabe escrever, é que não tem mais ninguém ali para ensinar
 
&  quando as exceções são maioria, tem alguma coisa errada com a regra
 
&  quem já passou dos 70 sente cheiro de fumaça
 
&  nada mais patético do que ser o último a acreditar nas próprias mentiras
 
&  quem costuma praticar a autocrítica não precisa de modéstia
 
&  nada estraga tanto o prazer de um voyeur quanto morar de frente para uma exibicionista
 
& muitos livros são contratados pela editora mediante a apresentação de uma sinopse geral e o primeiro capítulo; bem que poderiam ser publicados assim
 
&  sopa, café, vinho e cama... contra o gelo deste inverno
 
&  não é que um velho seja um cara mais sábio, ele é apenas um cara que já viu o mesmo filme dez vezes
 
&  a vida seria simples se fosse beber e dormir, mas essa história de acordar já complica tudo
 
&  a presença de certas pessoas emite a temperatura de um eclipse total do sol
 
&  chamar alguém de “canalha” só tem sentido se for na presença do próprio
 
&  certos livros são como frutas de cera: nunca envelhecem, e não dão prazer algum
 
&  a lei é para todos, mas a aplicação dela é por amostragem
 
&  é preocupante pensar que só saberemos o que estava acontecendo em 2021 quando lermos os livros de História publicados em 2050
 
&  na verdade, a maior parte dos leitores dos livros de mistério não gostam de mistérios, gostam de soluções
 
&  precisamos de um computador automático, onde bastaria manter uma tecla pressionada e o texto iria brotando
 
&  a diferença entre um espirro e um orgasmo é meramente afetiva e sócio-cultural
 
&  algumas estrelas estão tão distantes que sua luz se esvai entre o telescópio e o olho
 
&  os mares se elevarão dez metros, mas a essa altura ninguém perceberá
 
&  tem épocas em que nem precisa ser um pesadelo – a pessoa sonha que foi na pracinha e acorda suada e trêmula
 
&  mais triste do que jogar pérolas aos porcos é jogar diamantes aos famintos 
 
&  uma nação pode ser desintegrada sem que seja necessário matar uma pessoa sequer
 
&  às vezes a gente passa tanto tempo esperando um “sim” que até receber um “não” dá um certo alívio
 
 
 
 
 





domingo, 21 de novembro de 2021

4766) Primeiras Estórias: "O Espelho" (21.11.2021)



“O Espelho” é uma das histórias mais enigmáticas de Guimarães Rosa, um conto fora-de-esquadro. Nem é propriamente conto, mas um arrazoado na primeira pessoa, com personagem-narrador suposto.
 
Rosa faz uma espécie de “filosofia do espelho” neste texto, anotando e comentando numerosas crenças, superstições ou conceitos de diferentes culturas a respeito do poder das imagens refletidas. É quase como se este conto fosse uma reescritura, sob um verniz ficcional muito leve, de algum caderno de anotações onde ele foi ao longo dos anos enumerando as interpretações que o fascinavam.
 
Um método que ele usou em outros textos. “São Marcos” (de Sagarana, 1946) resultou, confessadamente, de todo um glossário de superstições, feitiços e crendices que ele amealhou a vida inteira, e que depois se dispôs a bordar por cima do tecido liso de uma historieta.
 
Uma experiência roseana radical, nesse sentido, é o prefácio “Nós, os temulentos” (Tutaméia, 1967) onde ele pega mais de vinte piadas de bêbados e as enfileira numa pseudo-narrativa única, fazendo de conta que tudo aquilo aconteceu com o mesmo sujeito, ao longo de uma noite.
 
Nem por isso ”O Espelho” deixa de ser narrativo, de ter propriamente um enredo. O narrador, que o tempo todo se dirige a um presumível ouvinte (que pode ser o leitor), conta que certa vez viu a si mesmo inesperadamente, num espelho colocado em ângulo com outro; e aquela imagem lhe desagradou. Começou, então, o projeto meio quixotesco de examinar a fundo sua imagem refletida, “caçador de meu próprio aspecto formal”.
 
Começou por eliminar semelhanças com os animais, com os quais, segundo ele, todo vivente se parece. Diz que seu “sósia inferior na escala” era a onça, e tenta “não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino”. Daí, passa a eliminar também “o elemento hereditário”, em seguida o “contágio das paixões”, as “idéias e sugestões de outrem”, os “efêmeros interesses”...
 
Assim, camada após camada vão sendo subtraídas até que um dia, em vez de se deparar com o que seria seu verdadeiro rosto, o narrador se espanta:
 
Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?
 
O processo de eliminação radical chega a nos lembrar o primeiro prefácio do Tutaméia, reunindo “anedotas de abstração”, em que Rosa lembra a famosa definição de “nada”: “Uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo.”
 
Diante da possibilidade de ter perdido a própria alma, de ter-se tornado um “des-almado”, o Narrador insiste em sua contemplação, em seu mergulho em si mesmo. E logo em seguida, depois de ter-se tornado invisível, ele percebe que outro fenômeno começa a suceder.
 
Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo. (...) Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que rostinho de menino, de menos-que-menino, só.
 
O conto é portanto o relato de um processo de individuação, de descoberta do “si-mesmo” após a cuidadosa raspagem psicológica de tudo que é externo e acessório ao indivíduo. Um processo vagaroso de iniciação que no fim deixa brotar a verdadeira alma, o verdadeiro rosto, num autêntico renascimento.  É um dos contos mais curiosos de Rosa porque alternadamente ele usa umas expressões que lembram a psicanálise e outras que lembram as práticas místicas tradicionais.


Alguns detalhes merecem comentário maior. O psicanalista carioca M. D. Magno, em seu livro Rosa Rosae (Rio: Aoutra, 1985) arma um interessante esquema dos contos de Primeiras Estórias, mostrando que “O Espelho”, dos 21 contos que compõem o livro, é o conto central, tendo dez antes de si e dez depois. E por isso funcionaria justamente como uma espécie de espelho onde os demais contos se refletem, de tal modo que há uma correspondência clara entre o conto número 1 (“As Margens da Alegria”) e o último (“Os Cimos” – que de fato é uma retomada dos personagens do conto inicial).
 
Do mesmo modo há um reflexo, um espelhamento entre o segundo conto (“Famigerado”) e o penúltimo (“Tarantão meu Patrão”) e assim por diante. (Rosa Rosae, pág. 155 em diante).
 
São correspondências e semelhanças que na maior parte dos casos talvez passassem despercebidas se não fosse a colocação tão precisa e tão deliberada de “O Espelho” bem no centro desses dois grupos simétricos, forçando o leitor a um segundo exame dos pares assim refletidos.
 
Outro ponto de interesse do conto também tem a ver com a Psicanálise. É quando o Narrador de “O Espelho” diz ter visto num lavatório de edifício público (o que não deixa de nos sugerir o edifício do Itamaraty, onde o diplomata Guimarães Rosa dava expediente) dois espelhos, um dele sendo móvel sobre uma porta com dobradiças, sendo os dois, combinados, capazes de fornecer uma imagem diferente da tradicional imagem “de frente” que vemos nos espelhos comuns.
 
Quem já usou os espelhos tripartites dos camarins de teatro familiarizou-se com essa possibilidade de enxergar o próprio rosto de perfil, coisa tão rara. E aliás esses espelhos estão cada vez mais presentes nos banheiros dos apartamentos e quartos de hotel modernos. Diz o Narrador rosiano:
 
Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, e outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que algum dia eu ia esquecer essa revelação?


Nada nos assusta mais do que flagrar o próprio rosto assim – estranhado, distanciado. E a reação do personagem de Rosa é exatamente a reação de quem tem a experiência do uncanny (“das Unheimlich”), que Freud define, em seu famoso ensaio homônimo de 1919, narrando um episódio praticamente igual:
 
Posso contar uma aventura semelhante. Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência.
(S. Freud, “O Estranho”, em Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos, vol. XVII das “Obras de Sigmund Freud”, Ed. Imago, 1969, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza, pág. 265n)
 
Ora, o “Unheimlich” freudiano é justamente aquela imagem peculiar que nos provoca ao mesmo tempo uma sensação de estranheza e de perturbadora familiaridade. E que criatura mais adequada para exprimir essa noção abstrata do que o próprio Eu?
 
Sim, são para se ter medo, os espelhos.
 


 

 
 
 
 





quinta-feira, 18 de novembro de 2021

4765) Meu personagem existe mesmo (18.11.2021)




(ilustração: Pere Borrel de Caso, 1874)
 
O escritor Daniel Abraham, criador da série de ficção científica “Long Price Quartet”, conta uma história curiosa a respeito de seu primeiro texto publicado.
 
Por volta de 1996, ele estava vivendo “de favor” na casa de amigos, tentando virar escritor profissional, e teve essa idéia de escrever uma história sobre uma moça, Rebecca, que era engenheira de som e sofria de uma enorme timidez. Ela começa a seguir pessoas e a gravar os sons do mundo por onde essas pessoas circulam, compondo assim uma espécie de “trilha sonora” da vida delas.
 
O conto, que tem outros desenvolvimentos narrativos, foi publicado naquele ano na revista The Silver Web, com o título “Mixing Rebecca”. E Abraham conta (Locus, junho de 2008, trad. BT):
 
Anos depois, recebi uma mensagem de um cara que era engenheiro de som. Ele tinha gravado um álbum intitulado “Rebecca Remix”; e o nome dele era Daniel Abraham! Ela queria saber se meu nome verdadeiro era mesmo aquele, e se eu tinha andado atrás dele e aproveitado títulos dos trabalhos dele para botar nos meus trabalhos – algo que eu achei meio assustador. Foi um momento bem “Além da Imaginação”.
 
Será mentira? Não parece haver nenhum propósito em inventar uma história assim. “Daniel Abraham” me parece um nome judaico bastante comum, e se você pensa o termo “Remix” e procura um personagem feminino, “Rebecca” pode não ser o único, concordo, mas é um dos que me ocorreriam.
 
Coincidência, mas um pouco inquietante.
 
Caso parecido se deu com Julio Cortázar, que é um verdadeiro atrator para esse tipo de evento, que ele chama ao longo de sua obra como “convergências”, “constelações”, “figuras”, “concatenações instantâneas”, “bruscas coagulações” e outros termos. É o encontro aparentemente casual de coisas muito afastadas mas que acabam convergindo, de maneira inexplicável mas perturbadora.



No livro Todos os Fogos o Fogo (1966) ele publicou o conto “Instruções a John Howell”, em que o espectador de uma peça de teatro é levado aos bastidores no intervalo e convencido (ou forçado) a entrar no palco no segundo ato, interpretando de improviso o papel de “John Howell”, um marido cuja esposa o trai. Ele meio que se diverte com a situação, mas no palco a atriz que faz o papel da esposa sussurra ao seu ouvido: “Fique aqui, não deixe que me matem”, e ele percebe uma trama sinistra por trás daquilo tudo. (Não contarei o final – que aliás é enigmático.)
 
Pois bem: conta o mestre Julio (em Cortázar: Notas Para Uma Biografia, Mario Goloboff, Editora DSOP, 2014; trad. José Rubens Siqueira) que em setembro de 1973 recebeu uma carta de um leitor norte-americano chamado John Howell, que já havia lido outras obras cortazarianas, e que ao ler uma resenha de Todos os Fogos o Fogo descobriu que um dos contos citava seu nome.

 
E ele explica a Cortázar que também nunca foi ator, mas tem um amigo em Nova York que praticamente o obrigou a aceitar um papel na peça que estava dirigindo, e dessa forma ele subiu ao palco como ator durante três meses, na única experiência teatral que teve na vida. E conta que, como também escrevia de vez em quando, escreveu um conto passado em Paris e deu ao personagem o nome de Julio Cortázar, porque sabia que este escritor era um morador parisiense.
 
O que não fica claro, na biografia de Mario Goloboff, é se quando Howell batizou o personagem como “Cortázar” já sabia (ou não) que Cortázar tinha batizado um personagem seu como “Howell”. E se o amigo diretor de teatro sabia deste último caso, e resolveu usá-lo como ator de propósito.
 
Cortázar, como já falei é um verdadeiro “atrator” para tais episódios. Seu conto “Queremos tanto a Glenda” (1980, livro do mesmo nome; no Brasil, Orientação dos Gatos) imagina uma trama curiosa em torno de uma atriz de cinema, Glenda Garson, que é uma visível homenagem a Glenda Jackson (que ele não conhecia pessoalmente, mas admirava). No livro Fora de Hora (1982), ele publicou o texto “Garrafa ao Mar” onde comenta o fato de que logo após a publicação daquele livro Glenda Jackson, a verdadeira, estrelou um filme intitulado Hopscotch, ou seja, “O Jogo da Amarelinha”.


 
O autor comenta, dirigindo-se ficticiamente à atriz::
 
Ter chegado do México trazendo um livro que é anunciado com seu nome, e encontrar seu nome em um filme que é anunciado com o título de um dos meus livros, já significava uma bonita jogada do destino que tantas vezes me aprontou jogadas semelhantes.
(Fora de Hora, Nova Fronteira, 1985, trad. Olga Savary)
 
Como em tudo que envolve o Sobrenatural – ou pelo menos o Insólito –, ficamos remexendo nos detalhes em busca de uma explicação racional qualquer. Que muitas vezes existe e resolve tudo. Mas... e quando nenhuma explicação racional se mostra satisfatória?
 
Meu caso preferido nessa área é um episódio narrado por Alan Vaughan em seu Incredible Coincidence (1989). Em 1966, um grupo de professores estava reunido em Londres, tentando por brincadeira imaginar um romance futurista. Um deles sugeriu que um personagem poderia ser um refugiado, vindo talvez da Hungria. Outro, buscando um nome tipicamente húngaro, sugeriu que o personagem se chamasse “Horvath-Nadoloy”.
 
Dias depois, um deles viu no jornal a notícia de que a polícia tinha encontrado no Hyde Park um estrangeiro, aparentemente desmemoriado, dizendo que se chamava Horvath-Nadoloy. E comentou: “Sentimos que tínhamos inventado esse vagabundo, e ao longo do processo de inventá-lo acabamos por trazê-lo à vida, e uma vida não muito agradável.”
 
Algumas seitas místicas e alguns grupos de pseudo-ciência dizem que a mente humana é capaz de criar pessoas pelo simples poder de invocá-las mentalmente. Digamos que fosse verdade. Neste caso, o mundo em que vivemos estaria coberto por uma superpopulação mais que absurda. A densidade demográfica de qualquer área do deserto do Saara seria maior do que a de Meca em dia de peregrinação.
 
Não é bem assim. Acho que Cortázar se aproxima da verdade quando fala que o que produzimos não são os seres, mas sim as conexões entre eles, aproximando-os em função de um nome, de um endereço, de hábitos compartilhados, de lugares frequentados por criaturas que imprevisivelmente revelam ter algo em comum.
 
Histórias de ficção têm sempre um pé na realidade, falam de cidades, de pessoas, de ambientes, de profissões, de atividades humanas, de ritos sociais, e tudo isso são constelações de elementos que se repetem, porque na Física das culturas humanas o Semelhante atrai o Semelhante e ao mesmo tempo atrai também, grudado a ele, o Oposto.  
 
O entrecruzamento das linguagens e dos meios de comunicação humana gera um algoritmo próprio, sem controle central.
 






segunda-feira, 15 de novembro de 2021

4764) A volta ao mundo de W. J. Solha (15.11.2021)

 


Waldemar José Solha, que se assina britanicamente W. J. Solha, está botando na praça mais um livro de poesia, desde vez pela Editora Arribaçã, de Cajazeiras. O livro tem um título intrigante: 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite. Existe na literatura uma nobre tradição de títulos longos e complicados, que já vem de longe, e passa por nomes ilustres como o de David Foster Wallace e seu Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo.

 

Solha vem construindo esse seu ciclo de poemas-prosas desde Trigal com Corvos (Palimage, 2006), que comentei aqui:

 

https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/03/0920-trigal-com-corvos-2622006.html

 

A este se sucederam: Marco do Mundo (João Pessoa: Ideia, 2012), Esse é o Homem (João Pessoa: Ideia, 2013), e Vida Aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019).

 

Esta pentalogia (por enquanto!) de poemas de Solha, em verso livre, vai se construindo como um tronco de árvore que à medida que se alonga de subdivide em galhos grossos que por sua vez vão de prolongando e se ramificando em galhos mais finos. A substância é a mesma mas em cada um deles (em cada galho, em cada livro; em cada ramo, em cada verso) adquire novas formas e se embebe de outra matéria. A árvore é uma só. O autor é um só, multifurcando-se em idéias que não param de jorrar, de uma mente que trabalha 24 horas por dia. (Não pensem que Solha “apaga” quando dorme.) 

 

A busca poética do autor, que já comentei neste blog, se faz através de um tipo de verso curioso, extenso, quase prosa.  

 

Verso que eu costumo chamar “o verso Whitman”, porque foi nos poemas de Walt Whitman (e de seus seguidores como Álvaro “Fernando Pessoa” de Campos, Allen Ginsberg...) que conheci este tipo de verso-quase-prosa.  Linhas extensas que avançam na direção da margem direita da página, esbarram nela. Às vezes retornam ao começo da margem esquerda, às vezes começam a se quebrar e se acumular em linhas que vão se superpondo no lado direito, até concluírem o que têm a dizer.

 

Sobre a dúvida terrível das aparências,

sobre a incerteza que há em tudo, de que estejamos nos iludindo,

de que talvez nossa confiança, nossa esperança, não sejam mais, afinal, do que meras especulações,

de que talvez a identidade no além-túmulo seja apenas uma linda fábula,

e talvez as coisas que eu percebo, os animais, as plantas, os homens, as colinas, as águas que cintilam e que escorrem,

os céus noturnos e diurnos, as cores, as densidades, as formas, talvez tudo isto seja somente (como sem dúvida o são) meras aparições, e a coisa real ainda está para ser conhecida.

(Walt Whitman, “Of the Terrible Doubt of Appearances”, em Folhas de Relva, trad. BT)

 

Ou na poesia beat de Allen Ginsberg:

 

Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura,

eu os vi famintos, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer,

à procura de uma dose brutal,

hipsters de cabeça angelical, ardendo de desejo pela antiga conexão divina com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

pobres, esfarrapados, com os olhos fundos, viajando sentados, de cigarro aceso, na escuridão sobrenatural de quartos sem aquecimento, flutuando sobre os tetos da cidade e contemplando o jazz...

(“Uivo”, parte I, trad. BT)

 

Ginsberg dizia que seus versos não se contavam por número de sílabas, mas pela capacidade pulmonar. Um verso durava a quantidade de palavras que ele conseguisse recitar a plenos pulmões antes de precisar tomar fôlego novamente.

 

Em Solha, esses versos quilométricos se alternam – por questões puramente rítmicas e de conteúdo, a meu ver – com versos curtíssimos, de uma linha só, criando estrofes como:

 

Falha das mitologias (da grega e hebraica à tupi-guarani), a de nos terem dito... coisas dignas de Dali:

que Deus teria feito o homem do barro,

como o oleiro faz o jarro

...e a vida,

em nós, teria sido inserida – por uma das generosidades divinas –

através de um sopro nas... narinas

ou a nós teria sido dado o fogo dos deuses, roubado,

...algo,

sempre,

à parte,

quando – noutra via – vemos que – por infinitos fatores – da geosfera (passada uma eternidade) se criou uma biosfera, de que surgiu a ...noosfera,

e o fenômeno humano – que se alimenta do que vem do Sol ... e do chão – é a própria Terra

a produzir... Ciência,

...a turbulência – incluindo guerra e tudo mais em que a humanidade “erra” – e Arte.

(1/6 de Laranjas..., págs. 26-27)

 

Acho que não é mero acaso a semelhança de tema e de métrica entre poemas assim. São poetas que tentam abarcar de uma só vez o mundo inteiro, ou uma época inteira, ou a totalidade de uma experiência humana neste breve piscar de olhos que é a vida – uma treva, um vislumbre, e a treva novamente.

 

O mundo é uma chuva constante de imagens e de idéias que o poeta registra sem parar. Tem um verso de Dante, que Ítalo Calvino cita em seu Seis Propostas Para o Próximo Milênio, ao discutir seu conceito de “Visibilidade”: “Chove dentro da alta fantasia” (“Poi piovve dentro a l’alta fantasia”, Purgatório, XVII, 25).

 

Calvino explica que “a imaginação é um lugar dentro do qual chove”, quer dizer, chovem imagens, chovem temas, assuntos, histórias, personagens, enredos, situações, idéias, associações de idéias... Chove assim, na mente dos poetas.


(Solha, no filme O Som ao Redor)


Como quando Solha relembra suas viagens de trem:

 

(...) ou,

fora da vida urbana,

na Estrada de Ferro Sorocabana,

entre os troncos e frestas em fila, em florestas de eucaliptos,

o sol – entre ecos de apitos – a correr ao fundo,

a vinte e quatro fotogramas,

fasciculados

por

segundo.

(pág. 14)

 

É o cinema da vida, metralhando os olhos ansiosos do jovem que se educa na marra, na fome insaciável de ficar-sabendo, nas enciclopédias em fascículos, nas sessões de cinema-poeira, nos discos de 78 rotações... Na própria vida de rapaz de classe-média-trabalhadora na distante Sorocaba, a quem um dia o concurso do Banco do Brasil oferece a possibilidade de se transferir para Pombal, no sertão da Paraíba, pra lá do fim do mundo, um lugar onde (parafraseando o que o poeta diz à página 16) “o chão alcança o horizonte e dá a volta por cima”.

 

Carlos Drummond dizia, memoravelmente, que “a Vida, quando vai aos livros, é para voltar mais Vida ainda”. O mergulho eloquente e entusiástico de Solha nos livros, nos álbuns de gravuras, nos filmes, nas telas, é um testemunho de que essas coisas de Arte não nos afastam da realidade, a não ser quando é este o propósito de quem as usa. A Literatura nos devolve às coisas cruas e cruéis do mundo, como quando o poeta questiona os próprios Evangelhos:

 

(...) ao que pergunto,

sem delírio:

o que ...são ...as três horas ...desse martírio ...fecundo – pois pra “Salvar o Mundo” - ...ante as... vinte e seis... mil, viu?,

em que o câncer – corrosivo – atormentou e matou minha mãe,

...sem qualquer ...objetivo?

(pág. 53)

 

Qual o objetivo disto tudo? Por que tanta beleza, ao lado de tanto sofrimento inútil? Por que tantas vidas notáveis e produtivas, em meio a tantos milhões de vidas que aparentemente nada trouxeram para si e para ninguém? Por que tantos sistemas religiosos, políticos, estéticos, filosóficos, tentando explicar ou direcionar esse tsunami de corpos de carne e osso, bilhões deles, nascendo, agitando-se, entrematando-se, reproduzindo-se, desmoronando para adubar a terra, e no meio disso ainda tendo a capacidade de produzir tanta beleza---

 

(...) como foi o da transparência dos tecidos,

...esculpida ...em pedra,

com arte e...

perspicácia,

na Vitória de

Samotrácia.

(pág. 23)

 

Não sabemos. E tomara que ninguém jamais descubra, para que possamos continuar perguntando.

 

A consciência individual é este milagre de cada um de nós: uma coisica minúscula, seletiva, “destamanhinho”, um pentelhésimo de micróbio: mas é tudo que temos e tudo que somos, porque nenhum ser humano até hoje conseguiu sair de dentro de si mesmo.

 

A consciência coletiva é um segundo milagre, que nos permite entender algo que alguém escreveu a dez mil quilômetros ou há quatro mil anos. O milagre que nos permite não apenas ler o que o mundo nos diz mas também escrever sobre ele. Vivemos mergulhados numa ignorância protetora, não sabemos 99% dos processos que agora mesmo estão fervilhando atarefados dentro do nosso corpo (circulação, respiração, digestão, guerra do sistema imunológico contra os exércitos insones de vírus que tentam nos fazer naufragar).

 

(...) ou

se alguém,

de volta pra casa,

uma hora depois de sair,

sentisse,

de repente,

estar... mil e setecentos quilômetros à frente,

por causa da rotação da Terra...

(pág. 69)

 

Não, não sabemos. Vivemos num casulo de individualidade que nos escuda contra “o céu que nos protege”, que nos abriga contra “o som ao redor”, que nos mantém abençoadamente ignorantes de tudo que não somos capazes de abarcar, de conter, de comportar.

 

Por isto são importantes estes registros das coisas irrelevantes da vida concreta, de toda coisinha (como dizia Augusto dos Anjos) “tísica, tênue, mínima, raquítica”, porque quem quiser que sonhe com a permanência, mas para elas a sua glória é passar.

 

(...) o que o faz ...maior que aquele da foto em que se vê Nova Iorque e seu mundo ao fundo,

entre o rastro,

n’água,

de um barco – no primeiro plano – que acaba de passar,

e o de vapor,

que ele deixou

no ar.

(pág. 79)

 

Se nossa vocação fosse a permanência e a imortalidade, a morte seria a derrota, o fracasso; mas sabemos que não é assim. A nossa vocação é a passagem. É o fluxo, é o desfile. A Arte fica, e só fica porque nós passamos. O que salva nossas alegorias é que não somos um Bloco Do Eu Sozinho, somos uma “mocidade independente” que não desfila para “a injustiça dos prêmios”, mas para não deixar o samba morrer.